Há dois anos, quando Mariano Rajoy viu a sua investidura chumbada pelo Congresso dos Deputados, Pedro Sánchez apontava o dedo, de forma clara, no Twitter: “A responsabilidade de o senhor Rajoy perder a investidura é exclusiva do senhor Rajoy, por ser incapaz de articular uma maioria”.
La responsabilidad de que el señor Rajoy pierda la investidura es exclusiva del señor Rajoy por ser incapaz de articular una mayoría.
— Pedro Sánchez (@sanchezcastejon) August 29, 2016
Agora que viu o parlamento negar-lhe o mesmo, depois de duas votações nas quais só conseguiu os votos do próprio partido — e de mais um deputado do Partido Regional da Cantábria —, o disparo é veloz no sentido contrário. Sánchez — que já tinha criticado o PP e o Ciudadanos por preferirem a instabilidade de novas eleições ao sentido de responsabilidade de não deixar o país sem Governo — despeja todas as culpas em quem, há apenas um ano, lhe permitiu chegar ao poder e que passou de “parceiro preferencial” a inimigo.
Na noite de 28 de abril, quando fazia o discurso de vitória nas eleições legislativas, em frente à sede do PSOE em Madrid, era claro para todos que, com apenas 123 deputados eleitos (ainda que mais que os 84 da legislatura anterior), os socialistas precisavam de fazer acordos para governar. E depois de ouvir a multidão repetir, vezes sem conta, “con Rivera no!”, também ficou claro que esse entendimento deveria ser procurado à esquerda e junto da Unidas Podemos, de Pablo Iglesias.
Ficou claro para quase todos. Quase. Sánchez respondeu “ouvi-vos bem”, mas de forma quase impaciente — a hipótese, na verdade, não a afastou. O socialista tinha um plano: ia negociar com todos, fazendo algumas cedências à esquerda e à direita. Se conseguisse apoio dos dois lados, não precisava de partilhar lugares do governo. Na prática, queria governar sozinho — algo que seria assumido logo no dia seguinte às eleições, pela vice-presidente do governo, Carmen Calvo. E se ficasse reduzido à Unidas Podemos, ia manter firmes as linhas vermelhas, obrigando Iglesias a escolher entre aceitar as propostas ou votar ao lado da direita — e a ficar sempre com o selo de obstáculo à governabilidade.
Se não foi em tudo isto que pensou na noite de 28 de abril, foi isto que pareceu ir cumprindo nos três meses que se seguiram, em várias etapas. O plano parecia imbatível: se não conseguisse assustar o PP e o Ciudadanos com a ideia de que não se comportaram como partidos responsáveis e de Estado, aproveitaria a fragilidade do Podemos, castigado nos resultados das legislativas e, logo depois, das eleições autonómicas e municipais. O problema é que, até ao último minuto, Pablo Iglesias não cedeu.
1.º passo: esperar
Apenas uma semana depois das legislativas, Pedro Sánchez e Pablo Iglesias sentavam-se frente a frente pela primeira vez. E a reunião parecia ter corrido bem, com o candidato da Unidas Podemos a dizer que tinham como objetivo “trabalhar para o acordo” e fazê-lo com “prudência”, discrição” e “tranquilidade”. Nessa altura, Iglesias já tinha um crachá dado por Sánchez: “Parceiro preferencial”.
A primeira ronda de negociação, porém, não ficou aí. Ao Palácio Moncloa foram também Pablo Casado, do PP, e Albert Rivera, do Ciudadanos. E, a ambos, o socialista terá pedido a abstenção, dizendo ser capaz de apresentar um programa que também respondesse a algumas das suas propostas.
Depois disso, silêncio. Sánchez e Iglesias tinham combinado que começavam a negociar apenas depois de 26 de maio — data das eleições europeias e também, em Espanha, das eleições autonómicas e municipais. Nos resultados que saíssem dessas urnas, o PSOE queria procurar fragilidades nos adversários e avaliar o equilíbrio de poderes. Encontrou as duas: o PP perdeu o primeiro lugar no Parlamento Europeu — e deu um tombo nas municipais; a Unidas Podemos caiu para quase metade dos eurodeputados de 2014 e foi castigado com dureza também dentro de portas.
Logo no dia seguinte, a 27 de maio, o PSOE reafirmou o objetivo: “Um governo de orientação socialista, aberto a independentes progressistas, mas um governo socialista”, sintetizou José Luis Ábalos, ministro do Fomento. Por outras palavras: sem Unidas Podemos.
Quando a presa está mais fraca, é mais fácil negociar?
2.º passo: fixar as estacas
Depois, voltou o silêncio. Sánchez e Iglesias só voltaram a conversar 43 dias depois das legislativas, a 11 de junho. E não concordam com a composição do governo. Por esta altura, o PSOE está irredutível: não quer ministros do Podemos e mantém essa posição durante exatamente um mês. A estratégia, explicava o El País, é colar Pablo Iglesias a esse pedido, deixando-o sem grande margem para votar contra a investidura, só porque não conseguiu um lugar no poder.
No tabuleiro ao lado, Sánchez continua a pedir ao PP e ao Ciudadanos que se abstenham. No seu cenário preferido, será possível convencê-los a fazê-lo, aceitando propostas de medidas à direita, explorando a fragilidade dos populares e exigindo sentido de responsabilidade a Albert Rivera, se quiser assumir-se como líder da oposição.
O problema é que, para ter algum apoio do PP, Sánchez não pode deixar que o Ciudadanos se afaste — e é isso que acontece à terceira ronda de encontros: Casado ainda comparece, mas sem grandes expectativas; Rivera recusa voltar a sentar-se com o socialista.
3.º passo: empatar e insistir
No total, Sánchez e Iglesias encontraram-se cinco vezes. E em cada encontro, a narrativa foi mudando, mas sem nunca os aproximar. A meio de junho, o PSOE admite que a Unidas Podemos ocupe alguns lugares no governo, mas fora do conselho de ministros. No impasse, trocam acusações: Iglesias desafia Sánchez a tentar a investidura sem acordo, Sánchez desafia Iglesias a votar contra.
Sobre o acordo, nenhum avanço.
Na semana seguinte, o relógio começa a contar. O Congresso marca a investidura para 22 de julho, permitindo mais três semanas de negociações. Iglesias insiste na coligação, mas Sánchez volta a ameaçar com eleições.
Sobre o acordo, nenhum avanço.
O líder do Podemos sugere então que o socialista leve a ideia de uma coligação ao Congresso, com uma garantia: se não for aprovada, ele próprio renuncia a ser ministro. Sánchez acaba por responder com a possibilidade de admitir ministros designados pelo Podemos — desde que sejam independentes.
Sobre o acordo, nenhum avanço.
Perante a recusa do Podemos, o PSOE começa a mudar o discurso e a admitir entregar algumas pastas desde que não seja a figuras destacadas do Podemos. Iglesias leva a ideia a discussão interna no partido, que recusa vetos dos socialistas.
Sobre o acordo, nenhum avanço. Até que Pedro Sánchez lança a Pablo Iglesias a exigência que, acredita, ele nunca aceitará. E que o colará, definitivamente, à imagem de alguém agarrado ao poder. E perde o jogo.
4.º passo: dar uma mão ao adversário que ele não possa aceitar
A proposta surge de uma entrevista dada pelo socialista à RTVE: “Não é possível que Pablo Iglesias entre no governo. É ele o principal obstáculo”. Está firmado o veto ao nome do líder do Podemos. Se recusasse abdicar de ser ministro, seria acusado de querer apenas um cargo. Se votasse contra por não ter sido, ficaria colado ao mesmo.
Menos de um dia depois, porém, Iglesias surgia numa mensagem vídeo, numa espécie de sacrifício público nas redes sociais: “O PSOE diz que o único obstáculo que impede o governo de coligação sou eu. Tenho refletido nos últimos dias e não vou ser a desculpa para que o PSOE evite esse governo de coligação”.
Esta declaração merece ser olhada mais a fundo para se perceber a subtileza. De “principal” obstáculo, nas palavras de Sánchez, Iglesias passa a “único” obstáculo, nas próprias palavras. E se o “único” obstáculo renuncia ao seu lugar num governo com o PSOE, não há razão para que o governo não exista.
O líder do Podemos passa a ser o mártir em defesa do país e devolve a bola para o campo dos socialistas. Deste lado já tinha o trunfo para a narrativa: “Fizemos tudo o que nos pediram, cedemos em tudo o que nos pediram — até afastando o líder”.
Na terça-feira, no primeiro debate da investidura, é o próprio Iglesias quem lembra a importância desse momento: “Creio que posso dizer que a nossa resposta vos apanhou de surpresa”. De surpresa e com pouco tempo: nas últimas horas antes da votação, houve várias tentativas de retomar a troca de propostas. O Podemos foi fazendo cedências milimétricas, sem tocar nas linhas vermelhas, o PSOE repetia a estratégia, na esperança de voltar a ganhar posição e de colar, de novo, o parceiro falhado a uma luta por cadeiras.
Sem grande sucesso: já depois da última hora, mais perto do último minuto, Iglesias voltaria a mostrar-se frente a Sánchez como o único disponível para abdicar do mais importante, como o ministério do Trabalho, que sempre exigiu — ainda para mais, diz, uma proposta que um socialista “veterano” lhe sugeriu que fizesse já durante o debate.
O longo burburinho no parlamento que se seguiu mostrou que estava virada de novo a narrativa. Para Sánchez, porém, já era tarde para mudá-la de novo. O socialista nem sequer se deu ao trabalho de responder: a Unidas Podemos absteve-se e a investidura estava perdida, com mais votos contra que a favor.
Sánchez tinha garantido que, se perdesse, avançava para eleições em novembro — confiante de que ganharia com o desgaste dos adversários. Agora, corrigiu a posição: “Este não é o fim do caminho. É preciso explorar outras possibilidades. Convido PP, Ciudadanos e Podemos a desbloquearem esta situação”. O relógio começou a contar outra vez. Tem dois meses para o conseguir.
https://observador.pt/2019/07/25/espanha-sanchez-vai-de-novo-a-votos-sem-acordo-para-formar-governo/