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Espanha nos piores tempos da pandemia, quando foi preciso escolher quem vivia e quem morria nos hospitais
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Espanha nos piores tempos da pandemia, quando foi preciso escolher quem vivia e quem morria nos hospitais

Madrid Regional Government/EPA

Espanha nos piores tempos da pandemia, quando foi preciso escolher quem vivia e quem morria nos hospitais

Madrid Regional Government/EPA

Saúde: público vs. privado, ou público e privado na resposta à Covid-19? Como o resto da Europa vê a luta

Perante os modelos existentes, as discussões sobre os méritos do público e privado podem ficar para outros dias. Até lá, há doentes para tratar e vidas para salvar. Ensaio de Mário Amorim Lopes.

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Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

Há semanas que se discute algo que deveria estar decidido há meses: devem, ou não, os hospitais do sector privado e do sector social fazer parte da resposta conjunta do sistema de saúde à pandemia? Mais concretamente, deverá o sector privado e social ajudar logo à partida a ampliar o número de camas e de tratamentos para doentes Covid-19? Ou deverá contribuir na prestação das outras actividades clínicas, evitando assim que se suspendam tantas cirurgias, consultas de especialidade e rastreios oncológicos, como ocorreu no início da pandemia? Ou, por outra, deverá manter-se à margem, assegurando-se assim a natureza pública do SNS?

Preocupado com o risco para a saúde da população que o adiamento da actividade clínica representa, o bastonário e ex-bastonários da Ordem dos Médicos escreveram uma missiva à Ministra da Saúde, Marta Temido, rogando por uma solução que atenda, em primeira e ulterior instância, às necessidades imediatas dos pacientes. E essas necessidades não são compagináveis com querelas ideológicas travadas amiúde no Parlamento, e que procuram determinar, pela enésima e interminável vez, se o sector privado e social pode, ou não, prestar cuidados de saúde no contexto de serviço público. Política à parte, o sector privado e social não só pode como deve fazer parte da solução para mitigar o impacto da pandemia — ou pelo menos é esse o entendimento que a Ordem dos Médicos faz.

Perante este apelo, a Ministra da Saúde pergunta, em resposta, porque é que a Ordem dos Médicos está a tentar “empurrar” o Governo para um acordo com o sector privado e social, alegando que “o SNS está a responder” às novas necessidades da pandemia e às restantes doenças. Ora, quinze dias depois, o Ministério da Saúde emite um despacho que autoriza os hospitais do SNS a suspenderem “a actividade assistencial não urgente, […] que não implique risco de vida para os utentes”. Este despacho surge na sequência de notícias que dão conta de fortes constrangimentos em vários hospitais, como é o caso do Hospital S. João, do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa (Penafiel) e do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e Espinho, que se viram forçados a limitar actividade, para acomodar o acréscimo de pacientes Covid-19. Parece ter sido curta a resposta, portanto.

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Embora não exista um modelo perfeito, existem diferenças na forma como os sistemas estão articulados e como são governados, diferenças que poderão ter impacto na resposta a esta pandemia e a outras situações de grande pressão sobre os serviços hospitalares.

Esta discussão já não surpreende nenhum cidadão português, dada a sua recorrência. Mas surpreenderia muitos outros Europeus, para quem a natureza jurídica do prestador de cuidados de saúde é irrelevante e, na maior parte dos casos, até desconhecida. Na Alemanha, por exemplo, são frequentes as ocasiões em que os próprios cidadãos não sabem se estão a ir a um hospital público, privado ou sem fins lucrativos, até porque isso não os preocupa ou tão pouco lhes interessa. O que os preocupa é se estão a receber bons cuidados de saúde em tempo útil.

Neste ensaio vamos procurar analisar como funcionam os sistemas de saúde dos vários países europeus e as diferentes abordagens que cada país e cada sistema de saúde segue. Procuraremos também perceber as vantagens e inconvenientes dos vários sistemas. Embora não exista um modelo perfeito, existem diferenças na forma como os sistemas estão articulados e como são governados, diferenças que poderão ter impacto na resposta a esta pandemia e a outras situações de grande pressão sobre os serviços hospitalares.

En garde: público vs. privado e a resposta à Covid-19

Dada a centralidade do modelo de prestação pública de cuidados de saúde no SNS, qualquer recurso ao sector privado e/ ou social é sempre visto, por determinadas pessoas e partidos políticos, com enormes reservas. Aliás, na recente reformulação da Lei de Bases da Saúde, o recurso ao sector privado foi despromovido de complementar a supletivo, sugerindo assim que o sector privado e o sector social não complementam o SNS na resposta às necessidades de saúde da população, mas trabalham de forma subsidiária, se e quando o SNS assim o entender.

Aos dias de hoje, há quem entenda que o SNS necessita dessa ajuda adicional e há quem entenda que não, ou tenha reservas em prontificar essa integração de cuidados de saúde. Muitos agentes de saúde têm-se manifestado a favor dessa resposta concertada entre todos os prestadores de saúde, mas, até à data, não existe um plano nacional delineado, sendo a resposta definida de forma pontual, hospital a hospital e, em alguns casos, a nível regional, como se sucedeu com a Administração Regional de Saúde do Norte (ARS Norte).

epa08761952 Medical staff takes care of a Corona patient at the intensive care unit of the University Hospital in Essen, Germany, 21 October 2020. The University Hospital Essen treats several patients in its intensive care unit who are seriously ill with the corona virus. Countries around the world are stepping up measures to stem the reappearance in a second wave of the SARS CoV-2 coronavirus, which causes COVID 19 disease.  EPA/FRIEDEMANN VOGEL

Uma unidade de Cuidados Intensivos na Alemanha, onde nasceu o primeiro sistema de saúde organizado para todos os trabalhadores: todos têm um fundo de doença e podem escolher o hospital

FRIEDEMANN VOGEL/EPA

Posto isto, é interessante perceber como é que a questão público vs. privado se trava nos outros países europeus, e que implicações é que isso poderá ter para uma resposta conjunta a uma pandemia, como a Covid-19. No caso dos países com sistemas de saúde bismarckianos, em que os cidadãos podem escolher livremente que instituição de saúde visitar, não se trava. Não existe discussão se ou quando o sector privado e social devem fazer parte da resposta à pandemia, porque o sector privado e social são parte integrante do sistema nacional de saúde. Qualquer cidadão pode visitar qualquer prestador de saúde, independentemente da sua natureza jurídica. Aliás, esta discussão que se trava em Portugal deixaria muitos europeus perplexos.

Já nos países beveredgianos, isto é, de natureza eminentemente estatal, a resposta variou consoante o país e consoante a orientação política dos governos. O Reino Unido, por exemplo, alugou camas de hospitais privados a um valor pré-acordado. Já a Espanha e a Itália, por sua vez, avançaram com uma requisição civil, colocando todos os hospitais privados ao dispor dos respectivos governos.

Seja qual for a abordagem, e seja qual for a relevância do sector privado e social no contexto do sistema de saúde, a verdade é que existe um número substancial de camas de internamento e de cuidados intensivos fora do sector público, pelo que ignorar estas camas é, efectivamente, reduzir a capacidade instalada disponível para tratar doentes Covid e não-Covid.

Como a Figura 1 atesta, o sector privado e social detém, em Portugal, cerca de um terço das camas de internamento, e mais de uma centena de camas em unidades de cuidados intensivos. Situação muito similar à da Itália, que também tem um sector privado e social com um terço da capacidade instalada em número de camas. Já em países como a Dinamarca o problema é menos marcado, pois 94% da capacidade instalada está no sector público, sendo menor o impacto do sector privado e social.

Todos juntos no combate à Covid-19

Seja qual for a abordagem seguida, a rejeição do recurso ao sector privado, cuja fundamentação parece ser sobretudo ideológica, terá pesadas consequências para os cidadãos, em particular no atendimento de outras patologias para além da Covid-19. Note-se que a inclusão do sector privado e social não é garantia de que não ficarão cuidados de saúde por prestar ou que não serão adiadas cirurgias e consultas de especialidade; mas é um balão de oxigénio que permite protelar ou reduzir esse adiamento e cancelamento da actividade clínica normal.

Esta questão é também relevante como forma de recuperar toda a actividade que ficou adiada devido à pandemia. Às extensas listas de espera para cirurgia e consulta de especialidade somaram-se agora todos os actos clínicos que foram adiados devido à cirurgia. Se, em circunstâncias normais, os hospitais públicos não tinham capacidade para prestar todos estes cuidados num tempo considerado aceitável, mais difícil será fazê-lo num contexto de pandemia, com a enorme pressão que a Covid-19 coloca.

E com isto coloca-se uma questão interessante: quando é que se deu esta cisão no modelo de prestação de cuidados de saúde e em que momento se tornou uma luta ideológica? Ao contrário daquilo que é a percepção generalizada em Portugal, o nosso modelo organizacional do SNS não é o mais comum na Europa. Para percebermos a génese dos sistemas de saúde e do Estado Social temos de recuar quase séculos, até ao fim do Sacro Império Romano e ao chanceler alemão Bismarck.

Enquadramento: a história dos sistemas de saúde modernos

O sistema de saúde mais antigo da Europa, o alemão, surgiu como resposta a tensões políticas que emanaram da dissolução do Sacro Império Romano, que deu origem a várias regiões, territórios, ducados e principados alemães mais ou menos independentes. Otto von Bismarck, o chanceler do maior reino alemão, a Prússia, aspirava a uma Alemanha novamente unida. A criação de um seguro social de saúde para os trabalhadores alemães serviu, então, dois propósitos: atrair os diferentes estados para uma confederação alemã, liderada pela Prússia, e apaziguar as demandas do Partido Social Democrata, que ganhava cada vez mais expressão. Falhou na segunda, mas teve sucesso na primeira: nascia assim o primeiro sistema de saúde organizado para todos os trabalhadores do então Império Alemão.

Em Portugal, o modelo de sistema de saúde que inspira a Lei de Bases da Saúde de 1979, que estabelece os termos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não é o alemão, porém. O SNS baseia-se não nos seguros sociais de saúde, que são comuns em países como a Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda, França ou Suíça, mas sim no modelo proposto por Lord Beveridge, o NHS britânico, que surge, a par com outras medidas de protecção social, no livro branco que publicou em 1942

A lei foi criada em 1883 e, pese embora a cobertura do sistema alemão ser agora universal (abrangendo a totalidade da população), o espírito da lei mantém-se relativamente inalterado: todos os trabalhadores industriais e não industriais têm direito a um seguro de saúde, sendo o seu custo dividido entre empregado e empregador. Para tal, são constituídos fundos de doença, à semelhança dos fundos de pensões, sendo os descontos obrigatórios. O empregador paga um terço e o empregado os restantes dois terços. Estes fundos de doença são locais/regionais e estão dotados de total autonomia na sua gestão. Os segurados, por sua vez, podem livremente escolher o seu prestador de saúde, sendo os custos cobertos pelo fundo.

Em Portugal, o modelo de sistema de saúde que inspira a Lei de Bases da Saúde de 1979, que estabelece os termos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não é o alemão, porém. O SNS baseia-se não nos seguros sociais de saúde, que são comuns em países como a Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda, França ou Suíça, mas sim no modelo proposto por Lord Beveridge, o NHS britânico, que surge, a par com outras medidas de protecção social, no livro branco que publicou em 1942. Ao contrário do modelo alemão, designado de bismarckiano, o modelo de origem inglesa concentra o sistema (quase) todo no Estado. É ao Estado que compete financiar (através de impostos); é ao Estado que compete prestar (através de instituições de saúde eminentemente públicas, como centros de saúde e hospitais); e é ao Estado que compete regular.

Aliás, quando alguns partidos, geralmente à esquerda, acusam partidos como o PSD e CDS de terem votado contra a lei que criou as bases do SNS, em questão não estava a criação, ou não, de um sistema de saúde universal e gratuito, princípio com que todos os partidos estavam manifestamente de acordo. Em questão estava nos moldes em que tal sistema deveria ser criado. Tanto PSD como CDS, assim como a generalidade dos médicos, votaram a favor de um modelo mais próximo do alemão, enquanto que os partidos à esquerda, e em particular o PS, propuseram um modelo similar ao inglês. Acabou por ganhar a proposta de António Arnaut, que segue o modelo britânico, embora a implementação efectiva do SNS acabasse por ser feita, ironicamente, pelos governos de Cavaco Silva.

Ambos os modelos foram sendo adaptados às circunstâncias específicas de cada época e de cada país, e existem, aliás, países com sistemas híbridos, que juntam particularidades de cada um dos sistemas. O próprio NHS britânico depende, aos dias de hoje, de um envolvimento considerável do sector privado e social, tanto na prestação de cuidados de saúde como na gestão das actividades não-clínicas. Em 2012, foi introduzida uma reforma que permite que estruturas locais possam adquirir cuidados de saúde a qualquer provedor qualificado, abrindo-se assim a possibilidade de os cuidados de saúde do NHS serem prestados por outros prestadores que não públicos. Em 2018, cerca de 2,5% de todas as admissões para internamento hospitalar já eram feitas em operadores privados, ainda que financiadas pelo NHS. Também o nosso SNS permite, numa base casuística, negociada caso-a-caso, a subcontratação de camas e de meios complementares de diagnóstico e terapêutica ao sector privado.

epa08347281 Police stand guard outside St.Thomas's Hospital in London, Britain, 07 April, 2020. British Prime Minister Boris Johnson is being treated for Coronavirus at St. Thomas' Hospital, and was moved to the Intensive Care Unit after his condition worsened. Countries around the world are taking increased measures to stem the widespread of the SARS-CoV-2 coronavirus which causes the Covid-19 disease.  EPA/ANDY RAIN

O hospital St. Thomas, onde Boris Johnson esteve internado: o NHS britânico depende, aos dias de hoje, de um envolvimento considerável do sector privado e social

ANDY RAIN/EPA

Da mesma forma, actividades não-clínicas, como, por exemplo, o circuito do medicamento, que vai desde a aquisição às farmacêuticas até à sua entrega nos serviços do hospital, estão também a cargo de operadores logísticos especializados no NHS. Esta externalização da logística hospitalar começou com a DHL num âmbito limitado, mas, dado o sucesso e as poupanças geradas para o Estado britânico, foi expandida a todo o NHS. Hoje, é a Unipart Group que, tendo ganhado o novo contrato de concessão, gere toda a cadeia de distribuição farmacêutica do NHS, desde a sua aquisição até ao armazenamento e, finalmente, a distribuição capilar, hospital a hospital, serviço a serviço. Houve, portanto, uma especialização nas actividades nucleares (as clínicas), relegando as outras actividades de suporte para operadores privados especializados.

As bases dos sistemas de saúde modernos

Com mais ou menos diferenças, maior ou menor grau de participação do Estado ou do sector privado, os sistemas de saúde modernos estão assentes em três eixos fundamentais: prestação, financiamento e regulação. Estes eixos são operados por actores, que tipicamente são o Estado, a sociedade (através de mutualistas e outros fundos) ou o sector privado.

O eixo da prestação tem que ver com a entrega efectiva dos cuidados de saúde, que inclui os cuidados de saúde primários (prestados em clínicas, centros de saúde, etc.), secundários (de âmbito hospitalar), cuidados continuados, paliativos, assim como todas as actividades coadjuvantes, como os meios complementares de diagnóstico e terapêutica. As entidades que prestam estes cuidados são geralmente de natureza jurídica pública, social (i.e., privada sem fins lucrativos) ou privada (i.e., com fins lucrativos), sendo que, em Portugal, a prestação de cuidados de saúde no SNS é quase toda ela assegurada por entidades públicas. Exceptuam-se os hospitais convencionados ao sector social, em particular às misericórdias (cerca de 27), as Parcerias Público-Privadas e os meios complementares de diagnóstico e terapêutica, a que os hospitais públicos recorrem com frequência no âmbito da subcontratação permanente ou esporádica, por falta de capacidade momentânea.

Os protestos por melhores condições nos centros de saúde em Portugal têm-se repetido

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O financiamento diz respeito a quem paga por estes cuidados de saúde. Num regime como o português ou o britânico, o financiamento dos cuidados de saúde é feito, maioritariamente, através de impostos arrecadados pelo Estado, que depois aloca às diferentes unidades do SNS. De forma supletiva, pois nenhum cidadão pode perder o acesso ao SNS, os cidadãos podem contratualizar ainda um seguro de saúde privado ou financiar directamente os cuidados de saúde (out-of-pocket). Com efeito, em Portugal, cerca de 30% da despesa total em saúde corresponde a gastos out-of-pocket, ou seja, financiada directamente pelos cidadãos, uma das mais elevadas da Europa e dos países que compõem a OCDE (ver Figura 3). Uma parte substancial desta despesa out-of-pocket é devida à comparticipação dos medicamentos, sendo que uma outra parte, menos significativa, deve-se a instrumentos de co-pagamento que visam moderar o acesso aos cuidados de saúde, como é o caso das taxas moderadoras. Adicionalmente, cada vez mais residentes em Portugal têm um seguro de saúde complementar: em Março de 2020, eram já mais de 3 milhões com cobertura.

Finalmente, a regulação refere-se a aspectos que afectam a governança e a organização do sistema de saúde, e a forma como interage com os seus actores, especialmente os beneficiários, isto é, os pacientes. Em particular, define questões de autonomia profissional, remuneração e contratação dos profissionais de saúde, categorias profissionais, elegibilidade, cobertura, acesso, administração, financiamento, condições de acesso ao mercado, gestão partilhada, procedimentos de compra e contratação, entre outros. A regulação define também protocolos de introdução de medicamentos inovadores ou despesa de capital (i.e., investimento) em novas infra-estruturas ou a manter/ substituir estruturas e equipamentos actuais.

Os sistemas de saúde europeus modernos à luz dos três eixos

O Estado pode estar mais ou menos presente em cada um dos eixos acima referidos. Em países como Portugal, todos estes eixos são fundamentalmente controlados pelo Estado. É o Estado que detém e gere as instituições prestadoras, como centros de saúde e hospitais; é o Estado que financia, através de impostos, essas mesmas instituições; e é o Estado que baliza e define os termos em que estas instituições prestam os seus serviços aos pacientes e a forma como se organizam.

Já noutros países, como é o caso dos países com modelos bismarckianos, o papel do Estado é muito mais reduzido. A regulação, por exemplo, é efectuada pelas seguradoras, que são geralmente mutualistas detidas e geridas pelos seus beneficiários. São as seguradoras que definem cobertura e condições de acesso dos seus beneficiários. Por exemplo, a maior parte dos residentes na Alemanha são segurados pela GKV, a seguradora pública do Estado, sendo a adesão à GKV compulsória para desempregados ou trabalhadores que aufiram menos do que 5213 euros brutos por mês. Existe também uma superestrutura federal, o Gemeinsamer Bundesausschuss, que produz normas e regras aplicáveis a todos os agentes do sistema de saúde alemão. Esta entidade é gerida pelos diversos actores do sistema, incluindo profissionais de saúde, seguradoras, gestores e pacientes, tendo independência estatutária do Estado alemão.

O financiamento dos modelos bismarckianos, por sua vez, também não envolve a colecta directa do Estado, mas sim descontos realizados pelos beneficiários. Tanto a entidade empregadora como os empregados estão obrigados a descontar para um fundo que financiará, sempre que necessário, a prestação de cuidados de saúde. Caso a pessoa esteja desempregada, o Estado assumirá os descontos para o respectivo fundo. Este modelo é em tudo análogo aos descontos que são efectuados para a Segurança Social em Portugal.

Na Suécia, por exemplo, um hospital não precisa de autorização do Ministério da Saúde e do Ministério das Finanças para poder contratar um profissional de saúde, ao contrário do que acontece em Portugal. Esta pequena, mas importante, diferença é fundamental para assegurar um elevado grau de autonomia das instituições de saúde, que não existe em Portugal.

Por fim, também a prestação difere consoante o modelo do sistema de saúde. Nos modelos bismarckianos, os pacientes podem escolher que entidades visitar, sejam elas públicas, privadas ou sem fins lucrativos (cf. Figura 1 acima). Na Bélgica, por exemplo, a vasta maioria dos hospitais são sem fins lucrativos, com excepção dos hospitais-universitários (públicos). Situação similar à da Holanda, em que mais de 90% são sem fins lucrativos ou privados. Na Alemanha, cerca de 40% dos hospitais são sem fins lucrativos, 23% são privados e apenas 37% são públicos.

O modelo de prestação de cuidados de saúde português é comparável sobretudo ao da Dinamarca, Noruega, Espanha ou Suécia, em que a maioria dos hospitais são públicos, mas com uma importante diferença: ao contrário de Portugal, a maior parte dos hospitais nestes países são governados e geridos por órgãos municipais/regionais, que não carecem de autorização de uma estrutura central, e o financiamento é feito com recurso a impostos locais. Na Suécia, por exemplo, um hospital não precisa de autorização do Ministério da Saúde e do Ministério das Finanças para poder contratar um profissional de saúde, ao contrário do que acontece em Portugal. Esta pequena, mas importante, diferença é fundamental para assegurar um elevado grau de autonomia das instituições de saúde, que não existe em Portugal.

No extremo oposto estão os Estados Unidos (EUA), em que a regulação do acesso aos cuidados de saúde é fundamentalmente privada (através de seguradoras privadas, e não mutualistas); o financiamento é também privado, feito directamente pelas empresas, no caso de oferecerem planos de saúde, ou pelas próprias pessoas; e a prestação de cuidados é também fundamentalmente privado, com uma participação forte de hospitais sem fins lucrativos, geralmente detidos por ordens religiosas. Não obstante o modelo americano ser de base eminentemente privada, metade de toda a despesa em saúde é despesa pública, fundamentalmente devido à Medicare e à Medicaid, que oferecem planos de saúde para reformados e para pessoas com baixos rendimentos, respectivamente. Ou seja, ao contrário do que é uma ideia generalizada, mesmo nos EUA existe uma forte componente pública no financiamento indirecto do sistema.

Conclusão

Posto isto, podemos concluir que um país com um sistema bismarckiano está melhor preparado para lidar com uma pandemia como a de Covid-19? É uma hipótese, mas não temos qualquer evidência que aponte nesse sentido ou em sentido contrário. Países como Espanha ou Reino Unido, muito afectados pela pandemia, têm sistemas de saúde beveredgianos. Mas a Bélgica, que também tem sido fustigada, tem um sistema de saúde do tipo bismarckiano.

Marta Temido e Graça Freitas têm liderado o planeamento contra a pandemia em Portugal... com muitas críticas

JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Numa análise apriorística, não parece haver uma característica de qualquer um dos sistemas de saúde que o torne mais ou menos resiliente a pandemias. Aliás, havendo, até poderia ser dos sistemas beveredgianos, pois poderiam facilitar as decisões centralizadas, do tipo “command and conquer”. Contudo, o que a nossa experiência nos diz é que esse planeamento integrado não ocorreu: à data de hoje, ainda não existe uma visão e gestão integrada do sistema, sendo a referenciação dos pacientes feita por cada hospital, geralmente com recurso ao telefone.

Não obstante, há um ponto em que os países com sistemas bismarckianos parecem estar melhor posicionados: todos os prestadores de saúde, sejam eles públicos, privados ou sem fins lucrativos, fazem parte da resposta à pandemia, pois é essa a sua função. A capacidade instalada que existe no sector privado e social não resolverá certamente o problema, mas atenuá-lo-á. E cada esforço neste sentido pode significar menos uma vida perdida. Assim, resta juntarmo-nos ao apelo generalizado para que a resposta à pandemia seja feita com todos os recursos ao nosso dispor, de uma forma concertada, integrada e coordenada. As discussões sobre os méritos do público vs privado podem ficar para outros — melhores — dias. Até lá, há doentes para tratar e vidas para salvar.

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