Depois das perdas consecutivas, a recuperação (ainda que muito parcial). As estimativas do INE sobre salários divulgadas esta quinta-feira revelam, pela primeira vez em meses, desde o final de 2021, que se está a iniciar uma trajetória de compensação das perdas de poder de compra acumuladas ao longo dos últimos meses. No segundo trimestre do ano, o salário médio já subiu mais do que a inflação, poupando muitos trabalhadores a novas quebras no rendimento. E se essa evolução não é ainda suficiente para uma recuperação total, também é certo que há setores que não estão, pelo menos para já, a sentir tal subida.

É preciso recuar a novembro de 2021, um período ainda sem guerra na Ucrânia mas já com uma tendência de subida da inflação, para encontrar um trimestre sem perda de poder de compra. Desde então e até ao trimestre móvel terminado em abril, o salário médio foi acumulando perdas, que só foram interrompidas no trimestre acabado em maio: uma subida real de 1%.

Essa tendência manteve-se no segundo trimestre do ano (abril, maio e junho), altura em que, segundo o INE, a remuneração brutal total subiu 6,7%, em termos nominais. Como o INE estima que a inflação tenha abrandado fortemente face ao trimestre anterior, de 8% para 4,4%, mais do que abrandou a subida das remunerações, de 7,8% para 6,7%. Os salários médios brutos terão avançado 2,4% em termos reais, nas estimativas do instituto.

Para João Cerejeira, economista e professor na Universidade do Minho, especialista em mercado de trabalho, esta evolução positiva era expectável, ainda que tenha sido maior do que previa. Mas é já um sinal de como empresas e trabalhadores estão a encontrar, na negociação coletiva, caminhos de recuperação do poder de compra perdido no final de 2021 e em 2022. “Havia sinais nesse sentido [de recuperação] e também disponibilidade das entidades patronais para fazerem aumentos mais significativos este ano”, afirma, ao Observador.

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Além disso, há “fatores de mercado”, também evidenciados pelas estatísticas do INE, como uma taxa de desemprego que se mantém em “níveis baixos” — em 6,1% no segundo trimestre, mais de um ponto percentual abaixo do trimestre anterior mas superior em 0,4 p.p. face aos mesmos três meses de 2022 — e um emprego que continua a crescer, que obrigam as empresas a oferecer salários mais elevados.

Energia e atividades financeiras não escapam às perdas

A generalidade dos setores conseguiu interromper, no segundo trimestre do ano, o ciclo de perda de poder de compra, mas há três setores que não puderam gabar-se do mesmo. No trimestre, as maiores perdas reais deram-se no setor da “eletricidade, gás, vapor, água quente e fria e ar frio”, que viu a remuneração bruta total cair 4,3% face ao mesmo trimestre do ano anterior, depois de ter avançado quase 4% nos primeiros três meses do ano.

Este setor é caracterizado pelo reduzido número de trabalhadores — não chegam a 11 mil — e de empresas, que sendo poucas, são de grande dimensão. É por isso que João Cerejeira acredita que o valor da perda possa justificar-se com um possível “desfasamento” no acerto das tabelas remuneratórias. É que os processos negociais “levam tempo” e há “sempre um desfasamento temporal significativo” entre as perdas de poder de compra, a negociação salarial que as compensem e a efetivação do aumento salarial. “Como é um grupo pequeno e as empresas são grandes, os salários são muito determinados pela negociação coletiva a nível da empresa. Isto pode significar que a tabela salarial ainda não foi ajustada em 2023“, indica o economista.

O mesmo pode estar a acontecer com o setor das “atividades financeiras e de seguros”, que inclui a banca e viu o salário médio recuar, em termos reais, 0,7% no trimestre. Por exemplo, só em julho é que os sindicatos do setor bancário — o Mais (Sindicato do Setor Financeiro), o SBC (Sindicato dos Bancários do Centro) e o SBN (Sindicato dos Trabalhadores do Setor Financeiro de Portugal) —, acordaram um aumento salarial de 4,5% para 2023, que apenas será pago em julho e agosto, acima dos 2,5% inicialmente propostos pelas entidades patronais.

Aumentos e retroativos para trabalhadores da banca serão pagos em julho e agosto, disseram os sindicatos

“É um setor onde há uma grande taxa de sindicalização e grandes empresas. Muitas vezes, são processos de negociação que demoram mais tempo”, admite João Cerejeira. Ou seja, as negociações que decorreram ainda não estão refletidas nas estatísticas do INE — que tem por base as remunerações declaradas à Segurança Social e na Caixa Geral de Aposentações (para alguma função pública) —, mas os seus resultados já poderão aparecer no próximo trimestre.

Há, no entanto, outro fator que, acredita, pode estar a contribuir para os números: uma “tendência” nos últimos anos, desde a crise financeira, de perda de poder de compra no setor, devido a um “ajustamento, com corte de custos”. “Os bancos estiveram muitos anos com taxas de juro de crédito muito baixas, o produto bancário reduziu-se e as instituições acabaram por tentar conter os custos ao máximo”, lembra. Este setor já tinha registado perdas de 3,6% no primeiro trimestre do ano, face a período homólogo.

“Às vezes saem tabelas salariais em maio, que pagam retroativos desde janeiro. A negociação nunca ocorre em janeiro, regra geral. Vai começando no início do ano, muitas vezes até tendo por referência os valores do Orçamento do Estado para a função pública. Depois até haver um acordo e a publicação das tabelas no boletim do trabalho e emprego… E até pode haver uma portaria de extensão mais tarde ainda. Este processo pode demorar algum tempo”, sintetiza.

Seca prejudicou contratações (e salários)

O setor da “agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca” também viu o salário médio recuar, em termos reais — neste caso, uma quebra 1,2%, após uma perda de 3% já no primeiro trimestre. Ao Observador, Luís Mira, secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), justifica esta quebra recente com a seca grave que se vive no país e que, por ter impacto na produtividade agrícola, também leva a menor necessidade de mão-de-obra. Logo, a salários mais baixos.

“O setor agrícola tem sido, desde o início do ano, fortemente afetado pelos efeitos da seca grave e persistente que assola praticamente todo o território nacional, o que naturalmente tem grande impacto ao nível da produtividade agrícola. No período analisado, tendo-se observado quebras na produção e a perda de colheitas de Primavera, houve menor necessidade de recorrer a mão-de-obra“, o que explicará a redução no salário real, observa. A confederação acredita que se essas condições se mantiverem, “agravadas pelas sucessivas ondas de calor”, esta tendência de perda salarial média se manterá nos próximos trimestres.

Já o INE não adiantou nenhuma explicação de natureza metodológica ou outra para a evolução das remunerações nominais médias por trabalhador nas três atividades que viram o salário real cair.

Em sentido contrário, com os maiores ganhos, estão as “atividades dos organismos internacionais e outras instituições extra-territoriais”, que viu a remuneração bruta total subir 4,7%, mesmo com a inflação, a mesma evolução a que assistiu o setor das “atividades administrativas e dos serviços de apoio”, que inclui, por exemplo, agências de viagens ou segurança privada. Também com ganhos estiveram as “atividades de consultoria, científica, técnicas e similares” (mais 4,2%), onde as empresas têm procurado subir salários para competir com o exterior e atrair talento qualificado, que escasseia; e o “alojamento, restauração e similares” (também 4,2%). Questionada, a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) não respondeu em tempo útil às questões do Observador. O setor tem garantido estar a oferecer salários mais altos para atrair mais trabalhadores.

De facto, o setor do alojamento e da restauração é, a par com o da agricultura, o que tem o salário bruto médio mais baixo (827 euros e 766 euros, respetivamente) e é caracterizado por um forte peso do salário mínimo. Um aumento de 4,2% no salário real médio pode, em parte, ser explicado pela subida desta rubrica, que avançou quase 8% no início do ano. Por isso, Cerejeira atribui, em parte, este ganho real também ao “papel do Estado”. Porém, enquanto que no setor do turismo tal aumento se refletiu numa subida da remuneração real média, o mesmo não aconteceu na agricultura.

Setor público cresce menos do que o privado

Os dados recentes do INE também permitem concluir sobre a evolução dos salários por profissão — e é entre os menos qualificados que os aumentos homólogos, em termos nominais (para estes casos, o instituto não fez cálculos com o impacto da inflação), são mais significativos, o que também pode ser explicado pelo aumento do salário mínimo no início do ano. Mas há também uma subida expressiva, superior a 5%, nos “especialistas das atividades intelectuais e científicas”, assim como no “pessoal administrativo”.

Por outro lado, o grupo dos “representantes do poder legislativo e de órgãos executivos, dirigentes, directores e gestores executivos” viram o salário nominal cair (cerca de 1%), abaixo dos mais de 2% de quebra nos “técnicos e profissões de nível intermédio”. Estes dois grupos tinham tido aumentos em 2022.

No setor privado, “as remunerações aumentaram de forma mais expressiva” do que no público, indica o INE. Aí, a remuneração total registou um aumento homólogo real de 3,1%, acima dos 2,2% que se verificaram no setor das administrações públicas. De facto, mesmo apesar do aumento intercalar de 1% que começou a ser pago em maio, o salário médio no Estado não conseguiu crescer a um ritmo superior ao privado. A tendência já vinha de trás: nos primeiros três meses do ano, a inflação ditou mesmo um corte de 2,5% nos salários do setor público, enquanto o privado conseguiu um aumento médio de 0,3%.

Inflação dita corte de 2,5% nos salários no setor público. Já privado teve aumento médio de 0,3% no primeiro trimestre

O INE explica esta diferença com as discrepâncias na escolaridade entre os dois setores, o tipo de trabalho realizado e a idade dos trabalhadores. “As diferenças nos níveis remuneratórios médios entre o sector das AP e o sector privado refletem, entre outras, diferenças no tipo de trabalho realizado, na composição etária (com impacto na acumulação de capital humano e de experiência profissional) e nas qualificações dos trabalhadores que os integram”, refere o instituto.

É que, diz o INE, os trabalhadores do Estado têm, em média, níveis de escolaridade mais elevados: 55,3% dos trabalhadores tinham ensino superior (contra 22,7% no sector privado), 26,7% tinham completado o ensino secundário ou pós-secundário (32,4% no sector privado) e 18% tinham um nível de escolaridade correspondente, no máximo, ao 3.º ciclo do ensino básico (44,9% no sector privado). Estes dados que parecem mostrar, mais uma vez, que a recuperação da perda de poder de compra está a fazer-se mais pelos trabalhadores menos qualificados, com salários mais baixos, por via, por exemplo, da subida do salário mínimo.

Para João Cerejeira, o próximo trimestre deverá refletir, de forma mais nítida do que aconteceu entre abril e junho, a recuperação parcial das perdas registadas em 2022. “É uma tendência que se vai manter.”