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Santos Fernando, o humorista devoto de São Sebastião

Foi reeditado “Sexo 20”, de Santos Fernando, autor de livros diversos, de textos para revista e rádio, colaborador do Diário Popular e do Pasquim, de Millôr Fernandes. Nuno Costa Santos recorda-o.

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Comecemos pela boa história desta reedição. Há menos de um ano, Vítor Rodrigues, dono da Leituria (livraria de Lisboa), cruzou-se com um exemplar de um livro de capa atractiva, título chamativo e conteúdo – para si — desconhecido. Era Sexo 20, última ficção de Santos Fernando, editada pela Futura em 1975. Intrigou-o a circunstância de nunca ter ouvido falar do autor. Ao espreitar as páginas ficou capturado pela energia da prosa e do que ela trazia — de atrevimento, de burlesco, de humano. De rasgo. “Quando terminei a leitura do livro, a minha admiração era tão grande que a Margarida, minha mulher, verbalizou o que me ia na cabeça e não me atrevia a dizer: e que tal reeditá-lo?”. Foi assim, de uma forma ao mesmo tempo apaixonada, familiar e prática, que Sexo 20 voltou à vida das livrarias. E que inaugurou um novo catálogo, a Sulfúria Edições.

Sexo 20 é uma narrativa sobre a relação entre um neto e um avô, o avô Lindolfo, personagem invulgar como o seu nome, filósofo libertário, hedonista praticante, desenterrado e ressuscitado pelo primeiro, autor do gesto de religar a ossatura desse ascendente que morrera na passagem do século XIX para o XX. “Um avô reconstrói-se como um país: muita fé, persistência e o mínimo de ladainhas”. No regresso aos dias, Lindolfo despacha assim, com estes termos pícaros, a sua biografia: “Vim do Minho aos trambolhões, numa diligência de merda, atado com cordas, a tempo de ser benzido aqui em Sintra pelo padre Moraes que me perdoou tudo, incluindo até o que eu não tivera oportunidade de fazer”. Importante também referir que o literário programa arranca com apetitoso isco nonsense: “É proibido colher flores – disse o morto que zelava pelo cemitério. E sorriu porque sabia que o sexo depende da beleza dos dentes incisivos”. Isso: dava uma boa campanha para um dentífrico.

O insaciável Lindolfo

A acção ocorre no ano de 1975, em ambiente de desentendimentos políticos e sociais muitos e alguns eróticos regabofes. Assinale-se, a propósito, que o veterano Lindolfo tem uma fome sexual própria de quem está a descobrir o dicionário da lascívia. Um instinto devorador infatigável, sempre pronto a ser exercido. E, como se costuma dizer dos melhores amigos, um feitio lixado. Há razões para isso — e o personagem é que as sabe desenrolar: “Tive o sexo enterrado setenta e cinco anos. E um sexo enterrado setenta e cinco anos embrutece o espírito”. Por vezes, o bruto dá lugar ao melancólico: “Sou um indocumentado, um marginal que não consta dos ficheiros. E hoje quem não tem uma ficha não é nada. E eu sou mais do que nada: sou um morto que nenhuma religião aceita, nem nenhum governo tolera. Um avô com a aparência do neto, ninguém toma a sério”.

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“Sexo 20”

É assim uma espécie de dupla cómica, esta do avô, “velho pirata de mares inavegáveis”, sempre à procura do pequeno prazer, do gozo, sacudidor da “mosca das banalidades”, e do neto, escriba que o traz à vida, narrador, que, numa “autobiografia solúvel em álcool”, se apresenta como tendo “vinte e quatro anos em cada pé”, um “pseudónimo falaz” e manter o hábito de andar a butes. Os dois comparsas passam por situações várias, níveis de um jogo de computador delirante-luxuriante. Uma delas – destacando-se pela crónica de costumes – é “uma reunião ajantarada de presumidos, num palacete da Lapa” em que há um debate de ideias com referências a dois sobrinhos – um comunista, outro do MRPP – e a cónegos subitamente revolucionários (“Em vez de erguer a cruz, só lhe falta levantar a foice e o martelo!”). Tendo em conta os apetites libertários do avô, as alusões erótico-sexuais, feitas no masculino, são recorrentes. Há mulheres com fantasias de “fazer amor dentro de uma urna!” Fala-se muito de seios, de mamas, de peito (“uma mulher de peito no género de escrivaninha põe uma barreira entre ela e o companheiro”). O chão onde tudo se passa inclui, além do referido bairro lisboeta, outros bairros, como o de Campo de Ourique, e também Sintra, Queluz, a Ericeira, as Caldas da Rainha e Monção.

Cruzam-se personagens fictícias com reais – e o autor joga-se muito pelo meio. Baronetes de sorriso provocante e final trágico, Conselheiros da Embaixada da República Popular não sei de onde e monges tibetanos com pessoas como Luís Alves Dias, histórico livreiro da Ler, em Campo de Ourique, que viu muitos livros apreendidos pela PIDE “que o diabo tem”, segundo critérios, como sempre foi habitual nas polícias políticas neste e noutros lugares, no mínimo confusos. Driblados, aqui e ali, com saber e arte. “Os livros proibidos escondiam-se nos sítios mais incríveis e inacessíveis. Algumas vezes, uma obra de Neruda ou de Fidel Castro era embrulhada com o rótulo exterior de ‘Discursos de Marcelo Caetano’”. A questão da censura é um assunto bastante falado, parecendo o autor, numa democracia pintada de fresco, querer fixar, no seu modo torneado e leve, um tempo em que “o livro-arma vigiava-se como se vigia um paiol”, anos em que a “genialidade portuguesa remou contra a maré, sem remos e sem vento, na jangada do improviso”. O capítulo encerrado entre a página 87 até à página 90 merecia – pelo tema, sim, mas também pelo ritmo do bom português e pela felicidade das formulações sem acinte — circular nas escolas. O neto-narrador vai abrindo jornais e revistas, nacionais e internacionais, citando noticiários e casos, o que resulta, para o leitor, num retrato possível do bizarro ar do tempo durante os anos 70 em diferentes pontos do globo.

O humor faz-se de qualidades distintas. Mistura uma vocação satírica, um apelo lúdico para o trocadilho, um gosto maior para um absurdo à portuguesa: “Todas as entidades responsáveis se preocupam com as crianças. É bonito, evangélico. Mas ninguém vê, nos transportes públicos, letreiros como este: ‘Elefantes com menos de quatro anos e transportados ao colo estão isentos do pagamento de bilhete’”. O sentido da frase, do paradoxo humorístico, do aforismo cómico: “Todos os géneros de humor são bons, excepto os maus”. Muito do texto, mais do que querer fazer avançar a acção, é um pretexto para a dissertação com graça. Temos micro crónicas espalhadas. Diálogos que muitas vezes se demoram em elaborados monólogos com interlocutor por perto. Já para não falar das reflexões, de insensato tino, de quem vai conduzindo a narrativa num jazz de Avenida da Liberdade: “O rato foge mais do homem que do gato. O gato foge mais do homem que do cão. O cão foge mais do homem da árvore. A árvore foge mais do homem que do sol. Ainda assim, do que os homens mais fogem é dos homens”. Até há vagar para um brilhantíssimo sketch, vindo, felizmente, muito a despropósito, intitulado “Um Morto Para as Flores”.

A propósito de comparações: não é fácil encontrar familiares literários portugueses de Santos Fernando, espécie de Sterne da Lapa, sempre à procura do lúdico e do jocoso no texto, procurando muitas vezes, mais do que fazer avançar a acção, criar pequenos labirintos de gozo e sátira.

Há passagens com um evidente sabor autobiográfico. Capítulos que afirmam sentenças a soar a desabafo: “É mais fácil um camelo passar pelo cu da agulha, do que um pobre, ou um humorista que junta ossos e paradoxos, entrar no reino da finança”. E outras de entusiasmo histórico: “Tendo publicado tudo o que publiquei durante o regime fascista (nasci em 1927, não podia publicar noutro!), sem obter um prémio, uma bolsa ou um mandato de captura, sinto-me hoje mais livre para poder aprisionar a imagem muito tremida de um Clero que mais se benze, de uma Nobreza que mais se encolhe, e de um Povo que mais ordena”.

Em curtos parágrafos, muitas das descrições, barrocas, dos ambientes naturais resolvem-se numa tonalidade onírica, de quadro ou de animação. “No céu, os refegos das nuvens descobriam seios virginalmente redondos, que despontavam sobre o dedo teutónico do palácio, rebolavam pelos socalcos dos vapores condensados, esfiapavam-se em leite, em ventres de espuma, em nádegas de algodão”. Sim, podiam a espaços ser versões literárias de animações de Terry Gilliam. A propósito de comparações: não é fácil encontrar familiares literários portugueses de Santos Fernando, espécie de Sterne da Lapa, sempre à procura do lúdico e do jocoso no texto, procurando muitas vezes, mais do que fazer avançar a acção, criar pequenos labirintos de gozo e sátira. Apetece emparelhá-lo com um Mário-Henrique Leiria ou com um José Sesinando. Ou então com um Alface.

Ainda não se falou de amáveis sentimentos, fundamentais em toda a epopeia, das personagens e de quem as segue nas 167 páginas deste volume. É com terna admiração que o neto, achando-se um “velho ultrapassado”, se refere ao avô, mais viçoso a cada instante. E a convivência, não isenta de pequenos desacertos e picanços, entre os dois, faz nascer no leitor uma simpatia maior, perdurável por uma boa temporada, por estas figuras. Há aqui uma verdade que é difícil esquecer.

Entre São Sebastião e Buda

Ao cruzar-se com o livro seminal de Santos Fernando, Vítor Rodrigues ficou com vontade de conhecer o autor. Começou por pesquisar no google e, em vez de pistas para Santos Fernando, tropeçou, pois, em centenas de artigos sobre o selecionador nacional de futebol. “Com persistência, lá fui encontrando algumas referências — poucas — sobre o escritor, e de imediato adquiri alguns outros livros dele. Todos em segunda mão e com décadas”. Quem é este escriba, perguntou o livreiro e editor — e perguntam muitos, em especial os das novas gerações, que não se cruzaram com nenhum livro seu nem espreitaram colaboração sua no Diário Popular, onde manteve durante anos a coluna “Os Grilos Não Cantam ao Domingo”?

Alguns dados biográficos. Fernando dos Santos, pseudónimo literário Santos Fernando, nasceu a 22 de Janeiro de 1927 na Travessa do Moinho de Vento, à Lapa (Lisboa). Fez a Instrução Primária na Voz do Operário e aos catorze anos empregou-se num escritório. Tendo concluído aos 17 anos o Curso Comercial na Escola Rodrigues Sampaio, aos 21 foi incorporado no Serviço Militar Obrigatório e passou a frequentar o Curso de Sargentos Milicianos. Quando, com essa mesma idade, casou, passou a residir na Rua da Mãe de Água, em Lisboa. Enquanto tudo isso acontecia, foi preparando a vocação para uma escrita com verve e um sentido de humor mui raros na literatura portuguesa.

Antes e depois das horas passadas nos Adubos Potássicos, onde se empregou, em busca de sustento, Santos Fernando arranjou tempo, energia e disciplina para escrever em diversos géneros e meios: o livro, a rádio, os jornais, o cinema (desenhou o argumento do filme “Pão, Amor e Totobola”), o teatro de revista (do Parque Mayer). Tendo sido um dos fundadores dos Parodiantes de Lisboa, juntou-se a esses míticos parodiantes do Rio que criaram o jornal humorístico O Pasquim. Sim, Santos Fernando, puxado por Millôr Fernandes, fez parte desta anárquica instituição onde também existiram outros figurões como Jaguar, Ziraldo, Paulo Francis e Ivan Lessa. Acrescente-se que a ligação de Santos Fernando ao Brasil também aconteceu através da publicação em 1971, pela Nórdica, de Jaime Bernardes, do livro A Sopa dos Ricos, editado em Portugal no ano anterior. Em visita ao Brasil, proferiu palestras na Universidade de Brasília e no Real Gabinete Português da Leitura e ainda deu entrevistas a vários canais de televisão. O livro veio depois a ser adaptado ao cinema.

“A Sopa dos Ricos”

Os livros anteriores a Sopa dos Ricos foram, por ordem de publicação, A, Ante, Após, Até (1957), A Lua És Tu e Encontro em Sevilha”, com o pseudónimo de Paolo Garay (ambos em 1958), Seis Gramas de Paraíso (1959), A Bolsa do Canguru (1961), Areia nos Olhos (1962), Os Cotovelos de Vénus (1963), Tempo de Roubar (1964), As Uvas Estão Maduras (1965), Consolação Número Três (1968), Os Grilos Não Cantam ao Domingo (1969). Depois vieram Absurdíssimo (1972), A Árvore dos Sexos (1974) e Sexo 20 (1975). Rápidos destaques para Tempo de Roubar, história em que dois ladrões-filósofos assaltam a habitação do chefe de polícia, acabando, ao publicitar a ordem de soltura dos presos, por originar uma situação caótica de dimensão nacional, e para A Sopa dos Ricos, com a fome e a miséria tornadas formas de atracção turística. E, já agora, também para Os Grilos Não Cantam ao Domingo, com histórias delirantes, algumas de propriedades surrealistas, como “Martelo: Corpo de Delito”, “Lenda da Prima Zanaga” e “Fantasia em Colchão Pneumático”, e com uma delas, “Summer in London”, apresentando um sorridente e irónico avô que, se quisermos, pode ser visto com um esboço do avô Lindolfo.

Antes de ir para o escritório e nas manhãs do fim-de-semana, tinha por hábito ir para os cafés escrever. Um deles era o Café Raiano, à sombra do Jardim da Parada. Ao domingo, quando ia com a família aos parques de Sintra, escrevia sentado a uma mesa de pedra, escondida entre o arvoredo, enquanto a mulher e o filho se passeavam. 

Sim, a notável produtividade de Santos Fernando foi a manifestação de alguém que resolveu não adiar a escrita, como se pressentisse que não tinha o tempo de um maratonista. Escrevia sobretudo de amanhã, desenvolvendo os apontamentos que ia tirando sobre o absurdo de um quotidiano observado ou habitado (nem na mesinha de cabeceira faltava lápis e papel onde pudesse desenhar uma ideia ou um dichote). Antes de ir para o escritório e nas manhãs do fim-de-semana, tinha por hábito ir para os cafés escrever. Um deles era o Café Raiano, à sombra do Jardim da Parada. Ao domingo, quando ia com a família aos parques de Sintra, escrevia sentado a uma mesa de pedra, escondida entre o arvoredo, enquanto a mulher e o filho se passeavam. Depois do almoço juntava-se a eles e caminhava em família por ruas estreitas, entre segredos, mistérios e pedregulhos. Costumavam, os três, entrar em todas as pequenas igrejas para fazer o exercício de decifrar as inscrições nas pedras tumulares. Não por acaso, Sintra é um lugares centrais de Sexo 20.

“Grande corpo, grande copo, bom garfo, grande Amigo”

Devoto — incondicional — de São Sebastião da Pedreira (aos sábados ia sempre à missa com o nome do santo), cuja imagem guardava sempre na carteira, simpatizava com a figura de Buda. Era, digamos, ecuménico: costumava também transportar no bolso das calças um Buda de ouro. Ao pescoço, levava sempre, presa por uma tira de cabedal, a ponta de um corno de touro engastado por uma auréola, de ouro também, onde estava gravada uma data de significado desconhecido: 10-11-55.

Da sua história fez parte a partilha intelectual e pessoal importante com alguns convivas pouco convencionais do planeta literário, como Vítor Silva Tavares e Luiz Pacheco. Luís Santos, o filho do autor, fala assim da dimensão afável e afectiva do pai: “Tão diversas quantas as esferas literárias por onde se espraiava a sua biblioteca, eram as personalidades e ocupações dos seus amigos, pois que era uma pessoa extremamente sociável e necessitava do contacto com o seu semelhante para viver. Inimigos não se lhe conheciam. Se duelos houve, foram sempre de faca e garfo e seguramente sempre bem regados”. Em Sexo 20, o avô e o neto vão ter a uma boîte das Caldas da Rainha, “sofisticada”, “utilização de uma antiga azenha”, num caldo nocturno e boémio, com uma banda “borracha” e um baterista que partira as duas únicas garrafas de whisky não falsificado.

“Em tempos recuados haviam-se reunido ali pintores, ceramistas, escritores, Figueiredo Sobral, Ferreira da Silva, Luís Pacheco. Agora já não havia nada disso. Havia grupos rivais, nas artes e nos copos”. Um ano depois da morte de Fernando, Pacheco escreveu um texto comovido que a dado passo vai por aqui: “É bem vivo que o Santos Fernando me aparece em Caldas da Rainha, no Verão de 65. Grande corpo, grande copo, bom garfo, grande Amigo. Uma presença aberta em riso no gozo vivido de estar. Uma gentileza e uma delicadeza de sentimentos que espantavam. Também, a solerte imediata percepção do grotesco e absurdo das coisas e das pessoas, mas sem acrimónia”.

Depois, revela a forma como ele e Vítor Silva Tavares o apelidavam: “Chamávamos-lhe o Homem Gordo, ligando o físico bojudo à larga compreensão, à grandeza de alma (para empregar um termo cristão), de que ele escuberava, numa bonacheirice que se julga ser apanágio quanto mais bochechudos dos gordos (não é, às vezes pior) e em Santos Fernando era dádiva, era superioridade inata, era decerto o resultante do seu fundo conhecimento da sociedade errada que o rodeava, de que foi vítima como tantos mas não lhe roubou nunca a alegria de viver”. Acaba por destacar a empatia do amigo para com aqueles que caricaturava, demarcando-o assim da tradição nacional de “escárnio e maldizer”. Sabe-se também que Luiz Pacheco ia sempre lendo e comentando, com o seu histórico sentido crítico, sem ofertas nem comedimentos, os livros que Fernando ia publicando.

O entrosamento Ferro Rodrigues-Santos Fernando fazia-se em sucessivas tabelinhas criativas. A 16 de Dezembro de 1976, o primeiro publicou no Diário Popular um texto evocativo de Santos Fernando, “Uma Lágrima (entre parênteses)”, título que alude ao facto de Fernando ter escrito em Areia nos Olhos que o humorismo é uma lágrima entre parêntesis.

Entre os comparsas, havia um com quem Santos Fernando fazia parelha criativa frequente em vários terrenos de jogo, Ferro Rodrigues, durante anos uma das penas humorísticas com mais destaque e difusão em Portugal e autor dos livros Noite Sem Estrelas, Lusitânia Expresso e Proibido Andar Sobre a Relva. Luís Santos lembra-se bem dessa cumplicidade: “O Ferro Rodrigues era mais que um amigo, diria que era o irmão. As nossas famílias eram próximas e durante vários anos passámos, inclusive, férias juntos em Portimão. Os filhos do Ferro, o Eduardo (Ferro Rodrigues, actual presidente da Assembleia da República) e o Paulo, eram meus colegas no Liceu Francês”.

O entrosamento Ferro Rodrigues-Santos Fernando fazia-se em sucessivas tabelinhas criativas. A 16 de Dezembro de 1976, o primeiro publicou no Diário Popular um texto evocativo de Santos Fernando, “Uma Lágrima (entre parênteses)”, título que alude ao facto de Fernando ter escrito em Areia nos Olhos que o humorismo é uma lágrima entre parêntesis, no qual alude a algumas delas: “Diálogos para o Vasco Santana — outro inesquecível e também gordo-apressado — os folhetins diários para o Igrejas Caeiro, a colaboração nos jornais humorísticos, o ‘Ouvindo as Estrelas’, o ‘Fogo de Artifício’, as Revistas do Parque, o ‘Despertador’ e teatro para a TV, os argumentos para o Cinema, a publicidade…..”.

Os cozinhados, a duas mãos, eram confecionados de modo a poderem escapar à atenção desorientada das censuras. A maioria deles era feita muito cedo, pelas sete e meia da manhã, num “resfolegante aproveitamento do tempo livre”, por cafés como o Martinho e o Nacional, onde até às nove e meia discutiam a escreviam trabalhos da sua “inexpugnável parceria” antes de iniciarem as funções da sua “triste e contraditória vida burocrática”. Uma vez, no Nacional, conta Ferro, Santos Fernando desenhou numa folha de papel, com letra garrafal bem preta de tinta, A REVOLUÇÃO COMEÇA ÀS NOVE E MEIA. E colocou-a virada para uma mesa próxima onde estavam sentados dois homens com uma curiosidade de bufo.

Já conseguimos entrever o Santos Fernando amigo. Como era o pai? “O meu pai era um pai sereno, compreensivo e tolerante. Era filho de um barbeiro que acumulava este ofício com o de árbitro de futebol”. A grande herança no campeonato do humor e da “fecundidade intelectual” vinha sobretudo da mãe. “Para além da notável parecença fisionómica, recordo que as histórias desta minha avó não tinham par. Sempre diferentes e tão desligadas da realidade, só me fazem lembrar as aventuras de Júlio Verne. Inesquecíveis”.

Fernando dos Santos procurou dar ao filho uma educação exigente e de qualidade, começando por inscrevê-lo em bons liceus de Lisboa, como o Charles Lepierre e o Pedro Nunes. Fê-lo conviver com amigos vários dos universos artístico-literários. Além disso, deu-lhe pistas sobre a arte de aproveitar a vida, tal como o faz, de forma extrema, o avô Lindolfo: “O saber comer, o apreciar um bom vinho e como o apreciar um bom queijo, um bom presunto”. E procurar a leitura. “Lá íamos percorrendo o seu mais precioso bem: aquela estante cheia de livros que ia sempre crescendo, um pouco contra a vontade da minha mãe, na nossa casa, da Rua Sampaio Bruno, em Campo de Ourique”.

Indicava livros ao filho, explicava porque eram boas opções. “Fazíamos mesmo um concurso em que eu citava o nome de uma obra e ele tinha que dizer o autor”. Na sua estante três autores tinham primazia sobre os demais: Aquilino Ribeiro, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Nos mais de dois mil volumes que Luís Santos coligiu, encontra-se de tudo. Faz um breve inventário: “Das biografias de grandes homens aos catálogos de grandes pintores, do esoterismo e da magia à religião, todas as correntes literárias, de todos os países, o humor de Pitigrilli, a Cavalaria Andante de D. Quixote de la Mancha, o Pequeno mundo de D. Camilo, a tragédia do amor não correspondido de Madame Bovary, o suspense de Georges Simenon…”.

Prenúncios de morte

Santos Fernando morreu a 13 de Dezembro de 1975, aos 48 anos, a bordo de um táxi, quando se deslocava para a missa em São Sebastião da Pedreira. Ele que sempre preferiu não ter um carro e que, em Sexo 20, ironizou: “Até os que não têm mais nada são donos do seu veículo motorizado, porque a banheira não enche o olho do basbaque, não se põe a banheira à porta – como um bom pedaço de senhora lá dentro -, mesmo que a banheira seja de sport”. Talvez, seguindo a mesmas pistas do narrador, preferisse o comboio, onde se podia debruçar e distrair na paisagem. Ou “a camioneta, onde estudo as costas largas do meu semelhante da vanguarda; o táxi, cujo motorista, a tanto por bandeirada, me fornece uma solução política e um diagnóstico médico; o carro dos amigos para as ocasiões – em que falta a gasolina e é preciso empurrar”.

Ferro Rodrigues rememorou, no seu texto, dois prenúncios de morte, para citar uma letra dos GNR. A primeira aconteceu na Praia da Rocha, quando uma maré viva surpreendeu os amigos, originando, a seguir, um comentário de Santos Fernando perante a fila de gente que se gerou à beira da fúria marítima: “Olha tantos gajos a verem como se vai morrer!” A segunda teve lugar, a dois dias da morte, à mesa da restaurante Sancho, quando o mesmo Santos Fernando, depois de ter oferecido Sexo 20 a Ferro, lhe perguntou: “Olha lá, tu não achas que um tipo que chega a atingir vinte e quatro de tensão já não devia andar cá neste mundo?”. Preferiu ser ele a dar a resposta, antes de dar um trago no bagaço: “Talvez seja um tipo diferente dos outros”. No sábado seguinte, escreveu Ferro Rodrigues, “rebentava-te ‘o tecto do mundo’”.

“Os Grilos não Cantam ao Domingo”

Luís Santos escreve uma nota introdutória a “Sexo 20” na qual faz um paralelo entre a história do personagem e a sua própria actual circunstância biográfica: “Aquele renascimento do avô Lindolfo não é mais do que uma réplica do que me está a acontecer neste momento em que vos escrevo”. Pedimos-lhe para aprofundar a declaração. Começa por dizer que considera providencial esta circunstância de o editor Vítor Rodrigues ter redescoberto o seu pai e chegado à fala consigo. Lembra a forma como reagiu o livreiro Vítor Rodrigues, com mais de vinte anos de actividade, após ter ficado capturado por um livro e um autor dos quais nunca, como tanta gente, ouvira falar: “Em vez de se entregar à depressão e à marcação da consulta de apoio psicológico, situação que não nos espantaria conhecendo o mundo em que vivemos, teve um assomo de coragem e pensou: há que descobrir o herdeiro literário para sabermos mais um pouco do Santos Fernando”.

Assim fez. Luís conta alguns passos da aproximação: “As peripécias foram tantas que só elas justificavam um livro. Um belo dia recebo, no emprego, um telefonema. Do outro lado do fio uma voz simpática perguntava se não seria, por acaso, o filho do escritor Santos Fernando. Aqui a pulsação subiu”. Foi tudo rápido desde o encontro até à reedição de Sexo 20. “Ao contrário das habituais derrapagens tão comuns em todos os projectos do nosso país, correu bem e, em Fevereiro de 2017, altura em que se completariam noventa anos do nascimento do meu pai, foi relançado o ‘Sexo 20’”. Todo este fenómeno constituiu, para Luís Santos, uma autêntica operação de renascimento do seu pai. “A circunstância de ir à arrecadação buscar e rebuscar o espólio de uma vida literária riquíssima, os manuscritos da obra, a documentação anexa e tanta coisa que estava sob a pedra tumular há quarenta e dois anos, levar tudo para cima e começar a juntar a carne aos ossos é ou não um renascimento em tudo semelhante ao do avô Lindolfo?”

Santos Fernando está aí, ressuscitado de fresco. Quem sabe a rimar, em voz baixa, com o que diz a personagem avô Lindolfo, em instante seminal de Sexo 20: “Sou uma verdade autêntica. Morri. Fui ressuscitado. Os meus ossos ligaram-se. Não faço perguntas. Desde que fale contigo, desde que ame, desde que sofra e goze, é porque estou vivo”.

Santos Fernando está aí, ressuscitado de fresco. Quem sabe a rimar, em voz baixa, com o que diz a personagem avô Lindolfo, em instante seminal de Sexo 20: “Sou uma verdade autêntica. Morri. Fui ressuscitado. Os meus ossos ligaram-se. Não faço perguntas. Desde que fale contigo, desde que ame, desde que sofra e goze, é porque estou vivo”. Ao longo destes quarenta e dois anos de sombra, foram muitas as vezes em que se perguntou o que poderia fazer para voltar a fazer incidir luz sobre a obra do pai: quinze livros publicados, milhares de contos escritos em jornais e revistas, importante correspondência trocada. Mas aparecia-lhe constantemente a mesma pergunta: “A quem é que ia eu falar?” Os editores, amigos e cúmplices do autor de Os Cotovelos de Vénus haviam morrido. Depois, a sua profissão enleava-o. Mesmo que lhe ocorresse alguma ideia, era pouco o tempo para a desenvolver. Daí que o gesto de Vítor Rodrigues tenha assumido uma importância danada: “Imaginem o tremendo clarão luminoso que me atingiu quando o Víctor me abordou telefonicamente!”

O que acharia Santos Fernando deste regresso à vida literária? Luís, na resposta, começa por lembrar o discurso paterno a lamentar, ameno, o pouco interesse que as artes despertam em Portugal, “nomeadamente a literatura, e, em particular, o estilo literário que escolhera e do qual nunca abdicou: o humorismo”. Nunca esquece as palavras, quem sabe premonitórias, que dele ouviu: “O teu pai só será verdadeiramente reconhecido daqui a muitos anos, no tempo dos netos…”.

Sexo 20 está à venda em diversas livrarias em Lisboa, além da Leituria, em Sines (onde será apresentado em Junho), Évora, Almada, Setúbal, Coimbra (onde, no dia 9 de Abril, foi apresentado no espaço da Bruaá no Convento São Francisco), Leiria (teve apresentação no dia 23 de Abril na livraria Arquivo), e em breve também se encontrará no Porto. Vai suscitado interesse num grupo de leitores, depois do lançamento da Leituria, com a presença de Jorge Silva Melo, e beneficiando da genuína curiosidade de elementos das novas gerações, aquelas que não conheceram o Portugal no qual um conjunto de autores soube fintar a vigilância da Censura. Luís Santos nota uma alegria sincera entre os que o leram nos anos 60 e 70, por se estar a fazer justiça a alguém que teve uma presença na literatura em português e a cujo esquecimento nunca ficaram indiferentes.

Luís considera que Sexo 20 tem muito de premonitório relativamente à curta vida do seu pai. E que sob égide do ressuscitar do avô Lindolfo “vamo-nos apercebendo da contingência que foi escrever antes do 25 de Abril de 74, do tom acinzentado da mentalidade dominante, postos à luz do dia no discurso de alguns dos personagens”. Vemos também incrustar-se, ao longo da obra, imagens de tempos passados, imagens anacrónicas, sem respeitar a linha temporal em que se desenvolveram. “Parece-me mesmo que, tal como o condenado ao exílio forçado noutro qualquer mundo, vai olhando pela janela do comboio da vida, observando melancolicamente todas aquelas paisagens que lhe eram queridas, sabendo que não terá oportunidade para as voltar a ver…”

Necessário se torna ter outros livros de Santos Fernando publicados, de forma a podermos ter um quadro mais completo da sua personalidade criativa-literária e da forma como foi construindo a pena e a imaginação. Vítor Rodrigues dá-nos esperança: “É nossa firme intenção, e objectivo central embora não único da Sulfúria, reeditar mais livros de Santos Fernando. Afinal, a editora surgiu graças ao fascínio exercido pela obra dele”.

Nuno Costa Santos, 42 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.

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