Médico psiquiatra, professor universitário, investigador e diretor do Complexo Assistencial de Zamora, centro hospitalar na região autónoma de Castela e Leão, em Espanha, Manuel Franco Martin criou um modelo de intervenção em saúde mental baseado na comunidade e com uma organização em rede: a ação social e a estreita e permanente articulação entre os cuidados de saúde (primários e mentais), com equipas multidisciplinares, são a base para o trabalho com pessoas com doença mental grave, a quem é garantido um apoio 24 horas por dia.
O modelo é um exemplo para a Europa e para o mundo e Manuel Franco Martin recebe no seu serviço muitos internos de psiquiatria de outros países — entre os quais Portugal — para perceberem como funciona e como pode ser replicado. Porque é por aqui que passa o futuro dos cuidados de saúde mental.
O Serviço de Psiquiatria do Complexo Assistencial de Zamora, que dirige, é um exemplo que é convidado a partilhar em diversos fóruns internacionais. Em que consiste o modelo assistencial reticular que implementou?
A base do modelo reticular, que é mais focado em patologias mentais graves e prolongadas, é a mudança do tradicional internamento em hospitais psiquiátricos para o apoio na comunidade. O doente é tratado em sua casa ou em residências protegidas fora do hospital e tem um apoio tanto médico como social. Os cuidados de saúde mental são transferidos do hospital para os cuidados de saúde primários, o que significa que os psiquiatras, os psicólogos, os enfermeiros e outros técnicos de saúde mental trabalham nas mesmas unidades e centros de saúde que os cuidados de saúde primários e isso facilita a coordenação e as ligações com a rede de serviços sociais da segurança social e da comunidade e o conhecimento, por parte dos técnicos de saúde mental, dos aspetos sociais e do contexto de cada doente. Portanto, na hora de decidir a abordagem a cada doente, não se tratam apenas as questões clínicas relacionados com a doença, mas também os problemas das pessoas que sofrem da doença.
O que exige um trabalho em rede, na comunidade.
Trata-se de fazer uma intervenção, que além da abordagem clínica, psiquiátrica e psicológica, cobre os aspetos sociais, com todos os apoios possíveis nessa área – integração social, condições de habitação, inserção profissional, condições de vida – tendo em conta a história da pessoa, o que fez, o que foi, o que quer ser, e, portanto, dando apoio direto ao projeto vital da pessoa. Para nós é muito importante, nas doenças mentais graves, que a pessoa possa construir um projeto vital, porque o problema, por exemplo, na esquizofrenia, é que todos os projetos, todos os sonhos, todos os objetivos são quebrados. O mundo daquele doente, a sua vida, muda completamente, e, por isso, é muito importante fazer uma intervenção social e psicológica que permita uma reconstrução do projeto de vida e finalmente um trabalho de psiquiatria e farmacologia que tenha em conta os aspetos específicos da doença.
Esse trabalho é desenvolvido também com as famílias e com os cuidadores?
Claro, isso é estratégico. Mas temos de ter em conta que no caso das pessoas com esquizofrenia, por exemplo, os pais, em geral, são idosos e têm mais dificuldade de dar apoio, mas é muito importante apoiar as famílias e retirar-lhes o peso de todas as responsabilidades que têm às costas, fazer-lhes sentir que têm um apoio constante. Há um número de telemóvel para o qual podem ligar sempre que alguma coisa não está bem e com isso prevenimos emergências. É fundamental esta ligação às famílias.
O apoio está disponível 24 horas por dia e cada doente tem um gestor clínico, que é um enfermeiro especialista.
Exatamente. Cada doente tem um enfermeiro de referência e um número de telemóvel para o qual ele ou a família podem ligar, em caso de qualquer dificuldade. Esse contacto está disponível das 8h00 às 15h00, de segunda a sexta-feira, mas depois, das 15h00 às 8h00, o número está ligado à central de emergências e, avaliada a situação, pode o enfermeiro ou o psiquiatra de turno ser chamado para ver o doente em casa. O objetivo é garantir a continuidade dos cuidados do doente mental grave que vive na comunidade.
É fundamental sentirem esse apoio permanente?
Para mim, esta noção de continuidade dos cuidados é o mais importante porque muitas vezes a família e o doente sentem que estão sozinhos porque, quando precisam, ninguém responde e então veem como única solução a institucionalização. A ideia é dar apoio à família, é ter sempre alguém que dá resposta. Isso evita e previne muitas institucionalizações, porque a família sente que há uma continuidade de cuidados e que não está sozinha e o doente, por seu lado, sabe que tem apoio quando precisa. Isto acaba por ser mais barato para o sistema, o que é muito importante em termos de sustentabilidade.
Com este modelo, os internamentos diminuíram em cerca de 60 por cento, não foi?
Exato. Os cuidados são sobretudo prestados na comunidade. Mas manter o doente a viver na sua comunidade é um trabalho duro porque também precisamos que a comunidade mude a mentalidade e aceite que a sociedade é para todos.
E para as pessoas com doença mental menos grave, como a ansiedade ou a depressão, que na verdade são a maioria, que tipo de resposta existe? Como se encaixam neste modelo de intervenção?
O modelo reticular está mais focado em doenças mentais graves. Em geral, nas patologias leves e moderadas, o projeto vital da pessoa mantém-se, no trabalho, na família, na sociedade, e, portanto, o foco é mais na doença – tratar para que a doença acabe e a pessoa possa continuar com a sua vida. No caso das psicoses ou patologias mais graves, paradoxalmente, o problema não é tanto a doença, que está na origem do problema, mas o facto de esta ter quebrado todo o projeto de vida da pessoa, as suas redes sociais e familiares, porque a vivência com uma pessoa com este tipo de patologia é muito dura. Daí que não seja apenas preciso tratar a doença, mas tratar a pessoa, de forma que esta possa reconstruir o projeto vital.
E para isso é preciso uma intervenção diferente.
Temos de fazer intervenção na sociedade para que tenha o suporte continuado. Não é só dizer “aqui estamos”, a família tem de ver que estamos de facto, que há um telefone e que há sempre alguém que atende quando se liga. Cada doença é diferente, mas o impacto da doença na vida da pessoa é diferente quando é uma doença grave, em que toda a vida muda. Outras doenças podem ser graves, mas não afetam a vida. É como quando se tem um acidente: se partimos uma perna, temos de estar em convalescença, mas depois de curados podemos continuar com a vida e o trabalho; se ficamos paraplégicos deixamos de poder andar, temos de mudar o estilo de vida, a casa tem de ser adaptada, muitas coisas mais têm de mudar. A diferença é essa. Em saúde mental, é o mesmo.
Mas há depressões que são muito graves e põem também em causa a funcionalidade da pessoa e a continuação do seu projeto vital, como lhe chama.
No caso de depressão ou ansiedade graves ou perturbações de personalidade, é possível integrar as pessoas neste modelo de apoio continuado. Para patologias menos graves, como a depressão ou ansiedade moderadas ou um transtorno adaptativo, por situações graves da vida como o luto pela morte de alguém querido, o tratamento é feito com acompanhamento psicoterapêutico nos cuidados de saúde primários, que articulam com os cuidados de saúde mental. Se, depois, temos complicações, como depressões mais graves, transtorno obsessivo-compulsivo ou stress pós-traumático há tratamentos mais específicos.
Como a estimulação magnética transcraniana ou o uso de psicadélicos, que o serviço de psiquiatria do Complexo Assistencial de Zamora iniciou este ano?
Sim. São novas linhas de trabalho e abordagem terapêuticas que estamos a iniciar. O problema é que temos um grupo importante de doentes que não melhoram com os tratamentos tradicionais e, portanto, procuramos novos tratamentos que possam ter sucesso onde os tratamentos tradicionais não têm. O uso da estimulação magnética transcraniana foi recentemente aprovado nos EUA e tem a vantagem de não ter efeitos secundários nem riscos para o doente. O uso da quetamina é mais controverso, pelo custo elevado e pelas dificuldades que coloca relativas aos riscos de adição. Há que fazer uma avaliação do custo-benefício, mas em doentes muito severos é uma boa possibilidade. O mais polémico tem que ver com o uso de drogas até agora proibidas, consideradas de alto risco. A questão é se os efeitos no cérebro, de prazer, de mudanças na forma de pensar, quando usadas de forma controlada, podem ser benéficos para os doentes. Os estudos indicam que sim, mas tem que haver um acompanhamento psicoterapêutico, num ambiente muito controlado e com um controlo das doses. Como em todos os campos da medicina, não curamos tudo, mas temos de tentar encontrar novas soluções para os problemas mais resistentes.
Além da depressão resistente, a estimulação magnética transcraniana pode ser indicada para pessoas com transtorno obsessivo-compulsivo e stress pós-traumático?
Sim, o foco está na depressão resistente, mas está a provar-se eficaz também noutras patologias. O que temos com a estimulação magnética transcraniana é uma estimulação cerebral com um reforço do funcionamento do cérebro que pode ser útil em transtornos obsessivo-compulsivos, stress pós-traumático e, de acordo com alguns estudos, até mesmo nas demências. Estamos no começo, mas o mais importante neste momento é que sabemos que não tem riscos, não é preciso parar outros tratamentos, portanto é complementar, e provou eficácia na depressão resistente e no transtorno obsessivo compulsivo. No futuro, saberemos mais e certamente será usado noutras patologias.
No caso das doenças mentais moderadas, o apoio psicoterapêutico é público e de fácil acesso ou tem de se recorrer ao setor privado?
Oficialmente, há possibilidade de fazer psicoterapia no setor público da saúde, mas a realidade é que para isso é preciso que os serviços disponham de muitos mais recursos e psicólogos clínicos. Há psicólogos clínicos nos serviços de saúde mental públicos para fazer psicoterapia, para os casos mais graves. Mas há muitos casos em que não é possível, sobretudo devido à falta de recursos humanos. Penso que não é um problema só de Espanha, é da Europa, esta falta de profissionais de saúde, nomeadamente psicólogos. Por isso é mais complicada a oferta de serviços ou intervenções psicoterapêuticas em geral. Isto significa que para as patologias graves há apoio psicológico e psicoterapêutico, mas não tanto como eu gostaria.
O modelo assistencial reticular é o modelo adotado pelos serviços de saúde mental em Espanha ou só existe em Zamora?
Só existe em Zamora e Valladolid, onde fui chefe da Psiquiatria durante cinco anos para implementação do modelo lá, que é a capital da região autónoma de Castela e Leão. Em teoria, todas as políticas de saúde mental estão alinhadas com este modelo, mas em termos práticos neste momento só existe nestas duas cidades. Aliás, há muitos internos de psiquiatria, de Espanha e até de Portugal, que vão estagiar no Complexo Assistencial de Zamora para conhecer o modelo e perceber como funciona, porque a implementação no sistema público não é fácil.
Porquê?
Estamos a falar de ter de ir a casa dos doentes, às pequenas aldeias, estar nos cuidados de saúde primários, que se distribuem por 22 unidades básicas de saúde, cobrir uma zona ampla. Isto requer não só uma mudança organizacional, mas também o envolvimento dos trabalhadores, que têm de acreditar no modelo e nas suas vantagens e potencialidades, nomeadamente o envolvimento dos enfermeiros de saúde mental, que são o elemento-chave, mas também dos psiquiatras e psicólogos com quem trabalham em ligação, e os técnicos da área social. Não é fácil.
É toda uma mudança de paradigma?
Médicos, psicólogos e enfermeiros têm tendência a estar no hospital. O trabalho na comunidade é mais complexo, mais aberto, exige mais. Além disso, os sistemas de controlo e de gestão do pessoal estão formatados para um sistema hospitalar. Quando falamos de quantos enfermeiros são precisos para um serviço, por exemplo, o cálculo é geralmente feito com base em X enfermeiros para X camas. Quando trabalhamos na comunidade, é mais difícil fazer este cálculo – depende das distâncias a percorrer, do número de doentes, da complexidade da patologia e do contexto do doente, etc. E depois há a questão do financiamento, que está tradicionalmente ligado à atividade hospitalar. Ora, se o financiamento é calculado em função dos internamentos, é mais difícil promover este tipo de modelo, porque reduzindo os internamentos, reduz-se o financiamento. Tem de existir vontade política para fazer esta mudança, nomeadamente alterando o modelo de financiamento.
Mas conseguiu fazê-lo no seu serviço.
Sim e tenho conseguido apoio político. O modelo é considerado muito interessante, há intenção de estendê-lo, mas a execução não é fácil. É preciso mudar muita coisa e congregar muitas vontades, nomeadamente dos profissionais de saúde, das direções de serviço e dos políticos.
Mas é por este modelo que passa o futuro dos serviços de saúde mental na Europa e no mundo? Em Portugal, estamos a iniciar este processo.
Isso para mim é claro e, de facto, temos muitas ligações com Portugal. Temos muitos internos de psiquiatria portugueses a estagiar connosco e tenho uma ligação constante com os coordenadores da saúde mental em Portugal. Em dezembro, estive num evento organizado pelo governo português com o Coordenador Nacional da Saúde Mental [Miguel Xavier] para explicar o modelo. Penso que o vosso país está num momento muito interessante em termos de políticas de saúde mental, porque há vontade política e o financiamento dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência torna possível a mudança. Penso que as pessoas que estão a dirigir esta mudança estão no caminho certo. O futuro passa por um sistema mais focado nas pessoas e nos cuidados de proximidade, sobretudo em países como Portugal e Espanha, que são grandes para a população que têm, concentrada nas grandes cidades e de resto muito dispersa. É preciso promover a descentralização. Esse é o caminho.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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