Não havia volta a dar, era para um lado ou para outro. Quis o destino dos cruzamentos após a fase de grupos que os dois primeiros encontros dos quartos colocassem em confronto quatro antigos campeões europeu que em conjunto tinham mais de metade dos títulos na competição (nove em 17). Alguém teria de cair e a “fava” tocou a Alemanha e Portugal. Quer isso dizer que a forma de digerir o insucesso é igual? Não. Os germânicos, até por serem os anfitriões do torneio, ficaram desapontados com a derrota no penúltimo minuto do prolongamento, mas tiveram um percurso convincente, com boas exibições, muitos golos e a capacidade de reaproximar a Mannschaft dos adeptos. Já a Seleção entra quase num paradoxo ao fim de cinco encontros na competição, mostrando o mau que não mostraram mas caindo quase esteve à altura.

Porque ganhar a lotaria duas vezes seguidas é demais (a crónica do Portugal-França)

Há muito que se percebera que o estado de graça de Roberto Martínez mudara, na sequência da melhor fase de qualificação de sempre que não teve continuidade no torneio final. A entrada com a Rep. Checa tornou-se um jogo ziguezagueante em que um encontro nos descontos tirou a equipa de um beco sem saída, o triunfo diante da Turquia estabilizou a equipa, a derrota com a Geórgia deixou a nu demasiados erros individuais com reflexo no coletivo, a passagem nos oitavos diante da Eslovénia trouxe mais perguntas do que respostas. Agora, com a França, Portugal conseguiu aquela que globalmente foi a exibição mais consistente mas perdeu no desempate por grandes penalidades. É esse o paradoxo que fica numa Seleção com duas faces.

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A versão regenerada 2.0 de Ronaldo tropeçou na ansiedade do próprio Ronaldo

Quando Roberto Martínez assumiu o comando da Seleção, na sequência da saída de Fernando Santos depois do Mundial do Qatar, Cristiano Ronaldo enfrentava pela primeira vez um contexto desfavorável. Mais: havia até a dúvida, de certa forma alimentada pelo próprio, se teria ou não chegado ao fim um percurso de 20 anos no conjunto nacional. O técnico espanhol nunca abriu o jogo em relação ao futuro do capitão, remetendo a “decisão” para a primeira convocatória que fizesse. No entanto, há muito que tudo estava definido ou não tivesse sido o número 7 um dos primeiros jogadores com quem Martínez falou, neste caso na Arábia Saudita. Ronaldo prometeu uma versão regenerada 2.0, o treinador criou espaço para uma versão regenerada 2.0. Ambos ganharam essa aposta, a ponto de serem os próprios números a defender a aposta no avançado.

Faltava o teste decisivo depois de uma qualificação irrepreensível onde lutou até pelo “título” de jogador com mais golos no apuramento (que ficaria para Romelu Lukaku). Aí, falhou. A questão de jogar ou não na Liga saudita foi levantada, os números com 50 golos em 51 jogos oficiais pelo Al Nassr desviavam o ângulo para outras vertentes. Não era por isso que Ronaldo estaria melhor ou pior, até porque em termos físicos estava há muito a trabalhar perspetivando o Europeu a possibilidade de jogar de quatro em quatro dias. O que acabou por acontecer? Aos 39 anos, Ronaldo traiu Ronaldo. Foi o primeiro a jogar em seis fases finais, tornou-se o mais velho a fazer uma assistência na prova, igualou Karel Poborsky como jogador com mais passes para golo, não atingiu o “resto”. O que era o resto? Ser o Ronaldo que queria ser. Decisivo. Impactante. Vencedor. Desequilibrador. À exceção de alguns momentos com a Rep. Checa e a Turquia, passou ao lado daquilo que deveria ser dele por direito próprio mas nem por isso deixou de jogar quase todos os minutos da competição.

A equipa que “esmagava” em golos acabou com 364 minutos consecutivos de jejum

Uma das imagens de marca que ficou de Portugal durante a qualificação e até do particular de março com a Suécia (nesse caso, o teste na Eslovénia foi uma exceção) era a capacidade de criar oportunidades e marcar golos. Não podia ser de outra forma: por um lado, a equipa nacional jogava com e sem bola de uma forma que permitia colocar várias unidades em zonas de finalização, quase como se as outras equipas não tivessem metros do meio-campo para a frente perante o desgaste a que eram obrigados do meio-campo para atrás, fosse pelo envolvimento dos laterais, fosse pelas diagonais dos alas, fosse pelos movimentos de rutura feitos pelos médios; por outro, a Seleção tinha um leque de jogadores que arriscava ser o melhor, mais vasto e até mais “completo” de todos (daí as dificuldades em fazer a lista de 26 admitidas pelo próprio Martínez). O Euro, com exibições de qualidades distintas, arrancou com cinco golos em dois jogos. Bom. O Euro acabou com 364 minutos sem golos, entre Turquia, Geórgia, Eslovénia e França. A força passou a fragilidade.

Há várias explicações para isso. Algumas mais óbvias, como o facto de haver uma falta de eficácia levada ao limite de haver grandes penalidades defendidas como aconteceu no caso de Ronaldo com a Eslovénia. Outras menos visíveis mas que tiveram o seu peso, não tanto na eliminação com a França que teve Maignan a travar três bolas e golo entre outras oportunidades mas nos encontros com a Geórgia e com a Eslovénia. Os alas não apareceram como era normal, os médios pouco se juntaram a zonas de finalização, o envolvimentos dos dois laterais foi importante, criou desequilíbrios mas pecou no último passe. A isso juntou-se também a quebra nos esquemas táticos. Olhando apenas para os cantos, os mesmos cantos através dos quais Portugal marcara à Finlândia e à Rep. Irlanda antes da partida para a Alemanha, foram 47 (média superior a nove por jogo) sem golos ou sequer chances flagrantes de visar a baliza contrária. O plano ofensivo acabou bloqueado.

As experiências táticas que promoveram o erro e a forma ziguezagueante de ler o jogo

Quando parecia ter definido um modelo tático que privilegiava o 4x3x3 ou o 4x2x3x1 consoante os terrenos que Bruno Fernandes e/ou Vitinha iam pisando, o último teste com a Rep. Irlanda voltou a trazer uma linha de três quase que em “resposta” ao que se passara na derrota com a Croácia. Afinal, era mais do que isso. A estreia com a Rep. Checa trouxe esse esquema sem ter propriamente grande sucesso, o jogo com a Turquia devolveu a “normalidade” também a esse nível não apenas pelos três médios mas também por estar João Palhinha em campo, o encontro com a Geórgia foi outro momento falhado desse caminho com um desastre no regresso à linha de três – com a agravante de alguns elementos pisarem zonas menos confortáveis, como ficou evidente em muitos erros individuais que prejudicaram o coletivo. Depois, nova volta para o 4x3x3.

Muito calor? Então aqui vai um banho de humildade a água fria (a crónica do Geórgia-Portugal)

Roberto Martínez foi feliz nas alterações que fez no jogo de estreia, lançando em campo em cima do minuto 90 Pedro Neto e Francisco Conceição para trabalharem o golo decisivo para o triunfo com a Rep. Checa. E não se pode dizer que tenha falhado na leitura que foi fazendo dos momentos de jogo com a França, tendo um bom rendimento com apostas em Francisco Conceição ou Nelson Semedo. Pelo meio, foi errático. Muito errático. As mexidas com a Geórgia pareciam obedecer mais ao que estava previamente pensado do que a uma reposta ao que se passava em campo, as alterações com a Eslovénia só compensaram por Diogo Jota. Mais: diante dos eslovenos, as substituições pareceram respeitar em demasia os estatutos e hierarquias em vez de fazerem prevalecer o que a equipa precisava. Um exemplo (deixando agora Gonçalo Ramos de parte): Portugal não marcava, Leão saiu e Jota, motivado pela entrada com a Eslovénia, não saiu do banco.

O joker de outras fases finais não apareceu e a equipa ficou curta nos seus desempenhos

As melhores campanhas de Portugal nas últimas fases finais encontram sempre o seu joker para fazer depois a diferença. O que representa essa figura? Não é propriamente um titular ou um suplente, é alguém que vai para a competição e surge uns furos acima para empurrar a equipa para aquele bocado em falta num jogo. Alguém como Renato Sanches ou Quaresma, que em 2016 foram decisivos em momentos chave da campanha que terminou com a conquista do título europeu. Alguém como Gonçalo Ramos, que em 2022 teve o “peso” de substituir Ronaldo como titular num encontro a titular e acabou com um hat-trick. Alguém como ainda foi Francisco Conceição no encontro inaugural sem continuidade de aposta e, por consequência, influência.

A Seleção teve um Diogo Costa sempre a bom nível na baliza, laterais com exibições seguras sobretudo por Nuno Mendes e João Cancelo, centrais como Pepe e Rúben Dias que constituíram uma das melhores duplas da competição (e aqui a análise tem de passar ao lado das experiências com a tal linha de três, que teve esse ponto baixo do jogo com a Geórgia com ambos de fora), um Palhinha a confirmar o lugar de indiscutível e um Vitinha a mostrar o salto que deu como jogador desde que passou a trabalhar com Luis Enrique. Depois, e em contrapartida, Rafael Leão teve momentos em que desequilibrou mas sem a continuidade que era prevista, Bruno Fernandes e Bernardo Silva apresentaram-se uns furos abaixo do esperado e Ronaldo passou ao lado do Europeu. Faltou o tal joker, apesar do contributo sempre positivo que Francisco Conceição foi tendo.

O crédito que Martínez perdeu e o número que fica num jogo em que a equipa esteve à altura

Olhando de forma fria e racional para o trajeto de Portugal de forma mais “macro”, cumpriu ao passar o seu grupo na primeira posição e teve esse “azar”, que podia também ter tocado à França, de ser a Áustria a ficar na frente do grupo D atirando os gauleses para o “lado mau” do quadro de cruzamentos. Perder nos penáltis com a vice-campeã mundial, mesmo sendo nos quartos, é frustrante pela ambição que a Seleção apresentava de conquistar o título mas não “choca”. O trajeto, esse, não pode ser analisado da mesma forma, sendo óbvio que Roberto Martínez perdeu muito do crédito que ganhou na qualificação 100% vitoriosa e até na forma de comunicar. A forma como analisa os encontros à luz de ganhos abstratos e a médio prazo deixou de ser visto da mesma forma, a maneira como Portugal chegou até aos quartos não foi esquecida. No entanto, e em mais um ponto paradoxal a toda esta história no Euro-2024, a Seleção caiu quando esteve mais à altura.

Poder-se-á falar de vários pontos do encontro com a França, entre os posicionamentos às vezes demasiado recuados dos médios ou a incapacidade de colocar mais unidades perto de Ronaldo em alguns momentos. No global, Portugal fez um bom jogo. Não permitiu muitas oportunidades aos gauleses apesar de ter sofrido mais num período de dez minutos do segundo tempo, criou chances de golo a ponto de Maignan ter intervenções bem mais decisivas do que Diogo Costa, percebeu e respeitou os momentos de jogo mesmo que não tivesse a capacidade de desfazer o nulo. A sensação de desapontamento entronca naquilo que a equipa não fez nos encontros anteriores do que no que conseguiu fazer com os gauleses e a maneira como a equipa procurou Ronaldo na área com um cruzamento conseguido em 23 tentados fica como última imagem.