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TIAGOCOUTO/OBSERVADOR

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Salvador Sobral. "Antes do transplante, cansava-me a lavar os dentes e a cortar o pão"

Salvador Sobral fala sobre tudo numa conversa com Laurinda Alves: sobre o período em que esteve internado à espera de um transplante de coração, a Eurovisão, a mulher — e, claro, a música.

“Não há nada mais romântico do que um transplante de coração.” Salvador Sobral continua imprevisível, como sempre. Foi o primeiro convidado do “Imperdíveis”, o novo programa de Laurinda Alves na Rádio Observador, todos os domingos, às 11h. Leia a entrevista na íntegra.

Salvador, que alegria começar este programa contigo, que és uma pessoa tão importante na minha vida e na vida das pessoas que te ouvem e que te acompanham. Em vez de começar por te apresentar, se calhar ia pedir para te apresentares a alguém que tu aches que ainda não ouviu falar de ti nem te ouviu cantar.
Se fosse alguém que eu conhecesse assim eu diria só o meu nome. “Olá, Salvador, prazer”. Se calhar diria que sou músico.

E coisas de que gostes e não gostes?
Diria que, além da música, adoro pessoas e línguas. Não sei se adoro pessoas porque adoro línguas ou se adoro línguas porque adoro pessoas. E cinema, pronto.

Cinema… E casaste com uma atriz.
Exato. Um dia em que me apaixone pelo circo, vou casar-me com uma circense. [risos]

Isso já não vai dar, o teu grande coração já está ocupado. Salvador, que bom estares aqui, que bom, tanta coisa que se passou na tua vida nestes últimos anos…
E tu assististe a isso.

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Acho que é a primeira vez que te vejo completamente bem, em paz com tudo: com a Eurovisão, com o coração, com a vida. E por isso acho que não deve haver tabus. Podemos falar de tudo nesta conversa?
Claro que sim.

Então se calhar começamos pelo coração. As pessoas todas querem saber do teu coração, querem saber como é que tu estás e se estás em forma.
É engraçado porque as pessoas perguntam-me na rua muitas vezes: “Como é que estás?” E dizem: “Rezei muito por ti”. Há muita gente que diz que rezou por mim. Até no outro dia umas freiras em Santiago de Compostela diziam: “O nosso grupo todo, das irmãs, rezou por si e depois agradeceu”. Não rezaram só por mim antes, depois agradeceram por eu estar bem.

A isso chama-se fidelidade.
Exato. Porque eu percebo o querer rezar para pedir, mas às vezes depois esquecem-se de agradecer.

É como pedirem a um médico para ajudar e depois nós damos a volta, ajudamos e nunca mais sabemos de nada a seguir porque as pessoas esquecem-se de dar feedback ou agradecer.
Só se não ficassem melhor é que iam ligar outra vez para pedir outro médico.

E que impacto é que tem quando umas irmãzinhas de Santiago de Compostela dizem que rezaram por ti ou quando és interpelado na rua?
Tem um impacto sempre positivo. Avassalador, às vezes. Há coisas que acontecem que diria que são simplesmente estranhas. No outro dia dei um autógrafo num disco a uma miúda, porque ela veio a um concerto, e ela disse: “Ah, as pessoas dizem que eu sou um bocadinho estranha”. E eu disse: “Não te preocupes, a mim também me diziam muitas vezes que eu era estranho”. E, depois, escrevi no disco dela: “Viva as pessoas estranhas”. E ela, que era espanhola, uns meses depois tatuou as palavras que eu tinha escrito, mas com a minha caligrafia. Não sei como é que ela fez aquilo, se foi com papel vegetal, mas, de repente, tatuou essas palavras. E eu achei “Que coisa…”. Disse aquilo para o ar e ela foi tatuar a frase para a vida inteira.

Pois, porque se calhar ela precisa de sentir que ser estranho não é impeditivo de nada, não é?
Claro, hoje em dia até é melhor.

Hoje em dia é a tua originalidade.
Hoje em dia uma pessoa comum não tem interesse. Temos de ser todos muito estranhos.

Em que é que te sentias mais estranho?
Quando não tinha saúde era a coisa mais estranha. Eu pensava que se toda a gente tinha, porque é que eu precisava de estar pouco saudável? Era assim a coisa mais estranha.

Parece um dado adquirido.
Sim.

E era estranho. Eu conheci-te e não conseguias subir dois degraus sozinho, alguém tinha que te amparar.
É verdade, e quando me conheceste ainda não era a pior fase. Mas sim, já me cansava facilmente.

Qual foi a pior fase?
Foi justamente antes de entrar no hospital, em setembro. Já estava muito cansado. Cansava-me a lavar os dentes e a cortar o pão. Essa já foi a reta final e já foi quando disse: “Ok, agora tenho que concordar com o médico e internar-me”.

E disseste uma coisa muito bonita, que foi: “Vou entregar o meu corpo à ciência”. E se calhar, como diz o Novalis, metade é ciência e metade é fé.
Pois, seja ela qual for. Qualquer fé, eu dizia que sim, rezem por mim ao vosso Deus católico, rezem por mim ao Buda, a qualquer pessoa, quero todas as ajudas possíveis.

TIAGOCOUTO/OSBERVADOR

E o que é que te custou mais a passar naquele tempo opaco e denso no hospital?
A incerteza. Acho que a incerteza era o pior. Não saber quando é que ia chegar e se ia chegar. Acho que isso é o pior, a incerteza de não saber quanto tempo… as pessoas precisam sempre de saber. Quanto tempo é que vou esperar? E neste caso não havia resposta. Podes internar-te amanhã e daqui a dois dias aparece um coração — ou então podes estar aí dois anos no hospital à espera.

Como é que ocupavas o tempo e a cabeça? Qual era a rotina para suportar esse tempo de espera?
Como tudo na vida, temos que ter uma rotina. Eu acordo sempre ao meio-dia, toda a minha vida acordei. No hospital, avisei logo todos os enfermeiros: “É assim, eu não vou mudar, tenho que acordar ao meio-dia”.

Uma alma boémia no hospital e fora do hospital.
Exatamente. Até para tirar sangue, tudo. Eles já sabiam que só acordava ao meio-dia. Lembro-me de uma vez em que me disseram: “Salvador, isto é um processo delicado psicologicamente. Se calhar devias ter acompanhamento. Há uma psicóloga aqui no hospital”. E eu até estava de acordo porque aquilo é difícil e passei momentos horríveis de depressão. E eles disseram: “Mas a psicóloga está disponível às 10h30 da manhã”. E eu respondi logo “Nem pensar. Prefiro estar deprimido do que acordar cedo” [risos]. Então, rejeitei a psicóloga do hospital e lidei com as pessoas à minha volta e comigo mesmo. Mas lia muito e via imensas séries. Vi o “Twin Peaks” inteiro, ouvia música e lia bastante.

E não cantavas?
Não, não.

Nem mentalmente?
Às vezes, mas sentia que a música não fazia muito parte daquele espaço.

Lembro-me de uma vez ter lido que o José Carreras, quando teve um cancro e estava nos tratamentos, cantava mentalmente uma aria da Aida e ele sabia que era o tempo do tratamento. E aquilo ajudou-o imenso a chegar à outra margem.
Ah, que engraçado.

E às tantas pensei: será que o Salvador canta também?
Eu fazia isso mas era nas aulas de matemática. Se eu cantar o disco inteiro “Abbey Road”, dos Beatles, vai dar a aula inteira. E um dia contei ao meu pai e ele disse que fazia exatamente a mesma coisa. Isso é louquíssimo, não é?

It runs in the family
Sim, sim. Eu dizia: “OK, vou começar da primeira canção até à última e isto vai ser a aula inteira”. Mas, por acaso, no hospital não conseguia.

Então, matemática era para esquecer…
Qualquer aula. Eu sofria imenso na escola.

Porquê? Isso é uma coisa que pode ajudar imensos pais, alunos e pessoas porque há muitas pessoas que não encaixam na escola convencional e tu eras um deles.
Sim, eu era um deles, mas no final tive que fazer a escola. Acho que, por mais métodos de ensino que inventem, temos que passar por isso.

Em que é que tu não encaixavas ali? Não tinhas capacidade de concentração?
Sim, queria fazer outras coisas. Sentia que aquilo não servia para mim, mas servirá de alguma maneira ou de outra. Geografia, História… De História eu até gostava. Mas Matemática, Físico-Química, essas coisas…

Não gostavas de ir para o laboratório.
Nunca usei aquilo na minha vida, mas faz parte. Eu tinha sempre péssimas notas no primeiro semestre e depois a minha mãe tirava-me tudo. A Playstation, aqueles computadores enormes que havia… tudo o que era diversão. Não podia sair com os meus amigos, não havia mesada e então eu melhorava e, quando melhorava, ela devolvia-me as coisas. Era sempre esta dinâmica.

"Estudei harmonia, improvisação, piano, o que me ajudou a perceber imensas coisas e a descobrir a minha voz, porque andava também à procura do meu timbre. É como em qualquer instrumento, tu perguntas: “Como é que vou cantar?”. E então agarras um bocadinho daqui, um bocadinho do Chet Baker, um bocadinho da Billie Holiday, um bocadinho do Caetano, um bocadinho de outros instrumentistas que não sejam necessariamente cantores, metes tudo na panela e tens a tua voz."

Ficavas assim uma espécie de náufrago, despojado de tudo.
Completamente, não fazia nada. Ela não me deixava fazer nada, tirava-me tudo.

Quando é que decidiste que não ias para a universidade e que irias ser músico?
Fui fazer Erasmus em psicologia. Adorava psicologia, mas na verdade eu adorava era as pessoas. Queria percebê-las. Pensei que podia fazer isso sem ter que estudar. E, como estava a fazer concertos lá nos bares, não conseguia acordar a tempo de ir às aulas porque os concertos acabavam às 3h e depois tínhamos que acordar às 7h e não dava. Então, optei pela música e pensava que ia viver a vida inteira naquela ilha a fazer música e estava feliz. Mas depois, com a pressão da minha irmã, que dizia que se queria ser músico tinha que estudar música…

E esse foi o passo mais radical? Quando dobraste o teu cabo das tormentas e descobriste um novo mundo?
Exato, um novo mundo em Barcelona.

E desde aí o que aconteceu? Tocavas só pelo prazer de tocar e depois?
Depois houve uma intelectualização da música e uma compreensão teórica da música e de tudo o que estava por detrás da música. A matemática da música, que depois foi necessária para uma melhor performance e para uma melhor interpretação da música. E foi o que fiz. Estudei harmonia, improvisação, piano, o que me ajudou a perceber imensas coisas e a descobrir a minha voz, porque andava também à procura do meu timbre. É como em qualquer instrumento, tu perguntas: “Como é que vou cantar?”. E então agarras um bocadinho daqui, um bocadinho do Chet Baker, um bocadinho da Billie Holiday, um bocadinho do Caetano, um bocadinho de outros instrumentistas que não sejam necessariamente cantores, metes tudo na panela e tens a tua voz.

E podemos ouvir a tua voz agora?
Acho que sim. Mas queres que cante assim, a capella?

Sim.
Posso fazer a “Casa Dela”. Quantos segundos temos?

O tempo que quiseres.
Então vá.

E essa foi a voz, o teu timbre e aquilo que cozinhaste nessa grande panela onde estava o Chet Baker e o Caetano.
É verdade, mas está continuamente em mutação. Estou constantemente a tentar descobrir coisas. Agora apaixonei-me completamente pelo flamenco, fiz um concerto na Galiza.

O que é que fazes com o flamenco?
O flamenco é uma música incrível e super emocional, super visceral e dei um concerto na Galiza com uns cantadores flamencos. E o flamenco não é uma música que se ensina na escola, nunca foi academizado, então tu tens um mestre e vives com ele como se fosse um guru, vives com ele e ele ensina-te. Agora vou a Huelva, na Andaluzia, para estar três semanas só com ele e aprender aquele canto.

E como é que a tua voz entra no flamenco?
Vamos ver. Eu tento imitar um bocadinho, às vezes.

E consegues agora, assim também a capella?
É difícil porque eles gritam isto.

É espetacular e aquilo fica vibrante.
E ritmicamente é super interessante. E é isso, vou tendo obsessões. Agora estou a acabar a minha obsessão por chanson française e a começar no flamenco.

E a chanson française veio antes ou depois da Jenna?
Veio depois, claro. Ela é que me mostrou Serge Gainsbourg, Yves Montand, Charles Aznavour…

Maravilha.
E a minha mãe gostava muito. A geração antes da minha era muito francófona.

A minha geração.
Exato, a tua geração. Não sei o que é que aconteceu, é uma pena, mas deve ser devido a esta americanização do mundo que nos levou a falar todos inglês.

Salvador, se o mundo pudesse ser um mundo perfeito e se bastasse o estalar de um dedo, o que é que gostarias de fazer para além de cantar?
Gostava de explorar a minha veia de ator também. Um dia. O Frank Sinatra, o Bing Crosby, todos eles faziam filmes, o Jacques Brel também fazia filmes. E penso que também poderia fazer um filme. Gostava de explorar isto.

Mas uma espécie de musical?
Não, não. Um filme assumido num cinema de autor, um filme de autor e só para representar. Gostava muito. E isso está para perto, sinto que está para perto.

Que tipo de personagem? Uma personagem muito livre e imprevisível?
Qualquer coisa. Sinto que não tenho muito jeito, mas acho que posso aprender.

Mas imagina se houvesse uma personagem já de filme filmado, com quem é que tu te identificavas?
O anti-herói, gostava de ser um daqueles anti-heróis.

Outra vez o estranho.
Exato, em que tudo corre mal, um solitário.

Uma espécie de um Woody Allen a revisitar e atualizado?
Sim, daqueles filmes muito psicológicos também, muito introespectivos. Gostava de fazer uma coisa dessas.

Este teu interesse pela psicologia onde é que te leva no dia a dia? Interessas-te pelas pessoas ou interessas-te pelo mecanismo que faz gerar, rodar e andar as pessoas?
Não sei bem, por acaso. Só sei que gosto delas e de tentar percebê-las — o âmago delas.

Mas assim uma espécie de ir ver a sala das máquinas? Abrir e ver o que se passa lá dentro?
Sim, é possível que seja isso.

"Passei muito tempo sozinho no hospital. Ainda não estou preparado para lidar com coisas que vivi e apaguei imensas coisas. Há várias coisas que a minha família me conta e eu não me lembro."

E o que é que percebes sobre ti próprio, tu que de alguma forma foste obrigado a dar esse mergulho em profundidade porque tiveste tempo para o fazer, porque estavas confrontado também com a tua vida ou até com a possibilidade de morrer. Fizeste isso? Ou seja, usaste a psicologia para ti próprio, para te resgatar, para te compreender?
Acho que terei feito isso, mas muito inconscientemente. Sei que sempre tive medo da solidão e acho que isso apareceu mais quando fiquei doente. O medo de estar sozinho. E isso continua porque não passo muito tempo sozinho.

E isso traduz-se em quê?
Ligar logo aos amigos e estar com eles. Não sou uma pessoa que consegue estar muito sozinha — ou, se estou sozinho, preciso de um estímulo qualquer. Não sei se é para não pensar muito, não sei de onde é que isso vem.

Achas que isso ainda vem do tempo da doença?
É possível. Passei muito tempo sozinho no hospital. É possível que isso me leve lá. Ainda não estou preparado para lidar com coisas que vivi e apaguei imensas coisas. Há várias coisas que a minha família me conta e de que eu não me lembro.

Uma espécie de amnésia seletiva?
Sim, exatamente.

De sobrevivência também.
Completamente. E de repente às vezes lembro-me de coisas e digo: “Ah, pois foi, isto aconteceu, como é possível eu não me lembrar e não estar tão presente?”.

E tu, de repente, és um homem apaixonado, casado, és tio de dois sobrinhos.
É verdade, ainda hoje estive com eles.

O que é que fazes com eles? Eles são pequeninos: dás-lhes colo, cantas para eles, ralhas com eles?
Acho que o meu sobrinho não gosta tanto de música, porque sabe que, quando a mãe não está é porque vai cantar. E então penso que ele tem ali uma coisa contra a música, porque não gosta que ela esteja tão longe. Ainda hoje fui buscá-lo à escola.

Ele tem quantos anos?
Tem três.

Como é que se chama?
Chama-se Zé. E ela chama-se Rosa e tem um ano e tal agora. Mas o miúdo é muito querido e acho que está a ser muito bem educado. A minha irmã é muito sensata em tudo na vida e, obviamente, na educação das crianças também. Admiro-a imenso nas decisões que toma em relação aos miúdos sobre o que devem ou não fazer e ela estimula imenso a criatividade e a imaginação deles. Brincar com coisas que não existem… eles nem sabem o que é um iPad, olham para aquilo e não percebem. E isso era o que eu gostaria de fazer um dia com os meus filhos.

O que é que aprendes com a tua irmã? Falas muito dessa admiração profunda e elevada pela tua irmã, que realmente é uma mulher admirável e tem essa sensatez que te fascina mas não fazes muito tua, porque és uma pessoa que tem uma narrativa mais livre e mais imprevisível. O que é que sentes que aprendes com a Luísa?
Exatamente esse lado mais ponderado e mais sensato. Escrevi agora uma letra para uma cantora e não estava completamente convencido e ela com dois detalhes fez toda a diferença. Vai desde isso a conselhos simples na vida. Ela é uma conselheira exímia. Conselhos na vida conjugal ou conselhos em qualquer coisa.

Com a irmã, Luísa Sobral

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Na vida prática.
Sim, na vida prática. Ela é uma pessoa muito prática e muito sensata e, ao mesmo tempo, emocional. Até nisso ela consegue equilibrar as coisas: o mundo emocional e o mundo consciente.

E a Luísa mãe é uma mulheraça também. Fez coisas absolutamente extraordinárias. Não sei se as pessoas todas sabem, mas ela foi a mãe daquele grande projeto social, solidário, que era o “Arredonda”. E as pessoas iam ao supermercado e arredondavam o troco e isso rendeu muitos milhares.
Foi ela que trouxe a ideia, mas depois obviamente essa cadeia de supermercados logo adotou a ideia como se fosse deles, mas foi ela que a trouxe.

E isto reverteu para causas sociais.
Entre mil outras coisas. Foi ela que introduziu o product placement em Portugal. Foi ela a primeira pessoa a pôr um frigorífico da Singer no “Médico de Família”. O frigorífico tinha limões e esgotou nas lojas porque as pessoas adoraram aquele frigorífico. Ela é tipo a boss do Marketing.

Visionária.
Sim.

E é um abraço gigante. A tua mãe é a pessoa que mais e melhor abraça na tua família. É incrível.
É uma verdadeira mulher de armas.

Uma mulher de armas e de uma doçura e uma firmeza enormes. E o teu pai?
O meu pai é um louco controlado. É aquele hippie…

Soixante-huitard?
Praticamente, sim. E é o maior músico que eu já conheci na minha vida sem o ser. Nem profissionalmente, ele não sabe nada de música na teoria, o que é ótimo porque não tem vícios e tem uma relação completamente descomprometida com a música. Não depende dela para viver, só ama verdadeiramente a música pelo que ela é.

E em que é que isso se traduz no dia a dia?
Traduz-se em ouvir música todo o dia, toda a noite, em gostar mesmo. Não é só a música, são as letras dos Beatles que ele nos traduzia e explicava porque é que eles diziam isto. Foi tão importante essa influência de alguém que não tinha absolutamente nenhum tipo de rancor ou amargura com a música. Nada, zero.

E aberto a todos os tipos de música?
Completamente. Já ouvi desde Bach a raggae, tudo. Metal acho que ele nunca ouviu.

Ainda pode ouvir. Ainda está a tempo.
Sim, sim. Ele não tem qualquer tipo de preconceito com a música.

E tu, tens?
Tenho aquele preconceito do Duke Ellington que diz que só há dois tipos de música: a boa e a má. Estou um bocadinho de acordo com isso no sentido da profundidade da música. E quem diz música diz cinema, diz pintura, literatura, tudo. Acredito na profundidade da arte e em coisas com conteúdo, com substância. Quando descobri o cinema que verdadeiramente nos dizia alguma coisa e nos deixava a pensar, flipei. E foi a mesma coisa que senti com a música.

Não é um cinema de entretenimento.
Não, não é um cinema que te dá aquele estímulo contínuo sem parar e acaba de repente e ficou nada. Aquela coisa do “fast food music” de que eu falava serve para a “fast food art” no geral.

Sabes que um dia perguntaram à Sophia de Mello Breyner como é que arrumava os livros nas estantes. E ela, com o seu ar de sempre, disse: “É muito fácil. Os bons e os maus”. Agora, a fronteira entre bom e mau é individual e é íntima, é aquilo que cada um sente que é melhor ou pior.
Exatamente. Mas eu acho que a profundidade é uma coisa universal. Acho que se percebe se uma coisa é profunda.

E é interessante, porque a profundidade dá sempre a dimensão da altura, da elevação. Ou seja, uma pessoa quanto mais profundo é o mergulho, mais alto é o salto de consciência, de conhecimento, de paixão.
E de abertura. Sim, sim, completamente.

Salvador Sobral na Eurovisão

SERGEY DOLZHENKO/EPA

Há pouco falaste de Bach: qual é a tua relação com a música clássica?
É curiosa essa pergunta. Não foi nunca muito grande e agora a Jenna estuda piano clássico e então eu oiço todos os dias em casa Bach.

Tens sorte.
Sim. E o meu pai também é um grande amante de música clássica e comecei a ouvir mais e a concentrar-me mais e também a ouvir os pianistas contemporâneos, o Kissin, o Trifonov, que fui ver à Gulbenkian. O Valter Hugo Mãe — eu tive uma fase de obsessão com o Valter Hugo Mãe — disse num livro: “Quem inventou a música? Foi Bach”. Depois ele morreu, chegou ao céu e contou a Deus o que era a música e tudo sobre a música. E Deus ouvia como uma criança super interessada que está a aprender uma coisa nova, com os olhinhos de Deus completamente apaixonados. E, depois disso, Deus ensinou a todos os humanos o que era a música, baseado no que lhe tinham dito. E isto é o Valter Hugo Mãe.

É bonito. Eu só a imaginar os olhinhos de criança de Deus já é uma imagem maravilhosa. Há uma coisa que as pessoas adoram, e desculpa se te peço, que é quando tu fazes o “air trompet”, quando tocas trompete sem trompete. Achas que podes fazer isso?

Bravo. Eu já te vi competir com trompetes reais e a conversa e a dança era maravilhosa.
Ainda ontem no Titanic estava a cantar e estava um trompetista também.

Que maravilha. E os duetos que tu fazes são fabulosos. Conheci-te a fazer duetos com o Henrique Janeiro e vocês parecia que tinham nascido da barriga da mesma mãe.
Sempre tive um bocadinho de preconceito com os duetos por causa daqueles programas de talentos em que eles cantam os dois e estão a olhar um para o outro a cantar “I love you” e achava sempre aquilo foleiro e pensava: não, duetos não. Mas claro, com a minha irmã sempre fiz naturalmente e depois foi com o Henrique que percebi que se pode fazer duetos sem ser foleiro.

Com o Henrique Janeiro a combinação de vozes é…
Agora temos de dizer Janeiro.

Ai, com o Janeiro, pois é. O Janeiro que me perdoe. Com o Janeiro, de facto, vocês parece que nasceram na mesma barriga e a combinação é mais que perfeita. Quando é que descobriram isso?
Foi quando nos conhecemos. Ele não cantava, só tocava, e incentivei-o. Então, começámos a fazer pequenos duetos, o primeiro que fizemos foi a canção do Jorge Drexle, “Zamba del olvido”. É curioso porque num dueto uma pessoa tem que se libertar completamente do ego. Estamos aqui os dois. E isso às vezes nos cantores é difícil porque eles querem sempre sobrepor-se. E ali estamos os dois para o mesmo e estamos os dois completamente iguais. E então os volumes das vozes têm de estar sempre equilibrados. Se sinto que ele vai um bocadinho mais intenso, então vou com ele e vice-versa — e é um jogo muito interessante de libertação do ego.

Vocês começaram por ser muito amigos.
Sim, logo quando nos conhecemos disse-lhe que ele iria ser um dos meus melhores amigos. E confirmou-se. Vejo logo nas pessoas quem é que vai ser minha amiga.

É à primeira impressão?
Sim, sim. No amor também é logo à primeira.

E não te enganas?
Até agora não, mas vamos lá ver.

O que é que te apaixonou na Jenna, além de ela ser uma brasa?
Não quero ser esotérico, mas acho que foi a luz dela. O próprio cabelo dela é um reflexo da luz interior que ela tem. Eu entrei na Tasca do Chico, de fado, mas de repente há ali um cabelo ruivo enorme a brilhar e ela própria a brilhar e eu pensei: “Vou falar com ela senão não vou dormir esta noite e eu tenho que descansar”. E pronto, fui lá. [risos]

Isso é muito pragmático. E ela já conhecia a tua voz?
Não, zero. Isto foi em 2016, foi muito antes da Eurovisão e tudo. Foi a primeira miúda que gostou de mim sem eu ter que cantar. Desde os 20 anos que todas as miúdas que engatava era pela minha voz.

Cativavas.
Sim, sim. Engatar é vulgar. [risos]

Não, é que tu ainda por cima tens imensa elegância de maneiras, de modos, a maneira sensível como tu és, sensível à sensibilidade dos outros — e por isso é que corrigi.
Claro, claro. Mas eu gosto de vez em quando destes termos. Mas, sim, foi a primeira vez. Em Maiorca e em Barcelona eu via uma miúda que achava interessante e pensava “OK, tenho que ir cantar”. Então pedia aos músicos que estavam a tocar: “Pá, deixem-me cantar para eu ver se coise“. Era assim, sempre. Com ela não. Eu não cantei na Tasca do Chico, porque não sei cantar fado, e ela interessou-se sabe-se lá porquê.

E ela também não sabia de todo quem tu eras.
Zero. E eu também não sabia quem ela era.

"Sentia que tínhamos que levar música com um bocadinho de conteúdo àquele sítio onde não havia música de conteúdo e então esse sentimento de missão também era bom. Estávamos ali por algo, juntos, os dois, os irmãos."

Voltando aqui aos duetos, a essa combinação mais que perfeita, ao despojar-se do ego, se calhar também foi isso que aconteceu no Festival com a tua irmã. Sem querer voltar muito ao Festival da Eurovisão — mas tem que se voltar porque a música é tão bonita —, aquilo é apaixonante, e ainda por cima vocês, irmãos, com uma afinação maravilhosa de voz e com essa calibragem, é impossível não falar e é impossível também que aquilo não tenha marcado um antes e um depois.
E ficaremos para sempre ligados àquilo. E ainda bem, porque imagina que eu tinha feito alguma coisa que me comprometesse. Eu fui lá fazer uma canção que ainda hoje adoro e estávamos lá com aquele sentido de missão, nada modesta. Sentia que tínhamos que levar música com um bocadinho de conteúdo àquele sítio onde não havia música de conteúdo e então esse sentimento de missão também era bom. Estávamos ali por algo, juntos, os dois, os irmãos.

E é um conteúdo que toca o coração das pessoas. Ainda cantas essa música?
Sempre, nos concertos sempre.

Com a tua irmã ou sem a tua irmã?
Não, sempre sem ela. Ela tem os concertos dela e eu tenho os meus. Quando são os concertos em meu nome, canto sempre a canção. Agora, se for com outros grupos, como o MUTRAMA, que é o grupo de música tradicional madeirense, obviamente que não vou cantar isso. E o Alma Nuestra, não sei se já foste ver algum concerto…

Não.
Alma Nuestra é um grupo que tenho em que fazemos só música da América Latina com arranjos assim mais jazzísticos e no princípio do concerto às vezes digo às pessoas: este concerto é de Alma Nuestra, que é um grupo de boleros, o “Amar Pelos Dois” não foi escrito em Cuba e não foi nos anos 40 e, portanto, essa não consta no repertório. Mas, de resto, fazemos sempre nos concertos em meu nome.

E quando se liga para a tua mãe, se ela não atende a música de quando se está em espera é aquela. É maravilhoso.
É verdade. Eu tenho sempre vergonha, quando lhe estou a ligar à frente de outras pessoas, que elas ouçam e pensem: “Ele está a ouvir a própria música?”.

Tens legiões de fãs, és uma pessoa muito amada. Não são só as irmãzinhas em Santiago de Compostela que dizem que rezam por ti ou aquela pessoa que te interpela na rua ou aquela miúda que se sente estranha e que tatua a frase que tu lhe deixas. De facto, tens uma capacidade de chegar às pessoas, ainda que às vezes também digas coisas que deixam as pessoas sem saber o que hão-de pensar. Mas cada vez menos.
Às vezes penso que essa ligação das pessoas não é só pela música. Acho que tudo isto que me aconteceu na vida também fez as pessoas… Isto que aconteceu, um transplante de coração… Não há nada mais romântico do que isso. Se fosse um transplante de fígado ou de rim não era nada poético.

Sobretudo um transplante de um coração romântico, porque o diagnóstico era que o teu coração era demasiado grande.
Claro, tudo isso acho que criou uma espécie de uma mitificação.

"Sinto que tenho sempre que ser sincero comigo mesmo e com a música que quero fazer, porque há esse lado de ter que agradar às pessoas porque elas gostam de mim, mas nunca posso deixar que isso comprometa a música que faço. E até agora não tem acontecido e temos visto as pessoas a reagirem bem."

Não necessariamente, porque acho que as pessoas realmente amam ouvir a tua voz e gostam desse teu lado de criança, desse teu lado que não se consegue apanhar. As pessoas não te conseguem definir nem catalogar e isso é muito sedutor. Este sentires-te muito amado, e voltamos ao princípio, ao teu coração, também te dá alguma responsabilidade, algum imperativo ético, humano, para dar muito além da tua música?
Para além da minha música, talvez eu sinta uma missão também com essa situação do coração. Sinto uma missão de fazer campanha com tudo o que me aconteceu e sou padrinho de uma campanha que fizemos da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Há essa missão, mas que não estou ainda muito preparado para assumir porque foi uma coisa muito intensa e se calhar tenho que esperar um pouco.

Claro, estás no teu período de luto do teu coração velho.
Exato, completamente. E, de resto, sinto que tenho sempre de ser sincero comigo mesmo e com a música que quero fazer. Porque há esse lado de ter que agradar às pessoas porque elas gostam de mim, mas nunca posso deixar que isso comprometa a música que faço. E até agora não tem acontecido e temos visto as pessoas a reagirem bem. Intros de contrabaixo de oito minutos… as pessoas têm reagido bem e as pessoas gostam da música que é dada com verdade.

E tu, de que é que gostas mais nas pessoas?
Que elas estejam abertas a tudo o que pode acontecer não só no palco mas na vida. Que tenhamos uma mente aberta e que tenhamos bom senso.

Sem julgamento, sem esta inclinação para julgar que nós temos.
Exatamente, uma abertura.

Ouvi que um grande sonho que tens é criar uma rádio. Queres concorrer com esta rádio?
Claro, vou fazer uma rádio de esquerda para concorrer com esta. [risos]

Isto não é uma rádio de direita. A esquerda e a direita hoje em dia já são uma coisa muito old-fashion, muito old-school. A abertura de coração e de cabeça não deixa pôr rótulos, não achas?
Espero que sim, espero que sim.

Mas tens esse sonho, de criar uma rádio?
É o meu grande sonho, estou a juntar dinheiro para um dia poder abrir uma rádio.

Já estás rico ou não?
Ainda não. Especialmente porque vou perder muito dinheiro neste projeto de abrir a primeira radio jazz em Portugal. Não sei se vou conseguir, mas ainda faltam uns anos, mas gostava muito de ter uma rádio só dedicada a jazz.

Podes começar por fazer um programa de jazz. Aí, se calhar já não tinha que ser na concorrência, se calhar já podias começar… Mas eu não mando nada aqui.
Exato, fazer um primeiro passo com um programa, acho que é uma boa ideia.

A regra dos quatro P’s: poucos, pequenos, possíveis e progressivos.
Uau, não conhecia essa.

Se pudesses ressuscitar algum destes teus ídolos do jazz, quem é que porias aqui ao teu lado?
À partida diria logo o Chet Baker, mas tenho medo que ele se agarre logo à droga porque depois é uma chatice: eu ressuscitei-o e ele vai voltar à droga? Não me apetecia, não é? Depois tinha que andar atrás dele e é complicado esse vício. Mas se calhar ele já que ressuscitou ia estar agradecido e não ia voltar à droga e podia-nos regalar com música.

E quem mais é que trarias de volta?
Talvez o Miles, para continuar a criar. Também podíamos trazer a Elis Regina.

E vivos? Quem é que porias no teu dia a dia? O Caetano?
Sim. Já conheci praticamente todos os que gostava de conhecer. Gostava de conhecer o Chico, que me falta ainda. Agora vou conhecer um grande ídolo meu que é o Tim Bernardes. O Jorge Drexler — gostava de o ter aqui ao meu lado. Silvia Perez Cruz, cada um numa cadeira.

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