Índice
Índice
Rita Alarcão Júdice garante que o Governo não tem dúvidas sobre o perfil para o novo procurador-geral: um perfil de liderança, que “ponha ordem na casa” e permita pôr fim a “uma certa descredibilização” que o Ministério Público (MP) vive desde o início do mandato de Lucília Gago. A ministra da Justiça não comenta o trabalho da atual PGR indicada por António Costa e nomeada por Marcelo Rebelo de Sousa, mas as suas palavras são claras: o Governo quer iniciar “uma nova era”. É esta a principal ideia da primeira entrevista de fundo a Rita Júdice, um episódio especial do programa “Justiça Cega”, da Rádio Observador”.
Num processo de seleção do nome que será proposto pelo primeiro-ministro Luís Montenegro ao Presidente da República, o Governo quer encontrar uma personalidade que tenha igualmente um perfil de comunicação. “Porque os tempos modernos já não se compatibilizam com a ideia de que podemos estar fechados nos nossos gabinetes e não comunicarmos com os cidadãos nas sedes próprias“, diz Rita Alarcão Júdice.
Tudo sem colocar em causa o atual regime de autonomia previsto no Estatuto do Ministério Público. Além de defender que o Conselho Superior do MP deve cumprir as suas competências de escrutínio, a ministra da Justiça apenas admite uma alteração legislativa que torne 100% claro que o poder hierárquico é para ser exercido. “Tem de existir hierarquia no Ministério Público. Não é um corpo que anda à solta”, afirma.
O Ministério Público (MP) tem estado debaixo de fogo nos últimos meses. O Governo anterior fez uma alteração ao Estatuto do MP que colocou dúvidas sobre como o poder hierárquico pode ser exercido, sendo que uma circular da procuradora-geral sobre a matéria deu origem a um processo no Supremo Tribunal Administrativo que ainda não foi concluído. São necessárias alterações legislativas para repor o poder hierárquico no MP?
O MP tem uma razão de ser e uma das suas características é o facto de ser uma magistratura hierarquizada. A Constituição é clara sobre essa matéria. Houve alguma discussão sobre a alteração do estatuto do Ministério Público e houve a tentativa de clarificar esse tema. Se forem necessárias alterações legislativas, estamos disponíveis para isso, naturalmente.
Esta é uma matéria importante porque o MP é o titular da ação penal e decide se investiga este cidadão e não aquele. Por isso é uma magistratura hierarquizada que, além de obedecer à sua liderança, tem de obedecer à política criminal definida pelo Parlamento por proposta do Governo. Tem de existir esse poder hierárquico. O MP não é um corpo que anda à solta porque tem um poder muito importante que afeta qualquer cidadão. É verdade que tem muitas outras competências, mas é por ser titular destes poderes específicos de criminalização que os magistrados do MP são colocados numa estrutura hierarquizada.
A procuradora-geral Lucília Gago vai terminar o mandato em outubro e já declarou que vai jubilar-se. Vai desempenhar um papel na escolha do próximo procurador-geral. Que perfil deve ter o próximo ou a próxima Procuradora-Geral da República?
Antes de mais, deixe-me clarificar: não é a ministra da Justiça que escolhe a procuradora ou o procurador-geral da República.
Mas tem um papel nesse processo de seleção.
Sim. O Governo vai ter que propor uma personalidade que reúna as condições que venham a merecer a aceitação do sr. Presidente da República. Será o primeiro-ministro que vai liderar esse processo. Preservando a regra de confidencialidade desse processo de discussão com a Presidência da República, vamos fazer essa discussão no Governo. Admito que possa ter uma palavra mais relevante a dizer que outros ministros que possam ter menos contacto com a realidade da Justiça, mas também é verdade que a Justiça nos toca a todos e por isso todos terão uma palavra.
“Precisamos de uma nova era para o Ministério Público”
Ainda falta muito tempo até outubro. Em termos de perfil, até porque, insisto, que a magistratura e própria forma como Lucília Gago exerce o cargo tem estado debaixo de fogo, precisamos de outro perfil de liderança e de comunicação para o próximo procurador-geral?
Sem dúvida. Precisamos de uma pessoa que tenha uma boa capacidade de liderança e de comunicação porque os tempos modernos já não se compatibilizam com a ideia de que podemos estar dentro dos nossos gabinetes e não falarmos, não comunicarmos e não explicarmos aos cidadãos nas sedes próprias — e essa capacidade de comunicação é exigível a uma nova procuradora-geral da República. Precisamos de alguém que possa vir a marcar uma nova era para o Ministério Público.
Uma nova visão sobre o Ministério Público?
Sim. Nós temos tido, e como referiu, períodos muito duros para o MP, e para a procuradora-geral da República em concreto, e que criaram algum descontentamento.
Na própria opinião pública.
Exato. Já não vou mais longe. O olhar do cidadão é muito importante para o Governo. E hoje em dia o cidadão comum não compreende muitos aspetos da atividade do MP.
Lucília Gago, por exemplo, não fala, nunca deu uma entrevista e não se sujeita ao escrutínio da opinião pública?
Não vou pronunciar-me sobre as decisões e o modus operandi da senhora procuradora-geral da República. Aliás, nem foi escolha deste Governo, portanto, nem tenho qualquer…
Mas o perfil que acabou de definir não deixa de ser uma crítica indireta à atual procuradora-geral.
É verdade. Há um diagnóstico que está feito. Houve uma certa descredibilização e algum ruído à volta do MP. Está a ser muito atacado. O MP é muito importante, a sua capacidade e credibilidade é determinante para o bom funcionamento da Justiça. E, por isso, é essencial ter alguém que possa restituir essa confiança.
E uma capacidade de liderança e de gestão?
Capacidade de gestão, capacidade de liderança e ser uma face visível nesta fase crítica. Sem medos.
A procuradora-geral escolhida pelo antigo Governo da AD, Joana Marques Vidal, é mais próxima do perfil que estava a referir?
Não queria mesmo estar a comparar perfis. O ponto é: todos concordamos que é preciso que algo mude no MP no sentido da perceção da credibilidade dessa magistratura, porque está muito vulnerável a algumas críticas. Justa ou injustas, a verdade é que o MP está exposto a muitas críticas e o novo procurador-geral tem que pôr ordem na casa, por assim dizer.
O debate sobre a reforma da Justiça, nomeadamente sobre o Ministério Público, tem sido muito marcado nos últimos meses pelo Manifesto dos 50. No texto do manifesto refere-se a necessidade de repor o poder da legalidade democrática sobre o MP. Nessa nova era que vê para o MP, quer promover um maior escrutínio do poder político sobre essa magistratura ou defende a manutenção da atual autonomia?
Na sua atuação, o Ministério Público não se pode pautar por motivos políticos e tem órgãos internos de controlo da sua atuação e que devem estar atentos. Não vejo ninguém preocupado com essa falta de controlo interno. Mas esse escrutínio interno também tem que existir. Há um Conselho Superior do Ministério Público que também deve atuar se existir alguma suspeita de que determinada investigação, determinado procurador, foi para além do exercício dos seus direitos. Todos estamos sujeitos a escrutínio e todos — procuradores, juízes, advogados, etc. — temos que cumprir com as normas que são aplicadas.
Há necessidade de aumentar um escrutínio do poder político sobre a atividade do Ministério Público?
Não. Vamos lá ver: o MP tem que cumprir com a lei de orientação política criminal e tem que seguir essas orientações. Se há um aumento de criminalidade informática, tem que investir e focar-se nesse ponto. Há temas de corrupção que estão a preocupar os cidadãos, tem que se focar nesse ponto. Há um aumento de criminalidade de violência doméstica, temos que atacar o fenómeno. Gostava de ver essa articulação nesse campo, ou seja, de uma maior resposta do Ministério Público às preocupações efetivas dos cidadãos na investigação criminal e que preocupam e afetam todos transversalmente.
Acredita que um procurador-geral, ou procuradora-geral, apenas deve ter um mandato e que isso deve estar claro na lei?
Acredito que deve haver limitação de mandatos, mas diria que o mandato é curto. Não penso que haja obrigatoriedade de existirem dois mandatos, mas também não me parece que, em geral, todos os órgãos de poder devam ter uma limitação de mandatos. Quem exerce poder deve ter uma limitação de mandatos, não se deve eternizar no seu cargo.
Se o procurador-geral faz um bom trabalho, pode-lhe ser renovado o mandato?
Pode ser renovado o mandato. Mas também pode ter feito um bom trabalho e não ser renovado porque as circunstâncias do país e do mundo são diferentes e é preciso alguém com outro perfil. Não tenho aí grandes dogmas.
“O edifício do combate à corrupção parece perfeito mas se abrirmos as portas, está vazio”
Decidiu batizar as medidas contra a corrupção aprovadas em Conselho de Ministros como uma “Agenda” que corresponde a 32 compromissos que ainda terão de ser executados. Nos últimos 20 anos assistimos a vários pacotes idênticos, como o do último Governo do PS, que ficaram aquém das expectativas. Estas medidas correspondem a um conjunto de boas intenções ou há mesmo condições políticas para executar os 32 compromissos?
Vamos começar exatamente pelo nome. Chamamos-lhe “Agenda” exatamente por isso: inscrevemos na Agenda o que é efetivamente importante, aquilo que não queremos esquecer. E são 32 medidas que são efetivamente para concretizar. Naturalmente que algumas dependem apenas do Governo, outras dependerão de iniciativas parlamentares, outras dependerão também de algum compromisso e de conversações com outras entidades.
É um dos propósitos do Governo dar já cumprimento a várias dessas medidas. Uma delas é submeter a consulta pública a Agenda Anticorrupção para ouvirmos a opinião dos cidadãos, da academia, dos advogados, dos cidadãos comuns que sentem na sua própria pele o impacto dos fenómenos corruptivos ou têm uma perceção da corrupção. Este diálogo com os cidadãos, e a visão da Justiça através do olhar da comunidade, é algo que nos interessa muito e é esse o cunho que também queremos deixar marcado.
Pedro Nuno Santos, secretário-geral do PS e líder da oposição, classificou esta Agenda Anticorrupção como uma “cedência do PSD ao populismo” e uma “colagem do Governo à Agenda do Chega”. Os votos do PS e do Chega vão ser essenciais para a viabilização das propostas que forem ao Parlamento. E os dois juntos têm votado contra o Governo. Prefere negociar com o PS ou com o Chega para viabilizar as medidas que forem ao Parlamento?
Há várias medidas em que o Chega e o Partido Socialista estão de acordo, não só na Agenda Anticorrupção como noutras, como se tem visto no Parlamento. O que queremos é que a Agenda seja concretizável e não queremos perder tempo. Queremos efetivamente tornar eficaz o que existe. A nossa preocupação não foi mudar radicalmente o que existe — e o que existe foi já muito feito pelo anterior Governo.
O Governo do PS criou a Estratégia Nacional contra a Corrupção.
Naturalmente. O que é que acontece? O nosso desafio foi olhar para o que existe e ter a certeza de que não foram meras intenções. É aí que nós estamos: a avaliar o que foi posto em prática. Não podemos ficar apenas a achar que o edifício está perfeito mas, depois, quando abrimos as portas, está tudo vazio. E é isso que queremos combater.
Não há um prazo definido para a aplicação das 32 medidas. Contudo, o pacote de regulamentação do lobbying e a pegada legislativa são os diplomas que já estão mais avançados porque na legislatura anterior ocorreu uma discussão parlamentar profunda. O Governo já tem uma data para submeter a proposta legislativa do lobbying e da pegada legislativa ao Parlamento?
Como o sr. primeiro-ministro deu nota, há a intenção de criar uma Comissão Eventual no Parlamento para debater e acompanhar medidas que tenham incidência parlamentar e o lobbying será uma das medidas que vai ser discutida na Assembleia da República. Portanto, estamos um pouco condicionados…
Primeiro será criada a Comissão Eventual e depois é que serão submetidas propostas?
Admito que possa ser esse o caminho, se bem que já existem propostas dos partidos em cima da mesa e nós estamos a trabalhar também na nossa proposta. A ideia é que possamos compatibilizar e negociar nessa sede parlamentar [da Comissão Eventual] as propostas relativas ao lobbying.
Quanto à pegada legislativa, e no que respeita à pegada do Governo, aí sim faz parte das competências legislativas do Governo e já começámos a trabalhar nessa medida. É uma das medidas que apenas ao Governo diz respeito e que se insere na autoregulamentação. Sabemos que existiram outros projetos que não correram bem, não queremos ser radicais, não queremos procurar fazer um edifício perfeito. Queremos tentar fazer algo que seja sólido e exequível.
“Queremos apostar em medidas cirúrgicas para promover a eficiência, e não em revoluções”
Tendo em conta as diferentes áreas da Agenda Anticorrupção — prevenção, punição efetiva, celeridade processual e proteção do setor público —, já tem uma ideia dos timings de execução e do que será feito no âmbito da competência legislativa do Governo e do que terá de ir ao Parlamento?
Tudo o que tem a ver com medidas que envolvam a alteração do Código de Processo Penal ou do Código Penal, têm que ser feitas com o Parlamento. Outras terão de ser estruturadas no Governo, usando os gabinetes de estudo e também os grupos de trabalho que estão a ser criados. Por exemplo, na área administrativa e fiscal, há um grupo de trabalho já constituído e que já está a trabalhar nessa matéria.
Nós apostamos muito na eficiência e em medidas cirúrgicas. Não queremos fazer uma revolução. Por exemplo, estamos a discutir alterações nas notificações com a introdução de mecanismos de citação e notificação processual por via eletrónica. Sendo essa a regra, aliás em cumprimento das normas do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), para que seja possível uma mais rápida notificação das partes, por exemplo. Também estamos a trabalhar em resolver problemas de base, como dotar os tribunais, e não só, de computadores, de meios informáticos adequados, condições adequadas para trabalhar, resolver o problema dos oficiais de Justiça. São tudo temas que promovem a celeridade.
Há capacidade orçamental, por exemplo, para reforçar a área de investigação criminal com mais meios periciais, meios humanos de investigação e também dos tribunais, como referiu agora, dos oficiais de Justiça, por exemplo.
Há essa capacidade orçamental e essa intenção política de apostar na Justiça e em meios humanos e tecnológicos. Quando o Governo, no seu programa eleitoral, se compromete com uma Reforma da Justiça, uma reforma profunda, tem que existir esse compromisso, caso contrário não seria viável. E o Governo já tem dado esses sinais, designadamente nos processos de negociação que foram feitos com os oficiais de Justiça, o processo que estamos a levar a cabo com os guardas prisionais e com o que iremos fazer também com os técnicos de reinserção social.
E nós estamos a atuar. O Governo tem essa intenção e esse compromisso de dotar dos meios necessários. Aliás já fez esse esforço com o incremento do suplemento de recuperação processual, como primeiro passo para a pacificação, para a paz social, para agora podermos trabalhar na reforma da Justiça, incorporando também os contributos dos oficiais de Justiça, que são muitas vezes a primeira cara, as primeiras entidades dos tribunais junto do cidadão. Era uma greve que se alastrava já há muito tempo. Há 18 meses.
“O diálogo com o PS levou-nos a abandonar o crime de enriquecimento ilícito”
Para tentar perceber melhor algumas das 32 medidas: uma das mais relevantes na área da corrupção prende-se com a equiparação das coimas do Regime Geral de Prevenção de Corrupção às do Regime de Prevenção de Branqueamento de Capitais — um regime que se aplica, por exemplo, ao setor financeiro e ao mercado de capitais e permite aplicação de multas que podem chegar a centenas de milhar de euros ou de milhões de euros. Como será feita tal equiparação?
Ainda é prematuro dizer. É uma das matérias que estava no programa de Governo e por isso queremos mantê-la porque toca com a corrupção. O exato desenho da medida e como é que a vamos concretizar vai ser feito em análise, designadamente, com os grupos parlamentares.
A parte que suscitou mais debate na opinião pública, para já, foi prende-se com as novas regras da perda alargada de bens a favor do Estado, mesmo sem qualquer condenação. Está segura de que o Tribunal Constitucional vai validar uma eventual lei de perda alargada de bens a favor do Estado, sem condenação?
Para mim, e para o grupo de trabalho que esteve envolvido na preparação da agenda da corrupção, é claro que o Tribunal Constitucional não iria validar a criminalização do enriquecimento ilícito.
O PSD desistiu definitivamente dessa ideia?
Somos nós que estamos à frente deste processo e foi esta a análise que foi validada em Conselho de Ministros. Portanto, é este o caminho que está traçado. Não quero entrar no detalhe técnico das medidas, mas o que sabemos é que, se é verdade que a perda clássica permite uma perda efetiva de bens, mesmo sem condenação, já a perda alargada não permite. Mas o que nós queremos é incrementar esta perda alargada, por forma a torná-la também possível sem uma condenação.
Mas atenção: tem que ser sempre feito um juízo sobre a ilicitude da origem destes bens. Tem que haver uma fundamentação concreta que um tribunal judicial dê como provada. O crime pode não ser dado como provado, mas pode ser provada a origem ilícita de determinados fundos que financiaram a aquisição de determinados bens.
Consegue compreender as críticas do PS sobre a cedência ao populismo quando foi o mesmo partido que criou o mecanismo de perda alargada com condenação em 2002, com o então ministro António Costa. E decretou em 2017 a perda simples sem condenação por via da transposição da diretiva de 2014 relativa à perda de bens, diretiva esta que foi agora atualizada em abril de 2024. Como vê estas críticas do PS?
O PS criou este sistema, e bem, e nós estamos a melhorá-lo porque em muitos aspetos não é eficaz. Não me revejo minimamente nas críticas de populismo que são feitas. Muitas destas medidas que aqui estão, são medidas que estavam no programa do Governo e resultam de conversas com os partidos com assento parlamentar.
Ouvimos o Chega, o PS, o Livre, o PAN, a Iniciativa Liberal, o PCP e o Bloco. O diálogo é com todos e é assim que queremos fazer. Quando a Agenda for para a consulta pública, tenho certeza que muitos destes partidos vão encontrar o resultado dessas conversas e a incorporação de algumas das suas propostas. Não somos donos da verdade, não queremos uma agenda em que diga “isto foi o Governo que fez e nós temos o sucesso do programa”. Não, nós queremos partilhar com todos o sucesso desta agenda. O combate à corrupção é um objetivo comum.
Há aqui uma linha de continuidade em muitas matérias que o Governo de António Costa também aprovou com a Estratégia Nacional Contra a Corrupção, como, por exemplo, as medidas de direito premial e outras.
Acredito firmemente que o próprio PS está empenhado nesse combate à corrupção, tanto que, como disse, tomou algumas medidas importantes no passado. Dou-lhe um exemplo do diálogo com o PS. Nas conversas que tivemos, a questão da criminalização do enriquecimento ilícito foi um dos temas abordados. Esta é uma ideia que estava no programa eleitoral da AD. E o diálogo do Governo com o PS fez com que essa medida caísse.
Esse diálogo também foi importante para nos orientar para soluções alternativas, como é óbvio. Portanto, não há cedências e isto não é uma guerra. Não estamos a ver quem ganha, não estamos a contar bandeiras. Isto é efetivamente uma luta conjunta contra a corrupção em que queremos envolver todos, todos os partidos e estamos abertos ao diálogo com todos, designadamente com o PS.
“Mecanismo Nacional Anticorrupção não está a funcionar. De todo”
O primeiro-ministro Luís Montenegro e a senhora ministra enfatizaram bem que o objetivo da agenda é melhorar a eficiência do combate à corrupção. Uma das áreas a melhorar é a celeridade do processo penal. Portugal tem um tempo médio de resolução da criminalidade comum, que é pouco mais de um ano. Mas nos processos da criminalidade económico-financeira, segundo um estudo do Conselho Superior de Magistratura divulgado no início deste ano, esse tempo médio sobe para oito, nove anos. É esta discrepância que o Governo pretende combater?
Pretendemos aumentar a celeridade processual. Não há Justiça sem celeridade. E especificamente no processo criminal, o tempo que separa a prática do crime da condenação é significativo. A pena é tão mais eficaz quanto mais próxima for da condenação. Também é verdade que muitas vezes a própria delonga no processo criminal deriva da fase inicial do processo. E também queremos atuar aí, na fase de inquérito. E depois na abertura da instrução também.
Querem atuar nas quatro fases dos processos: na investigação, na instrução, no próprio julgamento e na fase de recursos.
No sentido de criarmos mecanismos que sejam céleres, sem pôr em causa os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Defender a celeridade processual é também uma forma de servir bem a Justiça.
Independentemente do resultado, seja uma condenação ou seja uma absolvição.
Hoje em dia há uma grande mediatização dos processos criminais mais relevantes e muitas vezes ocorrem condenações na praça pública. E aí, sim, é posto em causa o princípio da presunção da inocência — e esse princípio tem de ser preservado. Também por isso a celeridade processual parece-me crítica.
E há medidas muito práticas, como a própria digitalização da prova, que pode acelerar o uso de mecanismos de inteligência artificial para a catalogação e análise de prova, a transcrição. É fundamental avançarmos para a digitalização em todas as fases processuais.
Por outro lado, há que ter uma avaliação das medidas que já foram aplicadas e daquelas que nós formos aplicando. O que nós não podemos fazer, e acho que foi o que possivelmente o que terá acontecido com o Governo passado, é simplesmente anunciar medidas e ‘fecha-se a porta’. Ou seja, anuncia-se e está feito.
Por exemplo, o MENAC — Mecanismo Nacional Anticorrupção —, é uma boa ideia, mas não está a funcionar.
É um bom exemplo, é uma ideia bem estruturada, bem pensada, com uma abrangência de poderes que poderiam ser, efetivamente, determinantes para o combate à corrupção na área da prevenção.
Na criação dos canais de denúncia, por exemplo, que passaram a ser obrigatórios em empresas com mais de 50 funcionários.
Muita gente até achava que o MENAC, que é uma entidade credível, estava a funcionar em pleno mas, na verdade, não está. De todo.
Pretende alterar a orgânica do MENAC, fazer um novo governance, eventualmente uma nova liderança?
Queremos olhar para o governance e queremos tornar eficaz esse combate na área da prevenção. Não queremos uma entidade de fachada. Queremos que, efetivamente, o que existe possa funcionar. E se identificamos que algo não está a funcionar, e e estiver dentro do nosso poder, então alterar o funcionamento do MENAC é algo que temos que fazer.
Por exemplo, o MENAC tem meios, tem pessoas a funcionar, não tem falta de recursos humanos. E teve uma verba do PRR significativa, cerca de um milhão de euros para implementar as tais plataformas informáticas que necessita.
Se não estou em erro, tem um orçamento anual de cerca de 2 milhões de euros.
Tem um bom orçamento. Portanto, tem as condições e tem que funcionar, porque o que é esperado do MENAC é muito. Nós ainda acreditamos que é possível preservar esse mecanismo, que ainda não deu provas, mas queremos que tenha o tempo para o fazer e queremos dar-lhes as condições para que as possa dar.
“Não podemos permitir que a fase de instrução seja um pré-julgamento”
O Governo quer rever a fase de instrução criminal. Pretende-se restringir a produção de prova a casos excecionais e restringir uma fase de instrução a uma fase de validação de direito, apenas?
Há grupos de estudo sobre essa matéria e estamos a trabalhar em articulação com o Conselho Superior da Magistratura. Todo esse processo está a ser repensado. Sabemos que há um debate muito intenso sobre a configuração da fase de instrução criminal mas não queremos acabar com essa fase processual.
A Constituição também não permitia.
O que queremos é reformular e procurar que não seja um pré-julgamento. Porque as matérias que têm de ser vistas na instrução são questões muito próprias.
O próprio Conselho Superior da Magistratura tem essa visão.
Estamos de acordo. Claro que temos de respeitar os direitos, liberdades e garantias e não podemos diminuir essa proteção. Mas não podemos deixar que a instrução criminal seja transformada num julgamento, que não é. Queremos efetivamente olhar para a Justiça com o olhar do cidadão e a Justiça tem de ser percetível e compreendida pela comunidade.
Pelo que percebemos da proposta do Governo, está em cima da mesa também um estudo sobre a forma como se recorre, do ponto de vista penal, para o Tribunal Constitucional. Para reforçar as liberdades e garantias dos cidadãos, admite, a criação do chamado recurso de amparo?
Não vou entrar em questões tão técnicas sobre esse tema. O que nós sabemos é que 90% dos recursos para o Tribunal Constitucional são rejeitados liminarmente. Sabemos que o Tribunal Constitucional deve ser um tribunal de avaliação da norma, da constitucionalidade e não mais do que isso. Portanto, deveremos olhar e conversar, quer com a comunidade jurídica, quer com o próprio Tribunal Constitucional, sobre o melhor enquadramento para que o Tribunal Constitucional possa servir o seu fim último — e não ser uma instância de recurso, como muitas vezes se pretende que seja, e que apenas é utilizado como manobra dilatória por via do efeito suspensivo do recurso. E é isso que queremos evitar.
O programa eleitoral da AD prevê uma alteração legislativa sobre o prazo que os juízes de instrução criminal têm para tomar uma decisão em sede de primeiro interrogatório judicial. Ou seja, quando alguém é detido e é apresentado ao juiz, o programa da AD propõe um prazo máximo de 102 horas. Esta medida é para avançar?
Sim. Tentámos densificar um pouco essa medida, abrindo essa possibilidade, que tem de ser feita com pinças e com toda a segurança jurídica. Estamos a estudar a possibilidade de certos interrogatórios, mais complexos, poderem ser levados a cabo por mais do que um juiz, de forma a que se ganhe mais celeridade. Mas tem de ser feito com algumas pinças. É um trabalho de filigrana jurídica que nos parece que é muito importante.
Também se tem falado muito nas últimas semanas no alegado uso excessivo de escutas telefónicas, além da questão da prisão preventiva. Pretende promover alguma discussão ou até mesmo alteração legislativa para restringir o uso de escutas telefónicas e a excessiva promoção de prisão preventiva por parte do Ministério Público — o que que é muito criticado pelos advogados, por exemplo.
A prisão preventiva deve ser aplicada em último recurso. Portanto, temos de assegurar que efetivamente é isso que acontece. A questão das escutas foi muito discutida a propósito da agenda, nomeadamente através da regulamentação dos meios ocultos de prova. Nós vivemos numa realidade muito diferente da que vivíamos antigamente e temos que regulamentar a utilização dos meios ocultos, as escutas, designadamente.
Mas isso faz-se mais por uma liderança, por exemplo, no Ministério Público que tenha uma visão sobre esse tema ou por uma alteração legislativa?
As escutas são promovidas pelo MP e validadas por um juiz de instrução. O seu uso e autorização têm que ser escrupulosos e não pode haver um prolongamento excessivo. As escutas não devem ser uma forma de investigar por si só. É um meio de produção de prova. Não é um meio de investigação pura e dura. E, portanto, temos que calibrar o seu uso.
“A violação do segredo de Justiça é crime mas não são os jornalistas que estão a praticar o crime”
Regressando ao Manifesto dos 50. Os subscritores têm sido particularmente críticos com a forma como o segredo de Justiça é alegadamente violado de forma regular pela comunicação social. Vê esta questão como um problema estrutural do nosso Estado de Direito Democrático? E se vê, pretende, por exemplo, aumentar a pena do crime de violação do segredo de Justiça para permitir, por exemplo, escutas telefónicas para poder investigar este crime com mais eficácia?
A violação do segredo de Justiça é um crime. O segredo de Justiça existe para a proteção de uma maior investigação e também para a proteção do cidadão. Dito isto, o segredo de Justiça não é total. Existe em determinadas situações e em determinadas circunstâncias. Quando é violado, deve ser feita uma investigação séria e deve ser efetivamente punido.
Aumentando a pena pode significar, por exemplo, que os jornalistas estejam sujeitos a escutas telefónicas para tentar descobrir as suas fontes. Isso é uma medida proporcional, na sua opinião?
São coisas diferentes. Não é o jornalista que está a violar o segredo de Justiça.
É precisamente isso que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem refere e os nossos tribunais também.
Quem está a violar o segredo de Justiça é quem faculta a informação. Agora, também é verdade que é muito importante a liberdade de imprensa. Mas a imprensa também tem de ser livre. E livre, verdadeiramente livre. Nem o segredo de Justiça deve ser violado como forma de instrumentalizar algo em nome de alguma agenda. Nem o jornalismo e os jornalistas se devem deixar instrumentalizar, a meu ver. Não devem ser meros pombos de correio e devem fazer esse escrutínio. Porque estamos a falar de um tema muito sério. E acredito que os jornalistas, ou a grande parte deles, fará esse escrutínio.
A Direção Nacional da Polícia Judiciária, liderada por Luís Neves, terminou recentemente o seu mandato. Já há uma avaliação do Governo sobre a continuidade, ou não, desta Direção Nacional?
Ainda não terminámos essa análise. Eu e o sr. primeiro-ministro temos andado um pouco desencontrados. Encontramo-nos em reuniões de Conselho de Ministros que não é o sítio certo para esses balanços. Estamos em diálogo e em breve será tomada uma decisão.