O que têm em comum o Estádio do Dragão, uma estátua de Almeida Garrett e uma calçada nas Fontainhas? Além de partilharem a localização na mesma cidade, o Porto, todos cabem na nova criação de Sara Barros Leitão, a atriz de 29 anos que já serviu às mesas, fez televisão e agora não consegue separar a vida do palco.
Foi na Casa D’Artes do Bonfim que nos recebeu, morada onde a peça “Todos Os Dias Me Sujo de Coisas Eternas” terá uma sessão única e gratuita no dia 12 de julho, inserida no programa Cultura em Expansão. À boleia de um itinerário, o público será guiado por um monólogo onde os conceitos de casa e rua se vão fundir e confundir. Numa das divisões, agora transformada em sala de ensaios, são muitos os livros e as revistas espalhadas em cima da mesa, há papéis e mapas colados no chão e uma grande janela que prende o olhar de Sara durante a entrevista, afinal é lá fora, na rua, que ganha inspiração.
Tudo começou com a ideia, aparentemente simples, de querer fazer um espetáculo para as pessoas do Porto sobre as ruas em que estas habitam e assim poder contar as histórias, os mitos e as lendas desses mesmos lugares, registando-os e eternizando-os de alguma forma. Mergulhou então no Arquivo Municipal do Porto e numa pesquisa “quase esquizofrénica” descobriu que apenas 2,5% das ruas da cidade têm nomes de mulheres, que uma antiga profissão está na origem do nome de uma calçada nas Fontainhas e que o hino do Futebol Clube do Porto foi gravado numa madrugada silenciosa em pleno Teatro Nacional de São João. No meio de um processo criativo pessoal e sofredor, visitou bibliotecas e alfarrabistas, publicou um diário de bordo e sentou-se na rua, com chá e bolos, para ouvir histórias de vida.
O seu propósito passa por prestar homenagem a figuras e a momentos do Porto, mas também fazer algo interventivo, critico e político numa época em que o turismo é rei e as mudanças na cidade são “grandes e muito rápidas”. Prova disso é o abaixo assinado que irá distribuir durante o espetáculo para que outras mulheres, igualmente relevantes e mortas – requisito básico para dar nome a uma rua – sejam incluídas na Comissão de Toponímia do Porto.
Esta não é a primeira vez que Sara Barros Leitão se apodera de um passado recheado de memórias em favor da arte. Fê-lo no ano passado com o arquivo do Teatro Experimental do Porto na peça “Teoria das Três Idades”, a sua primeira encenação. Em boa verdade, a sua primeira encenação talvez tenha sido em criança, uma vez que o gosto pela arte de representar despertou cedo em si, fazendo com que tudo fizesse (ainda) mais sentido. Estava a estudar teatro quando as novelas a levaram para Lisboa aos 16 anos, altura em que ganhou a tão desejada independência. Regressou ao Porto e às tábuas do palco, em 2016, uma década depois, para finalmente se concretizar. Apesar da vontade de desistir todos os dias, fruto de um pessimismo crónico, Sara absorve as pequenas coisas do mundo e representa-as com honestidade, na certeza de que não quer ficar por aqui.
Esta peça é sobre as ruas do Porto, mas a Sara é da Maia. Quando é que descobriu a cidade?
Com 14 anos quando decidi vir estudar teatro para a Academia Contemporânea do Espetáculo. Para mim o Porto era muito longe, não vinha cá com frequência, não tinha carro. O metro para a Maia inaugurou no dia 31 de julho de 2005, nunca me vou esquecer da data porque foi no meu dia de anos e as viagens eram gratuitas. Depois comecei a ficar obcecada com a cidade, a ver tudo o que podia. Lembro-me de ver o mesmo espetáculo várias vezes.
Como surge o gosto pelo teatro?
Na Maia andava no clube de teatro da escola, no clube de teatro da freguesia e obrigava toda a gente a fazer teatro, era um bocado obcecada. O meu pai percebeu isso e resolveu fazer uma pesquisa onde descobriu a Academia. Eu não sabia que se podia ser ator, para mim não era uma realidade. Foi uma revelação quando o meu pai veio comigo à escola e me mostrou que eu podia mesmo estudar teatro.
No segundo ano do curso vai para Lisboa.
Sim, foi uma coisa que aconteceu muito naturalmente. Veio cá um diretor de casting e convidou alguns alunos a integrarem elencos de algumas produções da TVI. Eu queria ir para Londres e fazer televisão não era mesmo uma ambição. O projeto não era uma coisa que me aliciasse, mas de repente o diretor da escola ligou-me, a minha família falou comigo e convenceram-me, mostraram-me que haviam oportunidades que aconteciam apenas uma vez na vida e que eu devia arriscar e não ser tão fechada. Sempre tive muita vontade de morar sozinha e de facto moro sozinha desde os 16 anos. Foi muito bom para mim nesse aspeto, pois sentia que precisava do meu espaço.
Regressou há três anos ao Porto. Porquê?
Sendo brutalmente honesta, para mim estar em Lisboa nunca representou um grande sonho ou uma oportunidade. Aquilo foi uma circunstância, fui porque tive lá trabalho, mas em Lisboa não encontrei espaço para o que eu realmente queria fazer. Acredito que agora as coisas sejam diferentes, eu própria já estou noutro lugar profissional, emocional e pessoal.
De que forma é que se deteta uma realidade dessas?
Às vezes não temos muita consciência do que estamos a fazer na vida, vamos aceitando, sem questionar e eu dei um passo atrás e pensei: “o que estou aqui a fazer?” Ia ao teatro todas as noites e era ali, no palco, onde queria estar. As pessoas não me davam a credibilidade e a oportunidade e, por isso, a minha vida não fazia muito sentido. Para continuar a trabalhar naquilo implicava que eu cedesse numa série de princípios que tenho e nos quais acredito sobre o que a minha profissão deve ser e que eu devo ser na minha profissão, que sinceramente não me interessava abdicar.
Tais como?
Chego a Lisboa em 2007 e aquilo era mesmo estranho para mim. Estar na sala de atores e de repente entrar alguém do canal a fazer um direto, depois tinha que ir ao programa da Júlia (Pinheiro) para promover a novela. Eu não percebia porque tinha que ser obrigada a fazer uma coisa na qual eu não acredito.
Regressa ao Porto e depois?
A vida é que me foi dizendo o que ia fazer. Estava em Lisboa quando fiz uma audição para um espetáculo do João Reis, “Neva”, uma co-produção com o Teatro Nacional de São João, depois conheço o Nuno Carinhas, que era figurinista e cenógrafo, e me convidou a fazer um espetáculo no ano a seguir, “Os Últimos Dias da Humanidade”. Aí tive uma coisa única na minha vida que era acabar um projeto e já ter trabalho para o ano seguinte, o que me deu imensa liberdade. Quando dei por mim, a minha vida passava toda por aqui e isso agradava-me.
E aquela ideia de ir para Londres?
Isso foi no primeiro ano da Academia, no fundo acho que nunca quis. Sei lá, os meus amigos diziam que queriam e eu também ia na onda de irmos todos para Londres dividir um quarto. Na verdade, sonhei um bocado com isso, mas acho que era uma coisa meia adolescente. Não tenho nenhuma vontade de ir para fora, o Porto diz-me muito enquanto cidade.
Porquê?
Primeiro porque é minha, é o sítio onde pertenço, onde tenho ligações fortes como a minha família ou os meus amigos. Cresci aqui e identifico-me. Se começasse a fazer este percurso em Lisboa iria sofrer muito mais, ia ser muito mais duro.
Qual seria a diferença?
Por exemplo, para trazer as coisas para aqui eu preciso de uma carrinha, no Porto qualquer pessoa me empresta uma carrinha mesmo que não me conheça de lado nenhum e em Lisboa isso não acontece. Eu preciso de um espaço de ensaio ou uma garagem para guardar qualquer coisa e ninguém me arranja. Neste trabalho também quis explorar um bocadinho esta essência que eu sinto aqui, que não sei muito bem explicar.
Como surge este espetáculo?
Ligaram-me em novembro a explicar que no programa Cultura em Expansão existia um projeto com vários monólogos. Iam convidar pessoas do Porto, nomeadamente o António Capelo e a Emília Silvestre, e garantiram-me que podia fazer o que quisesse, uma coisa que já existia ou uma criação minha. Deram-me este espaço pouco convencional, sem um palco, uma data e um valor. Depois fui ver o que era o Cultura em Expansão e o facto de acontecer em sítios menos explorados da cidade e ter entrada gratuita foram aspetos que influenciaram bastante o espetáculo, pois isto é altamente democrático.
Até que ponto é que essa influência existiu?
Como artista tenho pensado muito nas barreiras físicas que atravessam os centros culturais. O Teatro Nacional de São João é um sítio que não é o mesmo para toda a gente. Ainda que a sua direção artística e administrativa queira ser, o próprio edifício cria logo uma barreira. As portas de vidro, os detalhes dourados, as cortinas em veludo, o chão de mármore, o silêncio, as pessoas de fato e gravata, os preços elevados dos bilhetes… Quando fui morar para Lisboa só entrei no Teatro Nacional D. Maria II dois anos depois de estar lá, já tinha ido a outras salas, mas aquela intimidava-me, deixava-me envergonhada.
Com carta branca, o que decide fazer?
Queria fazer um espetáculo para as pessoas que moram aqui sobre as ruas em que elas habitam. Pensei fazer um micro percurso pelos vários espaços desta casa dialogando entre a ideia de casa e de rua, de como a rua muitas vezes é casa e de como passamos a vida inteira a dizer o nome da nossa rua sem nunca sabermos porque é que ela se chama assim. Fiquei com muita vontade de contar as histórias das ruas, em fazer algo que contribuísse para o registo de uma memória. A rua é um não lugar, um sítio que não é habitável, o que é o oposto de lar. O lar é ao mesmo tempo um conceito que sempre foi confinado à mulher e interessava-me também perceber as várias mulheres que ocuparam as ruas da cidade. Soube há pouco tempo que só existem 52 ruas com nomes de mulheres e isso representa 2,5% das ruas do Porto. Neste livro [aponta para o Toponímia Feminina Portuense] diz que são 5% porque assumem substantivos femininos como por exemplo “Lapa” ou “Virtudes”.
Isso surpreendeu-a?
Muito, não estava a espera que fosse assim tão grave. As ruas com nomes de homens que começam por “Dr.” são 86 e só existe uma médica representada, sendo que o nome dela não tem “Dra.” Percebi que as mulheres não estão representadas nas ruas e que a história não quis registá-las quando, na verdade, elas sempre estiveram na rua a encabeçar uma série de batalhas, como o caso da revolta da Maria da Fonte, em 1846. As mulheres estiveram sempre na linha da frente, a história é que nunca as registou. O universo feminino também acontece na rua. Queria trabalhar o espaço público e privado, entre a casa e a rua, e o facto de a rua ser também casa para muita gente.
Sempre com um olhar critico intrínseco?
Sim, o espetáculo tem sempre um olhar crítico porque sou eu que o estou a fazer. Acho que o teatro é sempre um sítio muito político, que pode ser belo e horrível ao mesmo tempo. Deram-me esta casa na Avenida Fernão de Magalhães onde descemos 50 metros e temos o prédio onde a Gisberta foi brutalmente assassinada, isso não pode ser esquecido e ela ainda não tem nome de rua. Existe um conjunto de regras para as pessoas terem nomes de ruas, como estarem mortas por exemplo. Vou ter um abaixo assinado para dar o seu nome a uma rua, por isso todas as pessoas que venham ver o espetáculo podem ter um ato cívico para que o número de ruas com nomes de mulheres cresça, especialmente mulheres transexuais que ainda não existe nenhuma. A própria estatuária feminina também é muito pouco representada no Porto, os homens estão sempre vestidos, muito grandes, imponentes, a olhar para cima, como é o caso do Almeida Garrett em frente à Câmara, ou de D. João IV, em cima de um cavalo.
Qual foi a maior descoberta durante esse processo de pesquisa?
As carquejeiras. Existe uma calçada ali perto das Fontainhas que se chamava Calçada da Corticeira, começou por ser privada, tornou-se pública e desde 1912 era palco de uma profissão que envergonhava o Porto, foi extinta há relativamente pouco tempo e durou anos a mais. Essa calçada tem uma inclinação muito grande e, segundo a lei, era proibido que os animais de carga a subissem para trabalhar, então se os animais não podiam iam as mulheres. Passavam os dias curvadas com molhos de carqueja atrás das costas, pareciam ouriços – Sara mostra uma imagem ilustrativa no computador. Iam a pé pela cidade, às vezes até Paranhos, principalmente às padarias que usavam a carqueja para alimentar os fornos. Faziam-no descalças e chegavam a fazer sete vezes o mesmo percurso. É arrepiante e uma brutalidade, uma escravatura. Em 2014 morreu a última mulher que trabalhava na carqueja, chamava-se Palmira de Sousa, uma mulher que também deveria ter nome de rua. No espetáculo vou ler um testemunho dela na primeira pessoa emocionante. A Palmira morreu com 102 anos, teve sete filhos, morreram-lhe três, um deles nasceu a meio deste percurso e muitas vezes caminhou com quilos às costas e com os filhos pendurados no avental. A então Calçada da Corticeira passou a chamar-se Calçada das Carquejeiras.
Além do poder feminino, a gentrificação é outro dos temas abordados no espetáculo.
Sim, este espetáculo é bastante crítico em muitos sentidos, tanto faz homenagem como é super político. A ideia é olhando para as ruas, o que tenho a dizer? Há muita coisa bonita, mas também há muita coisa horrível. Que Porto é esse que estamos a construir agora? Acho que o espetáculo contribui para que não se perca a memória do que é nosso, ele não tenta ser saudosista ou paternalista nesse sentido, acho que ele faz um bom balanço das duas coisas.
Olhando para o chão, está ali um papel que diz Estádio do Dragão. Porquê?
O Dragão surge porque faz parte da cidade e também da minha vida, pois trabalhei no Estádio do Dragão como hospedeira durante um ano, quando voltei para o Porto, para pagar o curso. Na peça uso até um e-mail que nos enviavam antes de cada trabalho que dizia: “atenção, muito maquilhadas, cabelo esticado, não podem usar nada vermelho ou adereços, só umas pérolas, aconteça o que acontecer não podem dizer de que clube são, sorriam e sejam simpáticas”. Tudo aquilo era muito fora para mim, no entanto o estádio acaba por ser um ícone da cidade, foi construído no local onde era o estádio das Antas, que era o local onde os meus pais treinavam quando eram atletas, isso fez um link na minha vida também. Trabalhei no Dragão para pagar o meu curso e nunca pensei que o Teatro Nacional de São João, onde eu um dia iria trabalhar um dia, foi propriedade da família do Pinto da Costa e o palco onde foi gravado o hino do clube que durante todos os jogos eu ouvia. Descobri que esse hino foi gravado lá numa madrugada porque precisavam que a cidade ficasse em silêncio, isto é muito giro. De repente as coisas relacionaram-se e para mim a dramaturgia surge assim, uma coisa atrás da outra.
Essa forma de trabalhar muda depois a forma como vê os locais, a cidade, as pessoas?
Sim, muda muito. Estou sempre a fazer as ligações, é como um mapa, gosto muito de saber qual é a poesia que as coisas acabam por contar. Depois há dias em que penso: “o que estou a fazer aqui fechada? Estou aqui a querer falar sobre ruas, tenho é que sair.” Essa vontade fez com que eu tivesse ido para a rua, sentar-me numa cadeira para ouvir histórias. Estava numa fase meia desinspirada, não sabia para que lado me havia de virar, pensei que mesmo que não desse em nada poderia ser algo bom para o espetáculo.
E foi?
Nesta experiência bebi muito para mim e muito pouco para o espetáculo, foi muito transformador. Eu achei que não ia correr bem, sim eu sou super pessimista. Fui para a Batalha, levei duas cadeiras, um banco onde coloquei chá e bolos, e um cartaz que dizia: “escuto histórias (de amor, desamor, intrigas, ódios, mitos urbanos, etc). Tenho chá, bolos e tempo ou também podemos ficar em silêncio”. Sentei-me, abri um livro e quando olhei já estava uma pessoa sentada à minha frente. Sentaram-se quatro pessoas, houve um momento em que estavam três a fazer fila, e as quatro contaram-me a sua história de vida. Uma moradora de rua que toma metadona, tem dois filhos e não sabe o paredeiro deles porque lhes forem tirados mal nasceram, então ela achou que eu a podia ajudar a encontrar os filhos. Pelo meio aconteceram muitas peripécias, ela queria comer os bolos, porque não tinha comido nada naquele dia, mas eram um bocado duros e ela tinha placa, por isso fez a higiene oral toda a minha frente e demorou uns 20 minutos a comer, foi muito forte. A seguir veio outro morador de rua que dorme precisamente à porta do Teatro Nacional de São João, mas nunca lá entrou. Conhecia o meu trabalho, porque antes de morar na rua via os meus trabalhos na televisão, combinámos que ele vinha ver o espetáculo e para mim era uma grande vitória se ele viesse. Depois sentou-se um senhor que perdeu o comboio, nasceu numa ilha do Porto e explicou-me como é que uma pessoa que não tem sapatos chega onde ele chegou. Disse-me que as pessoas o achavam presunçoso porque estava sempre a falar dos seus feitos, mas se eu soubesse o que ele tinha passado para chegar aqui veria que não tinha outra hipótese de não estar sempre a falar de si próprio. Finalmente sentou-se uma outra senhora que ia a caminho da distribuição da sopa na igreja e como ainda faltava algum tempo contou-me que nasceu numa família com brasão no Porto, nem ela nem a mãe tiveram que trabalhar, mas que perderam tudo e ela agora vai comer sopa na rua. Foram quatro horas com quatro histórias muito violentas, todas me emocionaram bastante, percebi que devia ter levado mais lenços de papel. Se um dia voltar a fazer não me vou esquecer, mas eu não sabia que ser assim.
Vai usar alguma destas histórias na peça?
Não, são demasiado pessoais. O que me influenciou para a peça foi a ideia de que como é incrível as pessoas precisarem tanto de conversar, de como são tão solitárias. Isso fez-me pensar que por mais que a cidade cresça economicamente, as pessoas não deixam de se sentir muito sozinhas. O que é que o teatro e a arte podem fazer por isso? Esta experiência pôs-me a refletir sobre para onde é que a cidade está a crescer? Onde é que estas pessoas ficam? O que fazemos com elas? Elas também são património na cidade. Não sei explicar onde é que isto está no espetáculo, talvez esteja em mim e nesta ideia de que a rua também é um sítio de casa.
Enquanto artista sente esse peso, essa responsabilidade?
Os artistas são privilegiados porque têm voz então é quase como no Homem Aranha quando o Peter Parker é mordido e o tio diz-lhe que com o poder vem uma grande responsabilidade. Sinto isso, que fui mordida pela aranha e agora tenho esse peso. Não quero usar o privilégio de ter uma voz e um espaço para fazer um espetáculo que não tenha consequências, que não suje as pessoas de qualquer coisa eterna.
O que a “suja de coisas eternas”?
O meu dia a dia, é aquilo que mais influencia o meu trabalho. As pessoas com quem eu me cruzo, as histórias que me contam, interessa-me trabalhar sobre isso. Ando sempre de autocarro e a pé, moro num prédio onde conheço os meus vizinhos todos, entro no mesmo café todos os dias e tudo isso é o que me inspira e me influencia. Tudo o que eu faço é muito pessoal, tenho mesmo de ser honesta com o que estou a fazer. Respeito todos os artistas que trabalham em qualquer outro sentido, mais comercial ou menos político. Acho que a vida é muito dura para estarmos sempre a fazer política, às vezes só queremos estar e parar, sinto muito isso. Quando és um bocadinho revolucionário às vezes dá mesmo vontade de não falar, de desistir, de não fazer, de apenas estar, porque é muito cansativo e difícil. Ainda estou num momento em que não posso fazer uma coisa na vida e outra no palco, tenho que ser coerente e por isso o que quero realmente fazer enquanto artista é também o que eu faço na vida. Aquilo que eu sinto no meu dia a dia é aquilo que eu quero fazer como atriz. Não sou uma pessoa de grandes causas, acho que a revolução se faz em mim e depois na pessoa que eu contagio, é assim que se revoluciona o mundo.
Isso não é demasiado poético?
Vou dar um exemplo. Resolvi fazer um diário de bordo público, não sabia quais iam ser as suas repercussões, no fundo era só uma maneira de me obrigar a escrever. Através dele recebi uma mensagem de uma editora a sugerir a leitura de um livro, eu respondi que estava na biblioteca municipal do Porto e lê-lo e eles ofereceram-me um exemplar. Depois recebi uma mensagem de uma atriz que me sugeriu um livro escrito pelo tio, outros emprestaram-me coisas que estavam paradas lá em casa. No outro dia uma amiga cujo pai faleceu há muito pouco tempo ligou-me, estava a mexer nos pertences dele e disse-me que viu coisas que me poderiam interessar para a peça. Eu comecei a chorar, como é que uma pessoa que está a passar por uma dor daquelas percebe que aquilo pode ser útil para o meu espetáculo? Grande parte das coisas que estão aqui em cima da mesa foram pessoas que sugeriram e se lembraram. Isso faz-me pensar que se calhar alguma coisa certa estou a fazer.
Sente que, de alguma coisa, o espetáculo já não é só seu?
Sim, é verdade, já não é só meu. Sou mesmo sortuda porque as coisas vêm ter comigo desta maneira.
Ele vai esgotar-se dia 12 ou pode prolongar-se?
Acho que posso fazê-lo noutros sítios e noutros contextos. Ele é pensado para esta casa, mas estou sempre a mudá-lo, não é estanque nem fechado. Se encontro alguma coisa nova que me contamina, posso incluir na peça até mesmo no próprio dia.
O que tem planeado para o futuro?
Uma co-criação com a companhia Visões Úteis, estamos a trabalhar a partir do arquivo do Mário Moutinho. Vai estrear em novembro em Ponte de Lima e passará depois em janeiro pelo Rivoli.
A criação é um papel mais difícil e compensador?
Sofro muito a trabalhar, todos os dias penso em desistir, mas depois começo a fazer outras coisas e percebo que não consigo deixar de fazer isto. É horrível. É ainda mais difícil quando tenho uma criação minha, mas por outro lado está muito mais visível aquilo que eu sou porque estou toda implicada na mesma coisa. Neste momento da minha vida acho que sou mais criadora do que atriz, mas tudo se dilui. Essa barreira acontece em algumas estruturas como no Teatro Nacional de São João, por exemplo, em que eu tenho um contrato de trabalho e diz lá atriz, atribuem-me uma personagem e tenho uma tabela de ensaios. Continuo a trabalhar assim e hei de continuar porque me dá muito prazer e estaleca. Não estou nada naquela fase em que acho que já sei tudo, sempre que tiver oportunidade de trabalhar com outros encenadores vou fazê-lo porque aprendo muito com eles. Neste momento estou só a seguir o meu instinto, a pisar outro caminho, mas não faço a ideia se isto tem futuro.