“Vamos ver… nem quero pensar nisso”. Terá sido assim que Pedro Santana Lopes reagiu quando Durão Barroso lhe pediu pela primeira vez que o substituísse na chefia do Governo no verão de 2004. Barroso tinha sido sondado para o cargo de presidente da Comissão Europeia e queria assegurar que a transição era feita sem eleições legislativas antecipadas.
Faz esta quinta-feira dez anos que Pedro Santana Lopes tomou posse como primeiro-ministro sem ter ido a eleições e o seu mandato foi um dos mais curtos da história: apenas cinco meses. Foi a única vez nos últimos 30 anos que isso aconteceu e não há quem pense que possa haver de novo um chefe de Governo sem a legitimidade do voto nas urnas.
A primeira vez que Durão Barroso propôs a Santana Lopes que o substituísse no cargo de primeiro-ministro terá sido na noite das eleições europeias, a 13 de junho de 2004, ou seja, cerca de um mês antes da tomada de posse.
No livro escrito pelo próprio Santana, Perceções e realidade – 2004, conta-se que essa foi a primeira conversa numa sala da sede de campanha da coligação PSD-CDS no Campo Pequeno. “Foi naquela pequena sala que, no meio de outros assuntos, Durão Barroso me disse que havia entre os parceiros europeus quem estivesse a sugerir o seu nome para substituir Romano Prodi na presidência da Comissão Europeia. (…) Precisava saber se eu estaria disposto a substituí-lo como presidente do partido e como primeiro-ministro”, conta. “Disse a Durão: ‘Vamos ver… nem quero pensar nisso’. Ao que me respondeu: ‘Mas vai pensando'”.
Santana diz que a sua reação foi de “espanto absoluto”. Combinaram “segredo total” sobre o assunto. Daí a dois dias, Durão chamava Santana para jantar em S. Bento e a conversa foi de novo o rumo a Bruxelas. Santana diz que o aconselhou a aceitar o cargo “por Portugal”.
Durão Barroso estava convencido que só Santana teria o apoio do partido para exercer as funções de primeiro-ministro. Ou que Santana deitaria para o lixo qualquer outro nome que ele propusesse. E no decorrer de outra conversa secreta com o então Presidente da República disse-lhe que só aceitaria o cargo de presidente da Comissão Europeia se não houvesse dissolução da Assembleia e Jorge Sampaio aceitasse dar posse a Santana. Apesar das reticências do Presidente, foi isso que aconteceu. ” Vires para o meu lugar é lógico. Estás neste processo comigo e sabes disso. És o continuador natural, não se põe outra hipótese”, terá dito Barroso a Santana, ainda segundo o relato feito pelo então autarca de Lisboa no livro, que só publicou depois de Sampaio terminar o seu mandato, em 2006.
O Governo, contudo, duraria pouco. Menos de seis meses depois, a 30 de novembro, Sampaio decidiu dissolver o Parlamento.
Rui Gomes da Silva, um dos ministros de maior confiança de Santana Lopes e que esteve envolvido numa polémica com Marcelo Rebelo de Sousa por ter criticado o seu tempo de antena na TVI, recorda ao Observador que “o mais difícil foi lidar com a hipocrisia”.
“A maior dificuldade desse período terá sido a incapacidade de lidar, com boa fé e disponibilidade para o cumprimento de um mandato muitíssimo difícil, com o que, hoje considero ter sido a reserva mental de quem, tendo contribuído para a solução, a entendeu dever fragilizar ao máximo, de forma a que a estratégia de dar início a um ciclo de poder de cor contrária ocorresse o mais depressa possível”, afirma o ex-ministro dos Assuntos Parlamentares. Não nomeia, mas refere-se a Sampaio. Mas também a militantes destacados do PSD, como Cavaco Silva, Manuela Ferreira Leite, Marcelo Rebelo de Sousa, que consideraram “um golpe de Estado” o processo de substituição de Barroso.
A memória que Gomes da Silva tem daqueles meses é ácida. “Pedro Santana Lopes foi o alvo de todo um processo de deturpação de personalidade e de assassinato de caráter, em que muitos dos que eram, senão autores, pelo menos coniventes, faziam parte do seu partido, o PSD, como o futuro se encarregou de demonstrar”.
O então ministro dos Assuntos Parlamentares, também ministro-Adjunto por dois dias (antes da demissão), considera que naquele verão de 2004 ninguém estava interessado em que houvesse eleições. “O poder político e financeiro de então não quis convocar eleições imediatas, com medo de as perder, nem quis deixar governar a quem deu posse, com medo de perder o poder!”, refere. A mudança, consideram os santanistas, só terá ocorrido a partir de setembro, quando José Sócrates foi eleito secretário-geral do PS, na sequência da demissão de Ferro Rodrigues, que ficou furioso com a decisão do seu velho amigo Jorge Sampaio de aceitar dar posse a Santana.
Passados dez anos e aquilo que chama de “pura intoxicação dos primeiros tempos”, Gomes da Silva considera que aquele Governo “subiu já muitos degraus na escadaria da competência, da capacidade política, do empenho, da noção de responsabilidade, da execução de um programa que ajudaria Portugal a superar as dificuldades”.
O Governo tinha no seu elenco pessoas como Álvaro Barreto, António Monteiro, António Mexia, Paulo Rangel, José Pedro Aguiar-Branco para além das pessoas que transitaram da equipa de Barroso: Morais Sarmento, José Luís Arnaut, Bagão Félix, Luís Filipe Pereira. Álvaro Barreto recusou falar ao Observador sobre este momento da sua vida, alegando que desde que terminou as suas funções “decidiu ausentar-se da vida política” e assim se manteve durante os últimos dez anos.
“Havia um grupo de pessoas que o compunham que dava credibilidade e garantia de competência técnica. Essa boa imagem foi muito afectada pelas dificuldades ligadas ao arranque do ano escolar, que quebraram o período de graça que existia, mau-grado uma cerimónia de posse algo atribulada”, recorda Pedro Sampaio Nunes, secretário de Estado da Ciência naquele Governo.
Atribulada é dizer pouco. Na tomada de posse Santana sentiu-se mal com o calor na sala cheia do Palácio da Ajuda, passou por cima de grandes trechos do discurso impresso que levava na mão e pareceu desorientado. Sócrates aproveitou logo para o acusar de “andar aos papéis”. Nessa cerimónia, Teresa Caeiro acabou por tomar posse como secretária de Estado das Artes do Espectáculo, poucas horas depois de ter sido anunciada pelo ministro da tutela Paulo Portas na pasta da Defesa. Quando o nome da pasta foi anunciado, a centrista nem conseguiu evitar um ar de espanto.
O arranque do ano escolar de que fala Sampaio Nunes ficou marcado por atrasos na colocação de professores e foi, na verdade, o mais atribulado da história. O sistema informático falhou e a distribuição de professores pelas escolas teve que ser feita de forma manual, atrasando também o início das aulas. Foram semanas de angústia e de violentas críticas ao Governo.
Mas há outros episódios que ainda marcam os governantes: as notícias de dissonâncias entre os ministros das Finanças (Bagão Félix) e das Atividades Económicas (Álvaro Barreto) a propósito da descida de impostos, da sesta de Santana Lopes em S. Bento, do pagamento diferenciado das taxas moderadoras ou da polémica do barco do aborto com que aquele Governo teve que lidar. “Todas as quartas-feiras [véspera da audiência semanal do primeiro-ministro com o Presidente] havia notícias para fragilizar Santana”, queixa-se ao Observador um dos membros daquele Governo.
“As situações eram empoladas pela comunicação social. Eram exploradas as coisas mais banais por claro preconceito em relação às circunstâncias em que tomou posse, devido à má vontade da oposição e a algumas asneiras que os próprios protagonizaram”, lembra Regina Bastos, ex-secretária de Estado da Saúde. “Todos os dias éramos surpreendidos de manhã à noite com notícias. O corrupio era grande”.
Os casos mais graves deste Executivo foram outros (se é que é possível fazer uma escala daqueles meses turbulentos). Um exemplo claro foi o chamado caso Marcelo, em que este saiu da TVI alegando pressões do Governo depois de críticas de Rui Gomes da Silva; e a demissão de Henrique Chaves, que precipitou o fim do Governo.
Foi em outubro que Gomes da Silva contestou o formato do programa de Marcelo, por “não ter contraditório”, uma situação que considerou “inédita na Europa”. O caso acabou por ser analisado pela Alta Autoridade para a Comunicação Social que concluiu que o Governo tentou limitar a liberdade de liberdade de expressão.
Santana Lopes acabou por remodelar o Governo, por pressão do Presidente, para proteger Rui Gomes da Silva, que não queria demitir. Foi neste processo, em novembro, que Henrique Chaves, um dos santanistas mais antigos, se considerou despromovido por passar de ministro-adjunto (pasta que passa para Gomes da Silva) a ministro do Desporto. Quatro dias depois da remodelação, Chaves apresentou a demissão ao próprio Presidente e, apanhado de surpresa, Santana comentou que o seu Governo era como “um bebé nascido de um parto difícil e, por isso, a necessitar de incubadora e que vê os irmãos mais velhos a dar-lhe estaladas e pontapés”.
Chaves fez um comunicado, onde acusou o primeiro-ministro de falta «de lealdade e de verdade». «Convidado para ministro-adjunto, nunca me foi dada oportunidade de exercer qualquer função ao nível da coordenação do Governo, própria das funções inerentes a esta pasta».
Henrique Chaves não quis acrescentar mais pormenores ao seu capítulo. “Tudo o que tinha a dizer consta do comunicado que entreguei à comunicação social quando me demiti. Está lá mesmo tudo”, afirmou ao Observador o antigo braço direito de Santana no Governo. Daí para cá, nunca mais o ex-companheiro de apartamento de Santana Lopes falou do sucedido.
Na mesma altura, Cavaco Silva assinou um artigo no Expresso, em que alerta para a falta de qualidade da atividade política em Portugal, apelando aos “políticos competentes” para afastarem os “incompetentes” para evitar uma crise. Cavaco Silva explicou que a lei económica de Gresham aplicava-se à vida política, no sentido em que “a má moeda expulsa a boa moeda”, ou neste caso, “os agentes políticos competentes afastam os competentes”.
Dois dias depois, Sampaio chamou Santana a Belém e comunicou-lhe que tencionava dissolver o Parlamento e que iria convocar, para isso, o Conselho de Estado. Por essa altura, o Presidente já tinha ouvido várias personalidades, da política e das empresas, que o aconselharam a pôr um ponto final no Governo.
Jorge Sampaio justificou a sua decisão de dissolver o Parlamento com a existência de «uma grave crise de credibilidade do Governo» motivada por «uma série de episódios» e apontou também «sucessivos incidentes e declarações, contradições e descoordenações que contribuíram para o desprestígio do Governo e das instituições em geral». Também nunca quis detalhar muito os episódios. Dois meses depois, nas legislativas, Santana seria derrotado, o CDS tinha um resultado tão duro que levou Portas a sair da liderança. E Sócrates ganhou a primeira maioria absoluta do PS. A única até hoje.