Se nos interrogatórios da fase inquérito, Carlos Santos Silva repetia incessantemente “portanto”, esta quinta-feira, foi o dia do “não sei”. O alegado testa-de-ferro de José Sócrates não soube responder a muitas das perguntas do juiz Ivo Rosa mas sempre falou de um novo cofre, repetiu novamente que usava esse numerário guardado em diversos cofres para pagar alegadas luvas a facilitadores de negócios em Marrocos, Argélia, Líbia e Roménia e fez uma revelação sobre a famosa casa de Paris: afinal, o contrato de arrendamento que fez com José Sócrates muito tempo depois do ex-primeiro-ministro ter começado a residir no imóvel não servia para nada.
Santos Silva apresentou-se esta quinta-feira no Tribunal Central de Instrução Criminal para o segundo dia do seu interrogatório na fase de instrução criminal da Operação Marquês em estado gripal e com a garganta afetada. O que agravou a perceção do seu discurso oral — que costuma ser confuso.
O contrato de arrendamento feito por insistência de Sócrates
É uma novidade que pode vir a prejudicar a defesa de José Sócrates. Se é verdade que Carlos Santos Silva manteve que a famosa casa de Paris, situado na Avenue President Wilson, é sua — e não do ex-primeiro-ministro, como alega a acusação do Ministério Público —, não é menos certo que testemunhou que o contrato de arrendamento não servia para nada. O que pode ser visto como um reforço da tese da acusação de que se trata de um contrato forjado.
Questionado pelo juiz Ivo Rosa, Carlos Santos Silva explicou que esse contrato foi assinado entre janeiro e fevereiro de 2014 mas com efeitos retroativos — isto porque Sócrates viveu no imóvel entre 2012 e 2014. E por insistência de José Sócrates. Apesar de factualmente o documento só ter sido assinado depois do Correio da Manhã e o Expresso terem noticiado que Sócrates viva no luxuoso apartamento situado no quarteirão de Passy, dos mais exclusivos e centrais da capital francesa, o alegado testa-de-ferro do ex-primeiro-ministro diz que uma coisa nada tem a ver com a outra.
Relevante foi igualmente ter dito que não registou o referido contrato na Autoridade Tributária francesa, logo não pagou os impostos devidos por essa alegada receita como arrendatário. Pior: Santos Silva disse mesmo que entendia que o contrato não servia para nada mas que era importante para ter um justificativo.
O juiz Ivo Rosa decidiu não confrontar Carlos Santos Silva com as escutas telefónicas em que José Sócrates determina que materiais e cores devem ser aplicadas durante as obras de remodelação do imóvel que custou cerca de 3 milhões de euros em 2013. Tendo em conta que o interrogatório vai continuar esta 6.ª feira, Ivo Rosa ainda poderá fazê-lo.
O procurador Rosário Teixeira entende que essas escutas são um indício de que o apartamento era de José Sócrates e foi comprado com fundos que estariam apenas em nome de Carlos Santos Silva mas que pertenceriam ao ex-primeiro-ministro.
Recorde-se que o juiz Carlos Alexandre determinou em 2017 o arresto judicial à ordem dos autos da Operação Marquês da famosa casa de Paris e de mais cinco imóveis por os mesmos, de acordo com o MP, pertencerem à “esfera patrimonial” de José Sócrates.
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Ricardo Salgado e os 200 mil euros num cofre do BCP
O juiz Ivo Rosa questionou-o sobre se conhecia Ricardo Salgado mas Santos Silva negou que alguma vez tivesse conversado com o ex-presidente executivo do BES. Uma resposta negativa relevante para a sua defesa, visto que a acusação ‘tem’ uma prova testemunhal de Hélder Bataglia que refere que transferiu 12,5 milhões de euros para Carlos Santos Silva por ordens de Ricardo Salgado.
O interrogatório conduzido pelo juiz Ivo Rosa tentou esclarecer igualmente as relações de Carlos Santos Silva com dois dos seus principais funcionários e igualmente arguidos na Operação Marquês: o advogado Gonçalo Trindade e o empresário Rui Mão de Ferro.
Em relação a Gonçalo Trindade, contratado por Santos Silva por ser filho de um seu primo, Ivo Rosa quis saber pormenores sobre o cofre no BCP onde foram encontrados 200 mil euros em numerário no dia em que Santos Silva e Trindade foram detidos em novembro de 2014. O cofre pertencia a Gonçalo Trindade mas o alegado testa-de-ferro de José Sócrates assumiu a titularidade do mesmo.
Isto é, os montantes que ali se encontravam eram de Santos Silva que repetiu o que tinha sido dito no primeiro dia: foram reunidos por sua ordem para pode levar ‘dinheiro vivo’ — entre 10 mil a 20 mil euros de cada vez — para as suas missões empresariais em Marrocos, Argélia, Líbia e Roménia serem bem sucedidas. Além disso, podiam ser necessários para alguma emergência.
E como poderiam ser bem sucedidas? Pagando a alegados responsáveis políticos desse países contrapartidas pela adjudicação de contratos de obras públicas mas também para pagar residências a trabalhadores expatriados.
O juiz Ivo Rosa questionou: e se Carlos Santos Silva morresse, quem ficava com os 200 mil euros? Ao que o engenheiro respondeu que tinha a certeza que Gonçalo Trindade era uma pessoa de confiança e que iria entregar esses fundos à sua mulher. Aliás, os fundos que Santos Silva ordenava a Gonçalo que fossem depositados no cofre do BCP eram transferidos por comunicação verbal e era feito com base na confiança que tinha nele.
Durante as investigações da Operação Marquês foram detetados oito cofres como tendo sido usados pelos principais arguidos.
Como o ghostwriter e o blogger fora contratados mas não prestaram serviços
A compra das edições do livro “A Confiança no Mundo” foi igualmente abordada pelo juiz Ivo Rosa. Tal como já tinha explicado na fase de inquérito, Santos Silva diz que quis incrementar as vendas dos livros de José Sócrates por uma questão do estatuto de um homem que tinha sido primeiro-ministro. Mas não explicou as razões em concreto que o levaram a comprar quantias significativas.
Foi neste ponto que o juiz Ivo Rosa introduziu o tema Domingos Farinho — professor da Faculdade de Direito de Lisboa e ex-assessor de José Sócrates no gabinete do primeiro-ministro que foi contratado por Rui Mão de Ferro, colaborador de Santos Silva, tendo recebido cerca de 100 mil euros através de dois contratos.
Domingos Farinho e a sua mulher Jane Kirby estão a ser investigados numa nova investigação por suspeitas de falsificação de documento e peculato por eventual apropriação de dinheiros públicos da Faculdade de Direito de Lisboa, onde Farinho era professor em regime de exclusividade. Isto é, não poderia ter assinado nenhum contrato com outra entidade. O Ministério Público suspeita que Farinho é o verdadeiro autor da tese de mestrado e do livro “A Confiança no Mundo”. Sócrates nega.
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Carlos Santos Silva confirmou no Tribunal Central de Instrução Criminal que foi Sócrates quem lhe sugeriu o nome de Domingos Farinho como alguém que tinha bons conhecimentos jurídicos e uma pessoa com contactos internacionais. Santos Silva contratou-o através de uma empresa de Rui Mão de Ferro mas garantiu que Farinho nunca prestou serviços ao seu grupo empresarial.
O alegado testa-de-ferrro de Sócrates confirmou ainda que Farinho pediu-lhe expressamente que um segundo contrato fosse assinado pela sua mulher Jane Kirby porque ele, como professor da Faculdade de Direito de Lisboa, não poderia assiná-lo. Porquê? Porque estava em exclusividade naquela instituição de ensino e não podia prestar serviços a terceiras entidades.
Outra personagem relevante é António Costa Peixoto que, juntamente com o seu filho António Mega Peixoto, estão a ser investigados numa outra certidão extraída dos autos da Operação Marquês. Neste caso, terá sido João Pinto de Castro da AICEP a indicar o blogger que ficou conhecido como “Miguel Abrantes” no blogue Câmara Corporativa como alguém com muita experiência e contactos internacionais.
Também aqui Carlos Santos Silva confirmou que Costa Peixoto não prestou serviços às suas empresas. Mas acabou por receber uma avença mensal de 3.500 euros. No total, terá recebido cerca de 79 mil euros para escrever textos no blogue “Câmara Corporativa” contra os adversários políticos de José Sócrates.