A conta pública de Instagram de Rui da Fonseca e Castro tem muito pouco a ver com a presença do juiz, agora suspenso, nas redes sociais. Uma mão cheia de fotografias suas, poucas acompanhado, algumas dos seus gatos, mas, essencialmente paisagens ou detalhes urbanísticos.
É preciso recuar até 4 de fevereiro de 2020, antes do primeiro caso de Covid-19 em Portugal, para ouvi-lo falar sobre o novo coronavírus, o tema que agora está no centro das várias polémicas que envolvem o juiz, o mesmo que, enquanto advogado, criou o movimento “Juristas pela Verdade”.
Nesses primeiros dias de surto de Covid, discutia-se a possibilidade de colocar em quarentena compulsiva pessoas chegadas da China, país onde o SARS-CoV2 surgiu pela primeira vez, por haver um risco acrescido de terem estado expostas ao vírus. A Fonseca e Castro não restavam dúvidas: havia “uma impossibilidade legal” do recurso a esta medida de forma coerciva.
Depois desse primeiro vídeo, são raras as publicações relacionadas com o tema na sua página de Instagram. Mas a história seguiu o seu curso noutra rede social.
Em 2020, no dia de Natal, o então advogado anunciava que aquela conta iria voltar a ser exclusivamente dedicada à fotografia: “As publicações referentes ao tema da fraudemia serão transferidas para a conta Juristas pela Verdade.” Com pouco mais de 1.700 seguidores e 25 publicações, nunca foi o Instagram o verdadeiro megafone do movimento anti-confinamento. Foi no Facebook, onde tem mais de 15 mil fiéis, que os vídeos chegaram a centenas de pessoas desde a criação da página a 30 de outubro de 2020.
Naquela plataforma, Rui da Fonseca e Castro — que gozava uma licença sem vencimento depois de, em 2011, ter trocado a magistratura judicial pela advocacia — comunicava com os seguidores através desses vídeos. Era neles que explicava como os cidadãos se podiam defender caso violassem as regras impostas para combater a pandemia.
Também ali surgiu o Caderno de Minutas. Trata-se de um conjunto de documentos legais, várias vezes considerado como uma forma de incitamento à desobediência civil, mas que para os “Juristas pela Verdade” não passa de uma ferramenta para a defesa de direitos fundamentais.
Isso mesmo se defende na apresentação do compêndio: “Vivemos tempos de graves restrições ao exercício de direitos, liberdades e garantias” e a supressão de importantes direitos fundamentais tem sido prosseguido “por diplomas sem forma ou força de lei.” Assim, pode ler-se na nota assinada pelo juiz, o caderno serve para os cidadãos fazerem “valer os respetivos direitos, com ou sem recurso a serviços advocatícios”.
As minutas servem para defesa em casos tão diversos como o não uso de máscara na via pública, circulação entre concelhos, não recolhimento domiciliário, não encerramento de atividade de estabelecimento ou consumo de bebidas alcoólicas na via pública. Enquanto advogado, Fonseca e Castro representou os donos do polémico restaurante Lapo, que abriu as portas durante o confinamento.
Restaurante Lapo, em Lisboa, fez festa e cantou “Grândola Vila Morena”
Há também minutas de queixa-crime pela imposição de testagem de menores e várias outras para endereçar às escolas: não consentimento de testagem de aluno ou contra o uso de máscara por menores nos estabelecimentos de ensino.
Mas foi a minuta de queixa-crime contra agentes ou militares das forças de segurança e, em especial, a minuta número 14 — Orientações sobre como proceder no caso de fiscalização policial por não cumprimento do dever de recolhimento domiciliário — que mais polémica causou. O juiz foi acusado de estigmatizar a PSP e a GNR, acusação que sempre negou.
“Não é uma postura de um juiz. Está a representar o Estado e, ao mesmo tempo, a combatê-lo. Os militares de Odemira temem que o juiz não seja imparcial”, criticou César Nogueira, do Sindicato da GNR, em declarações ao Correio da Manhã.
A queixa da PSP que acabou em suspensão
No início deste mês, a PSP denunciou o juiz ao Conselho Superior da Magistratura. O motivo? Apelo à desobediência civil durante uma entrevista, dada enquanto ainda exercia como advogado, e publicada no Facebook, avançava o Expresso. Esta quinta-feira, foi suspenso preventivamente e a sua primeira reação nas redes sociais foi garantir que vai “continuar a falar na qualidade de juiz” e que terá “mais tempo disponível para ajudar a população a ficar consciente dos seus direitos”.
Voltando ao início, à entrevista que originou a queixa, Fonseca e Castro explica nesse vídeo que, em caso de detenção por desobediência por recusa em voltar para casa durante o confinamento, os visados devem ficar em silêncio e fazer queixa contra os agentes por “abuso de poder”. “Não obedeçam”, apelava.
Na véspera da publicação da notícia do Expresso, o próprio juiz anunciava, também em vídeo, que tinha sido notificado da abertura de um inquérito disciplinar, estando em causa a violação do dever de reserva. “Em geral, como juiz de direito, nunca tive qualquer problema em observar o dever de reserva. Sucede, porém, que nos encontramos em tempos que fogem completamente à normalidade”, defendia, falando em ataque violento e sistemático aos mais elementares direitos fundamentais.
“Não está em causa qualquer pandemia, mas outrossim a subtração dos nossos direitos, liberdades e garantias. Quem não se pronuncia, quem não reage, irá tornar-se cúmplice. É tempo de nos unirmos e de lutarmos pelo que acreditamos. Da minha parte, podem esperar que nunca me calarei, nunca baixarei os braços”, terminava o juiz.
Já depois de conhecida a queixa da PSP, Fonseca e Castro identificou, num novo vídeo, cada um dos agentes que fizeram queixa contra si, envolvendo diretamente o diretor nacional da PSP, Magina da Silva.
O adeus aos “Juristas pela Verdade”
A 1 de março deste ano, depois de ter submetido o pedido ao Conselho Superior da Magistratura e de ter obtido luz verde, Fonseca e Castro voltou aos tribunais como juiz, tendo sido colocado em Odemira. A partir desse momento, passou a estar obrigado ao dever de reserva, ou seja, a abster-se de falar sobre temas que trata ou que pode vir a tratar, algo a que não estava obrigado nos 10 anos anteriores, enquanto exerceu como advogado.
Foi exatamente essa transição de funções que o obrigou a abandonar o movimento “Juristas pela Verdade”, fundando um novo, o “Habeas Corpus”. É lá que continua a publicar os seus habituais vídeos sobre temas relacionados com a pandemia, como o passaporte sanitário ou os números de contágios.
E é nessa nova página de Facebook que explica aos seus seguidores ter mudado de funções: “Não obstante gostar muito do exercício da advocacia, sobretudo na área criminal, entendi que deveria regressar agora à judicatura, ou seja, ao desempenho de funções como titular de um órgão de soberania com competência para administrar a justiça em nome da população, de forma independente e obedecendo apenas à Constituição e à lei.”
Rui da Fonseca e Castro lembra que, apesar dos impedimentos a que se encontra agora sujeito, os mesmos não o “impedem de continuar a ajudar as pessoas de outras formas”, através da produção e divulgação de material jurídico de natureza informativa. “Embora não possa agora comentar sobre casos concretos, continuo a poder fazer a análise de situações jurídicas e a denunciar a prática de crimes de natureza pública de que tome conhecimento. O Caderno de Minutas continuará também a ser desenvolvido e há muitos temas jurídicos com reflexos diretos na vida das pessoas que pretendo desenvolver. Há muito trabalho pela frente”, escreveu a 5 de março.
“Quanto a um discurso de pendor mais político, terei agora que me conter, em função do impedimento estatutário a que aludi supra. Chegará o momento adequado para o efeito, sendo que, de qualquer forma, já tive oportunidade de partilhar convosco a minha visão sobre a situação político-constitucional da Nação. Temo que essa visão não se atenuará, sendo outrossim previsível que se agrave”, fez questão de acrescentar.
Entre as várias declarações polémicas feitas ainda como advogado, conta-se, por exemplo, o ataque ao Presidente da República. O juiz acusou Marcelo Rebelo de Sousa de, por pertencer a uma “elite”, ter tratamento privilegiado quando testou Covid positivo. Nos seus vídeos também garantiu que não acataria o isolamento profilático. “Se alguém me pusesse em isolamento, eu — é uma posição que tenho pública — não cumpro.”
Esta quinta-feira, dia em que foi suspenso preventivamente, foi conhecida a mais recente polémica. Segundo a SIC, o juiz terá interrompido uma sessão de julgamento no Tribunal de Odemira porque o procurador e um funcionário recusaram tirar a máscara. A sua versão dos factos foi outra.
Num direto no Facebook, o juiz argumentou não poder julgar alguém de cara tapada. “Deixa de haver obrigatoriedade de utilização da máscara na sala de audiências devido à incompatibilidade com a atividade que é a apreciação da prova. Essa atividade obedece aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova”, argumentou, considerando que tal não é possível se as pessoas tiverem a cara tapada.
O juiz, nas suas palavras, emitiu um despacho onde dizia ser impossível o arguido e as testemunhas terem a cara tapada, mas dando a opção aos restantes para também tirarem as máscaras. Quase todos o terão feito: “O único que não tirou a máscara foi o senhor procurador que se opôs a que a audiência fosse realizada com pessoas sem máscara”, acrescentou.
O Observador tentou chegar à fala com Rui da Fonseca e Castro, mas não obteve qualquer resposta. No vídeo desta quinta-feira, o juiz agora suspenso afirma “não precisar de jornalistas para nada”, não pretendendo falar com “órgãos de propaganda oficial”, termo que usa para se referir à comunicação social.