A Rússia é um lugar estranho. Um enigma entalado entre todos os mundos, palco gigantesco das experiências políticas mais grotescas e das intrigas palacianas mais cruéis, vítima de uma História tão dura quanto o seu clima. A Europa admira o seu toque exótico, as cores de hussardo, os pós romanescos que a horda dourada deixou no território que ocupou por tanto tempo, a declinação bizantina da mentalidade ortodoxa; a Ásia admira a sofisticação europeia da Avenida Névski, as soirées de S. Petersburgo e a magnífica passadeira que lhe estendem dos Urais ao coração da Europa. Mas a Rússia, enxertada entre vários mundos e vários mitos, agarrada à ideia de Kiev como a nova Roma do império do meio, herdeira de Bizâncio, agarrada à bravura nórdica da Moscóvia que resgatou o país da invasão mongol, agarrada ao brilho europeu que a São Petersburgo de Gogól e de Andrei Bolkonsky exibiu, vive numa solidão do tamanho dela própria. Todas as dinastias europeias temeriam a marca Romanov, dinastia amaldiçoada por todo o tipo de tragédias familiares, envolta do princípio ao fim em panos trágicos. Nenhuma placidez oriental resistiria a falsos reis, à longa violência comunista ou ao complicado esquema político que Putin burilou para a antiga União Soviética.
Robert Service tem-se dedicado a estudar este país monumental. Já escreveu sobre Lenine, está a escrever sobre Putin e agora deixou-nos uma topografia dos últimos anos de Nicolau II, intitulada O Último dos Czares. O imperador aparece já deposto, prestes a morrer da maneira mais infame que a humanidade pode conceber. Assassinado junto com a sua família, uma mulher e cinco crianças, um deles doente a ponto de não conseguir aguentar-se em pé. Um fim trágico à altura da dinastia. Morre às mãos de uma Revolução que ao mesmo tempo se intitula popular e reconhece que nunca teria hipóteses no confronto popular se o imperador saísse à rua, que chama sanguinário ao homem que mata a sangue-frio, que toma por inimigo do povo um homem que pensa como ele. Robert Service não tem, como qualquer pessoa verá, simpatia nenhuma por Nicolau II. Se reconhece o desenvolvimento da Rússia durante o seu reinado, depressa ressalva que isso de nada serviu à população. Repudia o tradicionalismo simples do czar, exagera o seu anti-semitismo a ponto de comparar com Hitler um imperador que nunca teceu mais do que umas considerações amargas sobre aqueles que considerava responsáveis pela sua queda e antipatiza com o seu conservadorismo. Mesmo a um insuspeito historiador como Robert Service impressiona a solução bárbara que o bolchevismo encontrou para os destinos da família real. Falámos sobre ela e sobre a importância dos Romanov na Rússia presente. Service, a braços com um livro sobre Putin, está atento ao seu interesse por Nicolau II.
Comecemos pela personalidade de Nicolau II. O primo e cunhado dele, Alexandre Mikhailovitch, nas suas memórias (Quando eu era Grão-Duque) diz que Nicolau II tinha sempre a opinião da última pessoa que tinha falado com ele. O professor, por outro lado, diz que ele era um obstinado. O que me interessava saber era o que é que destruiu a imagem dele junto dos súbditos: o lado obstinado ou o lado volátil.
Foi precisamente por isso que escrevi o livro. Porque quando ele estava no poder era dúbio, dissimulado, e os ministros nunca sabiam o que é que ele pensava realmente. Mesmo as mais altas patentes do governo tinham dúvidas sobre o que czar pensava. Por isso quis olhar para o que ele foi dizendo às pessoas depois de já não estar no poder com a ideia de que já não precisaria de fingir. O que é que ele pensava que era o melhor para a Rússia era o cristianismo ortodoxo, o tipo de religião básica dos camponeses, o cristianismo que Rasputine de certa forma representava, as tradições da Rússia rural e, especialmente, a superioridade dos russos, quando metade da população do império não era russa. Nicolau II governava um império enorme e detestava acima de qualquer outra coisa os seus próprios súbditos judeus. É bastante claro pelos seus depoimentos que culpava os judeus pela sua queda. Julgava que havia uma conspiração judaica que levara os comunistas ao poder e dizia que todos os chefes comunistas eram judeus. Partilhava com Hitler a ideia de que a influência judaica era destrutiva. Era um fanático, fanático. Ao mesmo tempo, era um ser humano complexo, porque é possível ser um fanático e ainda assim amar os filhos, ter uma boa relação com a mulher e encarar com bons olhos o trabalho físico. Era um homem modesto, que teria sido muito mais feliz como um homem do campo do que como imperador.
Isso nota-se pela maneira como, mesmo preso, saudava os guardas, era simpático com eles…
Sim, um oficial de reserva a viver no campo, seria a vida mais adequada para ele.
Então acha que as mudanças de opinião eram mais como uma espécie de técnica diplomática que não funcionou? Pergunto porque a indecisão ou a fraqueza podem ser, mais do que a obstinação, fatais para um governante.
Sim. Ele era um rei esperto, dissimulado, os políticos conseguem ser muito dissimulados e ele era, mas tinha a certeza de que a direção em que estava a levar a Rússia era a certa. Tinha uma auto-confiança que os seus ministros nunca perceberam completamente.
Isso é importante, porque mais do que por uma verdadeira revolta popular, a queda de Nicolau II parece dever-se antes a um golpe palaciano. Os ministros aconselham-no a resignar, o seu amado exército luta mas os oficiais não o apoiam… Até que ponto é que a Revolução Russa é uma verdadeira revolta popular e não um cada vez mais descontrolado golpe palaciano?
Bom, Nicolau II caiu do poder por causa do que estava a acontecer nas ruas, mas também perdeu o apoio da aristocracia e dos altos comandos da nação. É por isso que a contra-revolução leva tanto tempo a organizar-se. Em 1917 não havia contra-revolução séria como houve em Munique ou em Berlim, por exemplo, em 1919. Na Rússia havia o sentimento de que era precisa uma nova liberdade, era um sentimento geral. Quem não gostasse ia para Sul, para a Ucrânia, viver no seu palácio no campo à espera que tudo acabasse. Dois a três milhões de pessoas saíram do país.
Talvez o povo o percebesse melhor. O czar era um homem religioso, muito ligado à piedade popular, nesse sentido mais próximo do povo. Não é estranha a revolta popular contra um homem que o professor caracteriza como um russo típico na forma de pensar?
Na Rússia do último século cada vez menos pessoas têm convicções religiosas fortes. É preciso lembrarmo-nos que os camponeses só cultivariam se o padre abençoasse os campos, não iriam colher se os padres não abençoassem as colheitas. Religião e vida quotidiana estavam muito ligados. Nicolau II, nesse sentido, era um russo típico, que seguia as diretrizes da igreja ortodoxa. Se lermos os diários dele vemos que observa os dias santos, as festas religiosas… Foi uma dor terrível para ele quando os comunistas o impediram de continuar a ir à igreja. Magoou-o mesmo. Os russos estavam a libertar-se dessa forma de pensar.
E com uma sanha inusitada. Nicolau II resignou de uma maneira pacífica. Não lutou, não resistiu, mas as coisas saem do controlo até chegarem ao ponto de lhe assassinarem a família inteira. Era preciso? É a fraqueza do imperador que deixa os revolucionários cada vez mais entusiasmados, o prazer da humilhação, o quê? Nicolau II não estava propriamente a resistir para ser preciso matá-lo…
Os comunistas temiam que se o imperador caísse nas mãos dos contra-revolucionários eles o usassem como bandeira. E além disso temiam que a velha afeição pelo czar pudesse regressar. Na Rússia, quem quisesse juntar um exército tinha de recrutar camponeses. Como é que seria possível rivalizar com um exército que tivesse o czar à cabeça? Os comunistas tomaram uma decisão clínica: era preciso eliminar essa possibilidade. Por isso quiseram livrar-se de todos os Romanov vivos. E fizeram-no, mataram não só Nicolau II, a mulher e os filhos, mas todos os outros Romanov. Até teriam matado a mãe do imperador se ela não tivesse fugido antes para a Ucrânia. Sítio que os alemães tinham ocupado, foi para território inimigo!
Já haveria por essa altura as experiências portuguesa ou espanhola de um rei pacífico no exílio, não era só Luís XVI. D. Manuel II nem apoia com grande entusiasmo as incursões monárquicas, só quer voltar se for democraticamente aclamado. Os russos tinham as duas experiências, sabiam que era provável que o rei exilado nem lutasse com grande veemência…
Pois, parece-me que Nicolau II sabia que o seu tempo já tinha passado.
E o filho, era impossível que o pobre miúdo, hemofílico, viesse a ser rei… Era preciso matar um doente?
Não havia cura para a hemofilia… Durante um tempo, depois da abdicação, penso que Nicolau II até se sentiu aliviado. O governo provisório tratou-o bem, num tempo em que muitos russos passavam fome, e ele foi bem tratado até pelos bolcheviques…
Era uma forma de mostrar aos países que emprestavam dinheiro à Rússia que o país não tinha caído outra vez nas mãos de uma horda sanguinária, que tinha um governo civilizado.
Sim, era uma decisão estratégica e matarem os Romanov também foi uma espécie de decisão estratégica. Os comunistas eram bem capazes de decisões clínicas deste tipo… E de qualquer maneira eles odiavam-no. Odiavam-no porque era Nicolau o sanguinário, que tinha piorado as condições nas prisões, que, com tanta coisa a melhorar na Rússia, com a Rússia a tornar-se a maior exportadora de cereais da Europa, com a indústria a avançar, com a cultura russa à frente do seu tempo, com o ballet, a música, a literatura fantásticas, não melhorava as condições da população.
Impressiona acima de tudo o assassinato bárbaro de cinco crianças. Por toda a Europa da altura houve atentados contra reis, príncipes, grão-duques, mas este parece mais cruel do que qualquer outro, com todos fechados numa cave, é sinistro…
Sim, é particularmente bárbaro, mas a Rússia estava a cair na barbárie de uma guerra civil. Havia milhões de pessoas armadas pela Rússia fora. Era um país com demasiada experiência de conflito armado. Presa na ideia de que a violência era a forma mais rápida de resolver um problema social. Daí que a paciência estivesse em baixo.
A monarquia, pelo menos no plano externo, podia em parte funcionar como um remédio contra isso. De alguma maneira, os parentescos entre as famílias reais funcionavam como uma forma de suavizar a guerra. Era primos, que se tratavam como inimigos, mas não como monstros contra quem tudo valia. As ligações entre casas reais eram também um fator de paz, mesmo em tempo de guerra. Com a queda delas não houve substituto.
Não sei bem se isso funcionaria. No fim de contas, Guilherme II na Alemanha foi lesto a começar uma guerra com a Rússia. O parentesco com Nicolau II não o travou e não impediu Nicolau II de se atirar para a guerra com entusiasmo. As ideias de honra nacional ou imperial eram fundamentais para as monarquias, ideias essas que a esquerda em geral não partilhava (em 1914 o pacifismo estava quase todo na esquerda). As ligações familiares podem ajudar a concertar a paz, mas as atitudes familiares dentro das famílias reais eram envenenadas por noções fortes de nacionalismo que concorriam contra a paz.
A contra-revolução mais expressiva vem da Ucrânia. Sobretudo da Crimeia, o lugar de exílio da nobreza, o lugar em que o imperador é mais acarinhado e o império mais querido. Isto não complica a situação dos dias de hoje da Crimeia, no sentido em que há uma ideia antiga de fidelidade à Rússia?
Sim. E se lermos as entrevistas de Putin vemos que ele diz muitas vezes “somos o mesmo povo”. Ele não aceita que os ucranianos são diferentes, que votaram pela independência. É um típico imperialista russo. A política ucraniana e as aspirações dela à independência tiveram sempre esta sombra por detrás. Já em 2008, na conferência da Nato em Bucareste, Putin disse-o diretamente: “Não pensem que não haverá consequências se expandirem a Nato até à Ucrânia”. A Ucrânia não entrou na Nato, mas o que Putin queria dizer era para não se olhar para a Ucrânia como um país como a Polónia. A Rússia tem um interesse particular na Ucrânia.
Historicamente, a fundação da Rússia vem de Kiev e Novgorod, a Ucrânia tem um valor simbólico muito grande…
E quando Putin anexou a Crimeia pôs uma grande ênfase no facto de a Crimeia ser o território de muitos dos primeiros cristãos ortodoxos. É um lugar sagrado para os ortodoxos. Estamos a falar de uma mentalidade que tem o território como realmente seu. Se não for agora será noutra altura e ninguém pense que será de outros. É muito perigoso.
Na Crimeia há muita gente com essa mentalidade. É um problema complicado: pode um povo ser independente contra a sua própria vontade?
É verdade, há muitos russos na Crimeia, muita gente que só fala russo. Mas por todo e por junto é uma terrível coisa de se fazer, entrar com um exército num território como Putin fez.
O mito da Rússia anda muito à volta de Kiev, da ideia da Nova Roma, da Terra Sagrada. Com os Romanov, Pedro I, e a aproximação da cultura russa à cultura europeia, o mito adormeceu um pouco. Mesmo Nicolau II interessava-se mais pela grandeza da Moscóvia. Putin ressuscita a importância da Ucrânia ou é uma estratégia de fortalecimento da mesma Rússia Moscovita de Nicolau II?
Putin está muito interessado em Nicolau II. É um dos entusiasmos da sua vida. Sei, através de diplomatas britânicos, que quando lhe entregaram um volume de documentos desclassificados do ministério dos negócios estrangeiros britânicos, como presente, há dez anos, os únicos em que estava interessado eram os que tinham que ver com a morte de Nicolau II. Examinou-os com atenção, e isto não é apenas um interesse artificial, ele quer construir uma Rússia sem Revolução. Nós no Ocidente julgamos muitas vezes que Putin é um comunista veterano e um antigo tenente esquerdista do KGB e que portanto pensa exatamente como Brejnev ou Khrushchev ou Estaline. Mas isto é só parte da História. Ele quer construir estabilidade e saúde financeira, quer a elite a usar os recursos do país para seu próprio proveito, pelo que a ideia de revolução é terrível para ele. E isto explica porque é que ele está tão interessado na tragédia pessoal de Nicolau II. Ele não quer tornar-se o simples Vladimir, ou o Putin trancado em casa e executado num celeiro. Não quer gente a protestar na rua como os operários de 1917, e por isso tem certa simpatia por Nicolau II. É um ex-comunista, sim, mas um anti-comunista no que diz respeito ao que os comunistas fizeram a Nicolau II. Percebe-se porquê. Ele também é, como o imperador deposto, um conservador social. Não partilha as ideias dos progressistas ocidentais. Tem a ideia de que os valores tradicionais das famílias russas – incluindo o poder do pai sobre a família – são ideias virtuosas que mantêm a sociedade unida. Se olharmos para a Rússia das vésperas de 1917 há novos modos de vida a surgir, tal como na URSS nos tempos de Gorbachev, depois nos tempos de Ieltsin e mesmo agora na era Putin. Nicolau II e Putin partilhavam a ideia de que só os valores tradicionais podem manter a sociedade estável. Pelo que há uma boa dose de continuidade entre eles.
Há uma grande diferença: Putin caiu nas boas graças do povo, como Trump, Le Pen, ou quem quer que seja pelas suas ideias “conservadoras”. As ideias “conservadoras” deles são populares. Com Nicolau II aconteceu o oposto, porquê?
Ah, é uma pergunta interessante! Uma pergunta muito interessante! Muito difícil de responder… Parece-me… É mesmo uma boa pergunta… Acho que a resposta está no facto de os russos, entre meados dos anos 80 e o fim dos anos 90, terem atravessado um período de grande, grande instabilidade. No fundo perderam uma guerra, perderam a Guerra Fria e sofreram uma grande depressão económica. É uma experiência perturbadora – a Alemanha passou pelo mesmo no fim dos anos 20 e aconteceu o que aconteceu. Numa escala ligeiramente diferente passa-se o mesmo com a Rússia. Nessas circunstâncias não surpreende que o povo russo aprecie um homem que restaure a ordem, a estabilidade. Isto tem muita importância, ainda mais se algumas das condições materiais melhorarem. E melhoraram entre 2000 e 2013/14. Não por mérito de Putin. Deve-se à subida do preço do petróleo. Qualquer um conseguia ter feito o mesmo. Se Ieltsin tivesse vivido mais tempo e tivesse sido menos bêbedo conseguiria fazê-lo. Qualquer um conseguia, mas Putin ficou com os louros. Embora tenha muita popularidade, há muita desconfiança entre os Rússia em relação à maneira como a economia é dirigida, tal como em relação à política ou à sociedade. Há muita desconfiança, de tal forma que a bolha pode rebentar de repente. Ainda não aconteceu, mas pode acontecer. Por isso é que Putin tem tanto interesse em dizer “não à Revolução, não devíamos ter matado Nicolau II!”. Eu estou a escrever um livro sobre Putin e descobri uma série de comentários dele sobre este assunto. “Porque é que precisavam de matar as crianças?” Isto mexe realmente com ele. E claro que mexe – ele não quer ter o mesmo destino que os Romanov! Quando os russos se revoltam, explodem. 1905, 1917, 1921, muito perto disso em 1953, 1962, 1989, estas coisas já aconteceram, e mais vezes na Rússia do que em qualquer outro país da Europa.
A morte dos Romanov destrói o mito do primeiro comunismo como um comunismo mais puro e pacífico, estragado por Estaline, como Gorbachev gostava de advogar. A morte dos Romanov mostra a violência do Leninismo.
Esta foi a execução mais conhecida, mas houve muitas outras. Havia também o hábito de tomar reféns e matar inocentes desarmados. Estava sempre a acontecer durante os meses mais revolucionários. Gorbachev realmente tinha uma visão não histórica, idealizada de Lenine. Conheci-o no princípio dos anos 90. Encantador, até me perguntar que época da História eu estudava e eu lhe ter respondido que estava a escrever uma biografia de Lenine. Interrompeu imediatamente a conversa. Parece-me que soube que iria acabar numa discussão embaraçosa. Foi imediato. Arrependo-me de o ter dito, porque queria mesmo ter falado com ele.