Acabou-se a paciência com Marcelo Rebelo de Sousa. As interferências (assumidas) do Presidente da República na votação do Orçamento do Estado, a audiência com Paulo Rangel e a alegada intenção de adiar as eleições antecipadas para um calendário que seria mais conveniente ao challenger colocaram Rui Rio em rota de colisão com o Presidente da República. A insistência de Marcelo para que a eutanásia fosse discutida e aprovada ainda antes de dissolver a Assembleia da República foi mais um golpe na relação entre os dois.

Aos olhos da direção de Rui Rio, esta decisão de Marcelo tem um único propósito: criar ainda mais turbulência nas eleições internas do PSD. O tema da eutanásia é divisivo no eleitorado do PSD, foi o primeiro sinal público de divergência entre Rio e Rangel, criou um psicodrama no partido que culminou com ameaças de demissão do presidente social-democrata e tem sido, de resto, um dos argumentos que o eurodeputado tem usado para atacar Rui Rio.

Ora, Marcelo é um assumido opositor da despenalização da morte assistida. Enquanto Presidente da República, enviou o diploma para o Tribunal Constitucional, que o considerou inconstitucional. Na quarta-feira, Marcelo jantou com Eduardo Ferro Rodrigues e transmitiu ao Presidente da Assembleia da República que, introduzidas as alterações sinalizadas pelo Palácio Ratton, então daria luz verde à eutanásia ainda antes da dissolução da Assembleia da República.

Para o núcleo duro de Rui Rio, a pressa inexplicável de Marcelo Rebelo de Sousa para que a Assembleia da República discuta um diploma desta sensibilidade sem que nada o obrigasse e num momento em que é público e sabido que o Parlamento vai ser dissolvido, só pode ser interpretado como uma forma de dar mais argumentos a Rangel para atacar Rio. É esta, pelo menos, a convicção da direção social-democrata.

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De resto, em declarações aos jornalistas na Assembleia, Adão Silva, líder parlamentar do PSD, não disfarçou o choque. “O senhor Presidente da República, no dizer do senhor presidente da Assembleia da República, terá garantido, que se chegasse nestes dias, nas próximas semanas, um novo decreto com as alterações ao decreto que foi vetado, ele não obstaria minimamente”, começou por dizer o social-democrata, antes de acrescentar:

“Neste momento particularmente delicado da vida do país em que temos já à vista um conjunto de dinâmicas que vão levar à dissolução do parlamento, contra a vontade do PSD foi agendada a discussão do veto do Presidente da República sobre a eutanásia”, lamentou o social-democrata.”

Marcelo refém do calendário que definiu

Este não é sequer o último sinal de alegada ingerência de Marcelo na vida interna PSD. As assumidas diligências feitas pelo Presidente da República para salvar o Orçamento do Estado agastaram Rui Rio, que chegou a classificar as ações de Marcelo como “pouco ortodoxas”.

Mas o que maior irritação causou ao núcleo duro do líder social-democrata foram os alegados contactos de Marcelo Rebelo de Sousa com os deputados do PSD-Madeira para que estes reconsiderassem o voto contra o Orçamento — o que, no limite, poderia salvar o diploma. Por outras palavras: o Presidente da República terá tentado provocar uma cisão na bancada do PSD para salvar o Orçamento do Governo socialista.

Se isso não bastasse, Marcelo tem dado sinais contraditórios em relação à data que pretende para a realização das eleições legislativas. Em meados de outubro, quando falou pela primeira vez sobre a possível dissolução da Assembleia da República, Marcelo foi cristalino ao dizer que pretendia as eleições fossem logo em janeiro e o mais rapidamente possível.

A questão do calendário não é de somenos importância porque se cruza diretamente com o calendário interno do PSD. De acordo com a lei eleitoral, os partidos têm de entregar as listas de candidatos a deputados até 41 dias antes da ida às urnas. Ora, se as eleições forem a 2, 9 ou a 16 de janeiro, como admite a direção de Rui Rio, Paulo Rangel não teria manifestamente oportunidade de conduzir o processo, o que levaria a uma situação esdrúxula: Rangel poderia ganhar o partido a 4 de dezembro, mas não teria como escolher a equipa e o programa a ir a votos.

As contas fazem-se facilmente: se as eleições legislativas forem a 2 de janeiro, o PSD teria de entregar as listas de candidatos a deputados até ao dia 22 de novembro; se as legislativas forem a 9 de janeiro, o PSD teria de entregar as listas até ao dia 29 de novembro de 2021; se as legislativas forem forem a 16 de janeiro, o PSD teria de entregar as listas até ao dia 6 de dezembro.

Além disso, o processo de elaboração de listas começa muito antes de estas serem entregues no Tribunal Constitucional e têm de ser aprovadas em Conselho Nacional. Com o congresso do PSD — que verdadeiramente legitima o líder sufragado em eleições diretas — agendado apenas para 14, 15 e 16 de janeiro, em circunstância alguma Rangel estaria em condições de conduzir o processo eleitoral do partido.

E mesmo se o Congresso do PSD fosse em meados de dezembro, como defendeu esta quinta-feira Rangel, a questão mantinha-se: em caso de vitória, o eurodeputado não teria como escolher os candidatos a deputados.

A definição das listas é, por tradição, um momento importante para as dinâmicas internas de poder em todos os partidos, em particular no PSD. Quem tem a chave do acesso ao Parlamento, tem naturalmente um ascendente sobre as estruturas do partido. Por outras palavras: com este calendário, Rio tem a faca e o queijo na mão.

E onde é que entra Marcelo? A direção de Rui Rio desconfia que o Presidente da República venha a ter a tentação de alterar o calendário das legislativas para condicionar a vida interna do PSD e para vitaminar a candidatura de Paulo Rangel, que assim passaria a estar em igualdade de circunstâncias face a Rui Rio.

Aos olhos do núcleo duro do líder social-democrata, Marcelo Rebelo de Sousa está refém do calendário que ele próprio traçou ainda em outubro, quando o cenário de eleições antecipadas era uma hipótese meramente académica. Qualquer adiamento das legislativas para lá do dia 16 de janeiro será sempre percecionado como um frete” a Paulo Rangel.

Foi isso mesmo que André Coelho Lima, vice-presidente do PSD, sugeriu em entrevista ao Observador. Desafiado a dizer que compreenderia se Marcelo adiasse as eleições para fevereiro depois de as ter pedido para janeiro para se adaptar ao calendário das internas do partido, o dirigente social-democrata foi taxativo: “Não vejo nenhuma razão que possa justificar uma circunstância dessa natureza. Não admito que possa ser feito por um Presidente da República, seja ele militante do PSD, do PS ou de qualquer outro partido. É algo que nem sequer como hipótese académica posso sequer ponderar”, cortou.

Não foi sequer o único alto-dirigente do PSD a visar diretamente Marcelo Rebelo de Sousa. Num texto de opinião publicado no jornal “Público”, Hugo Carneiro, secretário-geral-adjunto e um dos homens mais influentes no universo rioísta, foi particularmente duro nos termos. “Marcelo é uma mão visível no processo interno do PSD, o que se reputa de gravíssimo e coloca muito mal o chefe de Estado”, escreveu.

Hugo Carneiro iria ainda mais longe. “Com eleições legislativas o país não pode ficar refém dos processos internos do PSD, seria injustificável e espanta-me a ausência de reação dos outros partidos a estas iniciativas do PR. Havendo eleições legislativas as mesmas devem acontecer rapidamente, parece-me evidente, a bem do país, mais do que a circunstância de cada militante, ou dirigente do PSD, ou dos próprios partidos.”

Tropas de Rio e Rangel trocam acusações

Nos bastidores, as placas tectónicas do planeta PSD vão continuando a mexer. Do lado de Rangel, os apoiantes do eurodeputado vão acusando Rui Rio de estar a usar a composição das listas de deputados para fazer chantagem e conquistar apoiantes nas estruturas do partido.

A equipa de Rio tem cromos para a troca: de acordo com as acusações que vêm sendo feitas, a candidatura de Rangel já terá até feito convites para a Assembleia da República e distribuído cargos num futuro Governo social-democrata. Num caso como noutro, são queixas sem provas sólidas.

Se os dois candidatos viessem a fazer um esforço de consensualização na elaboração das listas de candidatos a deputados a questão perderia naturalmente força na discussão interna do partido. Alguns dirigentes sociais-democratas, terão tentado sensibilizar a candidatura de Rio para a questão, mas os mais próximos do líder do PSD terão manifestado pouca abertura para aceitar essa solução.

No que depender da equipa de Rio, o atual presidente do partido é o único com competências para trabalhar as listas de candidatos a deputados (incluindo cabeças de listas) com as estruturas do partido. E é pouco provável que venha a abdicar dessa prerrogativa.

Adiamento das eleições internas vai ser ponderado

De resto, a direção de Rui Rio ainda não excluiu a hipótese de voltar a propor o adiamento das eleições internas. A solução foi discutida na último Conselho Nacional do partido, mas acabou por ser chumbada por uma maioria expressiva de conselheiros.

Na altura, Rui Rio defendeu a proposta para evitar que o partido mergulhasse na situação em que acabou por mergulhar: estar a discutir a vida interna quando o partido devia estar a preparar a campanha eleitoral e discutir um programa alternativa ao de António Costa.

Os argumentos do líder social-democrata foram desvalorizados pelos críticos internos, que nunca acreditaram que o Orçamento fosse de facto chumbado. Agora, e depois de se terem confirmado as eleições antecipadas, resta saber se Rui Rio vai ou não insistir em propor o adiamento das eleições internas.

O Observador sabe que essa hipótese não está excluída, ainda que o núcleo duro de Rui Rio esteja a avaliar se é ou não uma causa perdida — apesar de as circunstâncias políticas terem mudado, não é líquido que os equilíbrios do Conselho Nacional, órgão do partido a quem compete deliberar sobre o assunto, tenham mudado e que Rio venha a ganhar essa votação.

Na já citada entrevista ao Observador, André Coelho Lima não se compromete com o adiamento das eleições diretas, mas deixa aberta a porta. “As eleições internas no PSD seriam prejudiciais para as hipóteses de o PSD de disputar as legislativas. É uma evidência”, argumentou o vice-presidente do PSD. Resta saber se a proposta vai ou não ser formalizada em Conselho Nacional.