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AFP/Getty Images

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Salazar. A história e os detalhes do atentado à bomba de 1937 de que o ditador escapou

Foi há 80 anos que uma explosão na Rua Barbosa du Bocage, em Lisboa, motivou a pergunta "quem quis matar Salazar". O Observador faz a pré-publicação de um novo livro que conta os detalhes do atentado.

Era domingo, dia 4 de julho de 1937. António de Oliveira Salazar chegava à capela onde iria assistir à missa, na Rua Barbosa du Bocage, em Lisboa. Foi nesse momento que explodiu a bomba que provocou muitos estragos mas que não atingiu o Presidente do Conselho. Ainda que falhado, foi o mais sério atentado à vida do governante português. E o novo livro do historiador António Araújo (que chega às livrarias a 10 de Novembro) conta a história, os detalhes, os envolvidos, as investigações e as consequências desta explosão. O Observador faz a pré-publicação de um excerto.

“Matar o Salazar”, de António Araújo (Tinta-da-China, editado a 10 de Novembro)

“Em 4 de Julho de 1937, cerca das 10 horas da manhã, quando saía do seu automóvel oficial para assistir à missa na capela da casa de Josué Trocuado, na Avenida Barbosa du Bocage, o doutor António de Oliveira Salazar foi vítima de um atentado à bomba.

O ditador escapou incólume de uma violenta explosão que, além de avultados danos materiais na Avenida Barbosa du Bocage e artérias vizinhas, não provocou vítimas. Esta seria, se não a única, a mais grave tentativa de atentado que Salazar sofreu em toda a sua longa carreira política.

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A comoção suscitada em todo o país foi habilmente capitalizada pelo Presidente do Conselho e pela sua máquina de propaganda. Com o apoio declarado da Igreja e dos mais altos clérigos, rezaram-se missas de acções de graças por toda a parte, tendo o desfecho do atentado contribuído, em boa medida, para consolidar a imagem providencialista desde sempre associada à figura de Oliveira Salazar, restaurador das finanças pátrias e condutor dos destinos da nação. No tenso relacionamento com o Presidente Óscar Carmona, a posição do chefe do Governo sai reforçada, o mesmo sucedendo com as forças armadas, que dois dias depois promovem uma gigantesca manifestação de apoio a Salazar nos Passos Perdidos da Assembleia da República. Tratou-se de um gesto de grande significado, tendo em conta o mal-estar suscitado nas casernas – e, em especial, junto da velha oficialidade republicana – pelas reformas da instituição militar levadas a cabo por Salazar e Santos Costa em 1936 e nos anos subsequentes.

Ao dirigir-se aos oficiais presentes em São Bento, o Presidente do Conselho debruçar-se-á sobre a aliança luso-britânica. Também nesse plano, o malogro do atentado acabará por favorecer a situação, melhorando as relações com os ingleses numa altura em que Londres encarava com alguma desconfiança o apoio manifesto das autoridades portuguesas aos nacionalistas espanhóis.

O sucesso desta operação bombista motivará os seus autores a desenvolver o mais ambicioso dos projectos, matar Salazar. A ideia inicial consistia em imobilizar a viatura em que o chefe do Executivo se dirigia e, então, liquidá-lo a tiros de metralhadora. Para o efeito, o grupo que levou a cabo a acção das «bombas dos ministérios» inicia os preparativos desse atentado, procurando, sem sucesso, sequestrar dois taxistas de Lisboa no pinhal da Freixofeira, na zona de Torres Vedras, com vista a apoderar-se dos seus automóveis

A Guerra Civil de Espanha constitui, na verdade, o elemento de enquadramento externo mais importante da acção bombista na Avenida Barbosa du Bocage. Um dos envolvidos na preparação do atentado, o anarquista Emídio Santana, estivera presente no Congresso da CGT em Saragoça, nas vésperas da Guerra Civil, comprometendo-se a desenvolver acções de apoio aos seus correligionários espanhóis. E, mais decisivamente, no início de 1937 tem lugar a acção que ficou conhecida por «bombas dos ministérios», com a deflagração, num curtíssimo lapso temporal, de engenhos explosivos em vários departamentos governamentais e em instituições ligadas a interesses espanhóis em Portugal.

O sucesso desta operação bombista motivará os seus autores a desenvolver o mais ambicioso dos projectos, matar Salazar. A ideia inicial consistia em imobilizar a viatura em que o chefe do Executivo se dirigia e, então, liquidá-lo a tiros de metralhadora. Para o efeito, o grupo que levou a cabo a acção das «bombas dos ministérios» inicia os preparativos desse atentado, procurando, sem sucesso, sequestrar dois taxistas de Lisboa no pinhal da Freixofeira, na zona de Torres Vedras, com vista a apoderar-se dos seus automóveis. O fracasso da operação não leva os seus autores a desistir do intento de assassinar o Presidente do Conselho. E é assim, em síntese, que acabam por instalar uma bomba de dinamite num colector da Avenida Barbosa du Bocage. A deficiente colocação desse engenho faz com que a explosão, apesar de estrondosa, não cause mortos nem sequer feridos.

Logo no próprio dia do atentado, começam as buscas para capturar os responsáveis por um gesto considerado hediondo pela imprensa da época e condenado inclusivamente nas páginas do Avante! A PVDE tomará o controlo das investigações, levadas a cabo não pela Secção de Defesa Política e Social, na altura chefiada pelo capitão Maia Mendes, mas pelo gabinete do próprio director, Agostinho Lourenço, tutelando o trabalho operacional coordenado pelo capitão José Ernesto Catela, secretário-geral da polícia política. A pressão para apresentar resultados, a par de uma grande dose de amadorismo, acaba por levar à captura de um conjunto de homens – conhecido na imprensa como «grupo terrorista do Alto do Pina» – que são apresentados nos jornais como os autores do atentado contra Salazar. Mais do que isso, a PVDE insistia na tese de que o crime fora preparado por comunistas, com ramificações internacionais ao Comintern e à Rússia dos sovietes.

Logo no próprio dia do atentado, começam as buscas para capturar os responsáveis por um gesto considerado hediondo pela imprensa da época e condenado inclusivamente nas páginas do Avante!. A pressão para apresentar resultados, a par de uma grande dose de amadorismo, acaba por levar à captura de um conjunto de homens – conhecido na imprensa como «grupo terrorista do Alto do Pina» – que são apresentados nos jornais como os autores do atentado contra Salazar.

A publicitação do nome destes suspeitos e o relato pormenorizado – e laudatório – das investigações dirigidas pelo capitão Catela levantam dúvidas num antigo dirigente da polícia política, o capitão Baleizão do Passo, comandante de divisão da Polícia de Segurança Pública. Baleizão do Passo decide desenvolver a sua própria investigação, fazendo-o a título particular ou, melhor dizendo, sem dar conhecimento aos seus superiores hierárquicos e não envolvendo oficialmente a PSP. Curiosamente, Baleizão do Passo, nas suas investigações, não hesitará em contactar elementos da Secção de Defesa (ou Vigilância) Política e Social da PVDE, a começar pelo seu director, o capitão Maia Mendes. Por aqui se vê que, além de conflitos de natureza pessoal entre Baleizão do Passo e a cúpula da PVDE, existiam atritos no interior da própria polícia política, porventura motivados pela circunstância de as investigações deste crime não terem sido atribuídas à Secção de Vigilância Política e Social. Munido de informações fiáveis sobre os verdadeiros autores do atentado, Baleizão do Passo tem um gesto ainda mais ousado, contactando o poder político na pessoa de um seu conhecido, o influente subsecretário de Estado das Finanças, João Pinto da Costa Leite (Lumbrales), que, por sua vez, fala com o ministro do Interior, Mário Pais de Sousa. É improvável que Salazar desconhecesse estas movimentações, ademais tratando-se de um caso que envolvera uma tentativa de homicídio contra a sua pessoa.

De acordo com um dos principais implicados no atentado, Emídio Santana, a abertura de um conflito surdo entre dois ministérios – o do Interior, sendo ministro Pais de Sousa, e o da Justiça, tutelado por Manuel Rodrigues Júnior – foi o maior feito político da acção bombista de 4 de Julho de 1937. Mesmo que não se aceite esta versão dos factos, excessivamente benévola para com os autores da operação falhada, é indesmentível que, por razões ainda mal esclarecidas, o poder político decidiu agir, abrindo um inquérito à actuação da PVDE. Conduzido pelo juiz Alves Monteiro, responsável pela Polícia de Investigação Criminal, o inquérito acaba, pois, por envolver directa ou indirectamente três forças de segurança (a PVDE, a PSP e a PIC), concluindo, ao fim de morosas diligências, que a investigação desenvolvida pela polícia de Agostinho Lourenço e José Catela capturara inocentes – os quais, no entanto, não são de imediato devolvidos à liberdade, permanecendo na prisão cerca de um ano. Entretanto capturados, os verdadeiros culpados serão presentes ao Tribunal Militar de Santa Clara que, ao fim de poucos dias de julgamento, os condenará a pesadas penas de prisão. No entanto, e ao contrário do que os arguidos temiam, ninguém será enviado para o Tarrafal, sendo as penas cumpridas nas penitenciárias de Lisboa e de Coimbra. Alguns presos morreriam na prisão, outros seriam libertados na década de 1950.

Do inquérito do juiz Alves Monteiro não resultaram quaisquer consequências para os dirigentes da PVDE responsáveis pela captura do desafortunado «grupo terrorista do Alto do Pina». Pelo contrário, tudo sugere que serão os descobridores da verdade – José Baleizão do Passo e António Maia Mendes – quem acaba por ser punido. Em 30 de Outubro de 1937, Maia Mendes pede a sua exoneração, alegando razões de saúde. Por seu turno, o capitão Baleizão do Passo, personagem central deste enredo, irá ser exonerado do cargo na PSP, formalmente a seu pedido, em 14 de Janeiro de 1938, com efeitos a 31 de Dezembro do ano anterior. Por sua iniciativa, passara à situação de reserva, aos 41 anos de idade, sendo referido no despacho de exoneração que ocupou um «lugar que serviu com zelo e competência».

Enquanto a polícia política se apressou a descobrir os suspeitos do atentado a Salazar, a inquirição de Alves Monteiro, apoiada na «sua» polícia, envolveu 44 detidos, 47 declarantes, 74 testemunhas, mais de 159 documentos e objectos apreendidos, 45 exames directos e mais de uma centena de ofícios. (...)Deparamos com duas formas muito distintas de apuramento da verdade, uma baseada na tortura e na coacção, outra visando a reconstrução da realidade dos factos com apoio em testemunhos prestados de modo inteiramente livre

De um ponto de vista histórico, o relatório do juiz Alves Monteiro e, bem assim, a investigação que a ele conduziu demonstram a clara diferença de métodos da PVDE, por um lado, e da PIC, por outro. Assim, enquanto a polícia política se apressou a descobrir os suspeitos do atentado a Salazar, a inquirição de Alves Monteiro, apoiada na «sua» polícia, envolveu 44 detidos, 47 declarantes, 74 testemunhas, mais de 159 documentos e objectos apreendidos, 45 exames directos e mais de uma centena de ofícios. Daqui não pode dizer-se, todavia, que, por norma e sistema, a actuação de as duas polícias fosse diferente; o que deve afirmar-se, isso sim, é que neste caso concreto deparamos com duas formas muito distintas de apuramento da verdade, uma baseada na tortura e na coacção, outra visando a reconstrução da realidade dos factos com apoio em testemunhos prestados de modo inteiramente livre. Para esta diferença de metodologias muito contribuiu, decerto, o perfil institucional das duas forças policiais, ainda que, provavelmente, tenha sido a pressão para descobrir os culpados do atentado – e a vaidade em exibi-los – que motivou a forma desastrada e desastrosa com que Agostinho Lourenço e José Catela actuaram, em nítido contraste com a serenidade e o rigor do juiz Alves Monteiro.

O atentado contra Oliveira Salazar foi perpetrado por um grupo heterogéneo, onde avultavam motoristas de táxi de Lisboa, com acompanhamento ou direcção política de anarquistas, em que se destaca Emídio Santana, e, a título individual, de militantes do Partido Comunista Português.

No entanto, talvez seja excessivo afirmar-se que os anarquistas tiveram uma mera «co-autoria» do atentado, sendo este o produto de uma vasta conspiração que envolveu a Frente Popular e, no seio desta, o PCP e o «grupo dos Budas» de Jaime de Morais. Esta tese, sustentada pelo historiador João Madeira, baseia-se essencialmente no facto de as primeiras acções daquele grupo terem sido financiadas a partir do exterior – mais precisamente, pelo «grupo dos Budas» – e de um dirigente comunista, Fernando Tavares, ter estado presente no decurso das operações, incluindo a colocação nocturna da bomba num colector das Avenidas Novas. Deve notar-se, porém, que Jaime de Morais e o «grupo dos Budas» sempre condenaram este tipo de acção directa, que constituía prática comum dos anarquistas da CGT mas que, de modo algum, era acompanhada pelos republicanos do reviralho e pelo Partido Comunista. Não por acaso, o PCP, na altura muito debilitado e sob a precária liderança de Francisco de Paula Oliveira/Pável, mantém sérias reservas quanto ao sucedido na Avenida Barbosa du Bocage. A CGT, ao invés, tinha avalizado ao mais alto nível – o Comité Confederal – a ideia de matar Salazar, ainda que a sua concretização prática tenha sido feita apenas pelos directamente envolvidos nas operações, sem conhecimento preciso do que iria acontecer por parte das estruturas dirigentes da central anarco-sindicalista.

Nele se descrevem ao pormenor os métodos que a polícia política utilizava para obter confissões dos presos pertencentes aos extractos sociais mais baixos. E esses métodos eram, no essencial, os espancamentos e a tortura, os gritos bárbaros, os insultos constantes. A porrada, no fundo. É ela que fica como principal vestígio de uma investigação distorcida desde o início pela natureza do regime em que se desenvolveu e, obviamente, pelas personalidades que a dirigiram

O relatório do juiz Alves Monteiro Júnior só seria descoberto em 1996 pelo jornalista Valdemar Cruz, autor de uma das principais obras sobre o atentado de Julho de 1937, juntamente com as de Emídio Santana e de João Madeira. Aquele relatório é um documento de extraordinário valor histórico, uma vez que, entre o mais, nele se descrevem ao pormenor os métodos que a polícia política utilizava para obter confissões dos presos pertencentes aos extractos sociais mais baixos. E esses métodos eram, no essencial, os espancamentos e a tortura, os gritos bárbaros, os insultos constantes. A porrada, no fundo. É ela que fica como principal vestígio de uma investigação distorcida desde o início pela natureza do regime em que se desenvolveu e, obviamente, pelas personalidades que a dirigiram. O autoritarismo favoreceu, em larga medida, que um grupo de inocentes, de poucas ou nenhumas letras, fossem presos e apresentados à imprensa e ao país ultrajado como os autores de uma tentativa de atentado contra o chefe do Governo. Saber se isto teria sido possível em democracia é um tema que ultrapassa – e em muito – o propósito deste livro.”

https://www.youtube.com/watch?v=zMOUxROFX70

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