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Sem público, promotora com prejuízo de 2,5 milhões e clientes sem reembolso. O que falhou na Semana Académica de Lisboa?

Os compradores de bilhetes não foram reembolsados após o adiamento de parte do evento. Promotora tem "prejuízo de dois milhões e meio de euros" e quer avançar com Processo Especial de Revitalização.

Era o primeiro dia da Semana Académica de Lisboa de 2023 (SAL 2023) e o público ainda tinha de esperar pelas 17h para a abertura de portas no Parque Tejo-Trancão. Como já é habitual neste tipo de eventos, Melissa Vieira, contratada para criar e liderar uma equipa de vídeo e fotografia, chegou com os restantes membros várias horas mais cedo para se familiarizarem com o espaço. O cenário com que se depararam naquele dia 22 de setembro foi de total desorganização.

À entrada, quando se preparavam para levantar as credenciais de acesso, foram informados de que os nomes dos seis membros da equipa não constavam na lista de autorizações. Apanhados desprevenidos, ainda se dirigiram a uma das tendas da organização, apenas para descobrir que a empresa promotora do evento não tinha dinheiro para pagar a percentagem inicial acordada pelos seus serviços. “Disseram-nos que não tinham dinheiro para nos pagar e que era nossa a decisão de fazer a cobertura ou não. Na hora, a minha equipa decidiu logo que não continuava“, recorda quatro meses depois ao Observador.

O caso não parecia ser único. O grupo viu, por essa altura, que a equipa dos bombeiros destacada para acompanhar o evento parecia estar a preparar-se para sair — ainda que a organização do evento garanta que existiu um dispositivo composto por duas corporações de bombeiros no decorrer do evento. Da equipa médica, não havia sequer sinal. Também as carrinhas de entregas de cerveja da Super Bock estavam de partida, aparentemente por falta de pagamento. “Quando chegámos, foi o momento em que imensos fornecedores como nós perceberam que não iam receber nada”, explica.

Foi com surpresa que, horas depois de já ter abandonado o recinto, a fotógrafa percebeu que o evento ia, ainda assim, realizar-se, com a subida ao palco dos quatro artistas previstos para aquela noite — Kamala, MC Kekel, MC Kevinho e Profjam. O mesmo não aconteceu no dia seguinte, que ficaria marcado pelo cancelamento de última hora das atuações de Bispo e Papillon. O aviso era publicado nas redes sociais da página Semana Académica de Lisboa sem que fosse avançada qualquer justificação, sendo inclusivamente desativados os comentários de resposta à publicação. Já os dois artistas anunciavam em stories semelhantes, publicados nas respetivas contas de Instagram, que cancelavam o espetáculo, alegando “incumprimento contratual”.

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"Ficámos bastante surpreendidos por chegaram a abrir. Quando fomos embora, estava a equipa de bombeiros também a ir embora, as pessoas estavam a conversar que não havia equipa médica, que não havia as autorizações sonoras necessárias para qualquer festival."

Apesar dos percalços, o segundo dia de concertos do SAL ainda seria resgatado pelas atuações de Giulia Be, Yasmine e DJs Rich & Mendes. Só que, apenas 24 horas depois, era anunciado que a segunda parte do evento, que devia realizar-se a 28, 29 e 30 de setembro, seria adiada para maio de 2024. Em comunicado, a Semana Académica de Lisboa referia que a decisão tinha por base a (falta de) “adesão do público” no primeiro fim de semana do evento. Para os que já tinham adquirido bilhetes para o fim de semana seguinte, havia duas hipóteses: esperar pela eventual data de maio ou pedir um reembolso.

Muitos optaram pela segunda via. Na verdade, e tendo em conta os dados divulgados sobre a afluência registada nos primeiros dias de festival, a esmagadora maioria dos que tinham comprado bilhete para os concertos do segundo fim de semana tentaram obter a devolução do valor pago.

Numa resposta por escrito ao Observador, a BOL — uma das plataformas online que vendeu bilhetes para o evento — disse que não podia divulgar o número de pessoas que tinham adquirido bilhete através do seus serviços, nem quantas poderiam ter sido lesadas pelo cancelamento das datas, indicando que essa informação teria de ser solicitada ao promotor. Mas reconheceu que recebeu “mais de um milhar” de pedidos de reembolso, passando aos queixosos a informação de que deveriam requerer o reembolso dos bilhetes junto do promotor.

Quatro meses depois, quem comprou bilhete para a Semana Académica de Lisboa não conseguiu reaver o dinheiro que pagou para assistir aos concertos do segundo fim de semana do evento. E a promotora, assume também agora ao Observador um responsável da empresa, registou “um prejuízo de dois milhões e meio de euros”. Nafize Madatali, gestor da Comitiva de Mordomias, refere ainda que a empresa apresentou na Segurança Social um “Requerimento de Proteção Jurídica para pessoa coletiva ou equiparada”, um procedimento que, espera, dê lugar a um Processo Especial de Revitalização (PER) que permita regularizar o valor em dívida que a sua empresa tem neste momento, não apenas com quem comprou bilhete, mas também com artistas convidados e fornecedores dos mais diversos serviços de apoio ao evento.

Eram esperados 20 mil participantes. Só apareceram “1.500 por dia”

A fasquia era elevada quando foram anunciados os preparativos para a edição de 2023 da SAL, num ano em que a organizadora do evento, a Associação Académica de Lisboa (AAL), assinalava 38 anos de existência. O evento exibia um cartaz de cinco dias dividido em dois fins de semana com uma longa lista de artistas: desde MC Kevinho, a MC Kekel, Kamala, Bispo, Quim Barreiros, Toy, Calema, D.A.M.A., aos quais ainda se viria a juntar o anúncio de um concerto de uma das bandas sensação da primeira década deste milénio, os D’ZRT. Além disso, a Semana Académica seria realizada num espaço que, um mês antes, tinha recebido um dos maiores eventos de sempre em Portugal: a Jornada Mundial da Juventude (JMJ). O plano era que este se tornasse “num dos melhores festivais de verão” do país, como afiançou Diogo Henriques, presidente da associação, numa conferência de imprensa em agosto do ano passado.

Os primeiros dias da Semana Académica de Lisboa aconteceram na zona do Parque Tejo pertencente a Loures e que um mês antes recebeu a JMJ

JOÃO PORFIRIO/OBSERVADOR

Inicialmente, estava previsto, como foi anunciado na mesma conferência, que fosse ocupado um espaço de cerca de 20 hectares junto ao rio Trancão, na parte do terreno pertencente a Loures. A opção final acabaria por resumir-se à parcela utilizada antes da JMJ como parque de contentores da Infraestruturas de Portugal, com um piso de asfalto. Espaço que, esclareceu a Câmara Municipal de Loures, foi cedido a título gratuito.

Os promotores não pouparam nos meios para fazer deste um mega evento, desde logo com a decisão de fazer um investimento considerável em publicidade. “Investimos muito na campanha em termos de comunicação. Fizemos comunicação através da TVI, através da Rádio Renascença, da Mega FM. Na TVI, utilizámos prime time, com anúncios de 30 segundos que depois aumentaram para um minuto de anúncio. Todos os dias em prime time. Tivemos as redes sociais, tivemos uma empresa de comunicação a trabalhar connosco, em que se gastou também muito, muito dinheiro. Foi um investimento de cerca de 70, 80 mil euros”, revela ao Observador Nafize Madatali, gestor da empresa Comitiva de Mordomias Lda., a promotora da SAL 2023.

Na primeira declaração à imprensa desde que o evento foi adiado, o gestor explica que a preparação foi avançando na expectativa de que iria atrair um número de participantes bastante elevado. Segundo o gestor, essa ideia surgiu do facto de terem sido apresentados à promotora documentos de eventos anteriores da AAL que referiam uma afluência na ordem das 15 a 20 mil pessoas por dia. A realidade de 2023 ficou muito aquém disso: “Não chegaram a 1.500 por dia.”

Também aos prestadores de serviços da SAL terá sido transmitida a ideia de que o evento teria grandes proporções. A fotógrafa Melissa Vieira refere que a equipa de multimédia não chegou a receber uma estimativa concreta do número de participantes previstos, mas terá havido referências à expectativa de que o evento teria uma “dimensão grande”. “Daí que ainda fossemos bastantes para fazer a cobertura, uma equipa que seria mais ou menos para fazer a cobertura de um Super Bock e de um Alive e que não tem qualquer comparação com uma semana académica”, aponta.

A fotógrafa refere que ainda antes do início do evento se registaram alguns percalços, nomeadamente com a aprovação do orçamento que lhe foi solicitado. Segundo Melissa Vieira, a luz verde já só dada em cima da data de arranque da SAL, quase a “despachar”. No entanto, só quando se dirigiram ao Parque Tejo-Trancão para se apresentarem ao serviço, no primeiro dia do evento, perceberam que a dimensão do problema era maior do que esse atraso na validação do orçamento. “Depois, até ficámos todos bastante surpreendidos quando eles chegaram a abrir. Quando fomos embora, estava a equipa de bombeiros também a ir embora, as pessoas diziam que não havia equipa médica, que não havia as autorizações sonoras que seriam necessárias para qualquer festival (…) Para nós foi: ‘Como é que conseguiram abrir quando há quatro horas não tinham nada do que legalmente era necessário para abrir um festival?'”

Nafize Madatali, por seu lado, admite que antes do evento foram surgindo algumas dúvidas, que diz terem sigo apaziguadas no contacto com as outras entidades envolvidas na preparação. “Podíamos ter cancelado a dez dias do evento. Mas, no contacto com a instituição de dirigentes [da AAL] e com a BOL, com a experiência toda que eles têm no mercado, (…) e apesar de não haver uma venda significativa de ingressos, a mensagem que nos transmitiam — quando estávamos totalmente empenhados, a 1000% — foi sempre: ‘Continuem com força, porque isto é geralmente nos dois últimos dias antes do evento que se vendem os bilhetes todos e no próprio dia também se vende praticamente 70% dos bilhetes e vão em frente e andem, andem em frente’. E nós, embalados por esta situação toda, fomos em frente”, relata. Madatali nota ainda que a preparação da SAL fazia parte de um projeto maior, que passava por organizar também a queima das fitas, em maio deste ano, e um “grande evento” internacional em setembro.

O gestor diz que foi com esta ideia em mente que investiram nos artistas — nacionais e internacionais — e na infraestrutura e que assumiram responsabilidades para com vários fornecedores. Passados os dois dias de evento — que, como foi noticiado na altura, foram marcados por atrasos na abertura das portas e pelo cancelamento de alguns artistas —, tomou-se a decisão de adiar a segunda parte. “Não havendo a expectativa de melhorias na tendência da presença de público nos outros dias do evento, nós decidimos: ‘Vamos adiar isto e vamos repensar todo o conceito'”, refere, acrescentando que esta foi uma decisão tomada em conjunto com a Associação Académica de Lisboa.

“Há um forte movimento associativo no Porto, há um forte movimento associativo em Coimbra e até no Algarve. Em Lisboa, apesar de ter o maior número de estudantes, não sei se devido à pandemia ou se devido a outra situação que nos escapa completamente e que não controlamos, deixou de haver este impulso, o impulso do associativismo, isto é, esta força do associativismo. E, então, não se conseguiu captar com força estas festas”, justifica.

O reembolso que nunca chegou

Rita Santiago e o filho, um estudante universitário que comprou um bilhete diário de 25 euros para assistir à atuação dos Hybrid Theory no último dia do SAL, acompanharam com apreensão as notícias sobre o arranque do evento no Parque Tejo-Trancão. “Começámos a ver artistas a cancelar, Papillon e Bispo. Foi estranho dizerem que cancelaram por incumprimento do contrato. Puseram os stories a dizer que cancelavam e, a partir desse momento, ficámos alerta”, explicou a mãe do jovem num primeiro contacto com o Observador, ainda em outubro do ano passado.

Oficializado o adiamento do evento, Rita e o filho decidiram avançar de imediato com o pedido de reembolso. O primeiro passo foi entrar em contacto com a BOL, entidade através do qual o bilhete foi adquirido e de quem estudante recebeu a indicação que o contacto deveria ser feito diretamente com a empresa promotora. Para isso, eram facultados dois endereços de email — um deles em nome de Nafize Madatali e outro do irmão — com a nota de que o pedido só seria aceite até dia 30 de outubro. Assim fizeram. Dias depois, quando num novo comunicado a Semana Académica de Lisboa transmitia os meios oficiais para requisitar o reembolso — sal2023info@gmail.com; mensagem para o Whatsapp 926878247 –, insistiram. “Não houve respostas de lado nenhum”, denunciou Rita Santiago, que foi estando atenta às queixas semelhantes que se iam multiplicando nas redes sociais. “Eu não quero [um bilhete] em maio ou outra data. Quero o dinheiro agora. Não quero correr o risco de dizerem que não fui a tempo (…). O silêncio é estranho“, afirmou.

Kamala, Yasmine, MC Kekel e Giulia Be ainda subiram ao palco Semana Académica de Lisboa 2023

Kamala, Yasmine, Giulia Be e MC Kekel ainda subiram ao palco durante o evento (Créditos: Semana Académica de Lisboa 2023/Instagram)

Ivan Matias, administrativo de 34 anos que também comprou bilhete através da BOL para o último dia espetáculos, garante ter tomado medidas semelhantes: ligou para a plataforma, de forma repetida, enviou email para os endereços fornecidos antes do dia 30, ligou para o contacto da Comitiva de Mordomias Lda. disponível no Portal da Queixa. “Tenho três contactos e nenhum deles funciona. É a primeira vez que passo por isto e não sei como fazer”, lamentou, acrescentando que durante duas semanas não recebeu informações concretas sobre o reembolso. Chegou mesmo a ponderar apresentar uma reclamação através da Deco Proteste, como algumas pessoas chegaram a fazer, mas acabou por desistir da ideia. A certo ponto, ainda falou diretamente com os responsáveis da BOL e da Comitiva de Mordomias, no que descreveu como um vai e vem de explicações confusas, em que uma entidade remetia para a outra.

Nessas semanas, os pedidos de reembolso iam chegando em vagas ao gestor da Comitiva de Mordomias. A promotora, assegura Nafize Madatali, tentou responder ao máximo de solicitações. “Respondi sempre com mensagens que foram preparadas pela equipa legal, a explicar exatamente o que se estava a passar. Infelizmente, não consegui chegar a todos. Não conseguimos chegar a todos porque não temos uma equipa assim tão grande”, refere, adiantando também que, por questões de saúde, foi incapaz de dar resposta imediata às reclamações que foi recebendo nas primeiras semanas após o cancelamento. A BOL garante que não deixou clientes sem orientações e avança com um universo de interessados lesados: “Tivemos mais de um milhar de pedidos. Da parte da BOL, todos obtiveram uma rápida resposta com esclarecimentos e a informação de como proceder junto do produtor ao reembolso dos bilhetes.”

Tanto Rita como Ivan acabaram por receber, já perto do final de outubro, um email que a promotora diz ter dirigido a todos os queixosos e em que anunciava que se iria apresentar a Processo Especial de Revitalização (PER). Num email posterior — o mais atualizado e que a empresa disponibilizou ao Observador — já se anunciava que tinha avançado primeiro nesse intuito com a apresentação de um pedido de proteção jurídica junto da Segurança Social. Pode aqui ser lido na íntegra:

“Por motivos alheios à sua vontade, a Comitiva de Mordomias, Lda. procedeu ao adiamento do Evento Semana Académica de Lisboa 2023 (adiante, SAL 2023). Fê-lo como forma de minimizar um prejuízo manifestamente superior, face a não aderência [sic] do público em geral. De forma séria e responsável, tem a Organização efetuado o apuramento dos encargos decorrentes desse cancelamento, pretendendo cumprir os compromissos assumidos junto dos seus fornecedores e prestadores de serviços, garantindo ainda a devolução do valor dos ingressos aos detentores de bilhetes e passes válidos. Tal intuito determina que apresentou no dia 30.11.2023 na Segurança Social o Requerimento de Proteção Jurídica para pessoa coletiva ou equiparada no âmbito do Processo Especial de Revitalização (doravante, PER). A Comitiva de Mordomias, Lda. lamenta o sucedido e tudo fará para imprimir celeridade ao processo, agradecendo a compreensão e colaboração de todos neste momento.”

A partir desse momento, Rita Santiago assume que ficou sem grande esperança de vir a reaver o dinheiro. “Desde que a promotora indicou que se tinha proposto a um PER, não houve mais desenvolvimentos. Fazer o quê mais, quando esses cenários são sempre tão complicados? Fiquei indignada, mas também não é um valor por aí além. Apesar de ser dinheiro, também não é um valor que justifique tomar umas medidas para lá daquilo”, diz agora ao Observador. Refere, no entanto, que o filho não pensa usar o bilhete caso a segunda parte do evento se realize em maio. “Ele comprou bilhete para aquele dia, para ver os Hybrid Theory, que foram os que desistiram mesmo, alegando infrações contratuais. Até conseguem fazer outra vez [em maio], mas essa banda até provavelmente não estará disposta” a atuar, antecipa.

"Tal intuito determina que apresentou no dia 30.11.2023 na Segurança Social o Requerimento de Proteção Jurídica para pessoa coletiva ou equiparada no âmbito do Processo Especial de Revitalização."
Comunicado enviado pela Comitiva de Mordomias aos requerentes de reembolso

O Observador tentou contactar vários dos artistas e bandas que estava previsto atuarem nos últimos três dias do evento. Quim Barreiros, cujo espetáculo estava marcado para o dia 28 de setembro, assumiu com naturalidade o cancelamento dessa atuação. “Já quase em cima da data telefonaram-me a dizer que a semana académica tinha sido adiada, porque previam uma coisa e afinal estava a ser outra. Da minha parte está tudo bem, porque a mim contratam e cancelam por telefone. Já não é a primeira vez nem a segunda, nem terceira vez”, refere, acrescentando que não voltou a ser contactado quanto à possibilidade de atuar numa nova data.

André Franco, produtor da tour dos D’ZRT, explica que, depois do anúncio, a banda tomou a decisão de não regressar. “Da nossa parte, automaticamente, fomos perentórios na comunicação que lançámos de que não iríamos participar nesta data que está agendada para maio. Tanto quanto tenho conhecimento, não houve nenhum contacto posterior para haver um retorno dos D’ZRT”, explica.

Se o evento vai mesmo avançar em maio, é uma incógnita. A Associação Académica de Lisboa não enviou até à data de publicação deste artigo uma resposta às perguntas sobre o assunto. A BOL assume a expectativa de que a Semana Académica se realize este ano: “Continuamos a ter o feedback positivo do produtor de que o evento irá ocorrer em Maio.”

Um Processo Especial de Revitalização para “dar o corpo às balas”

Tomada a decisão de adiar a segunda parte do evento, a Comitiva de Mordomias diz ter feito o apuramento das responsabilidades e verificado que tinha incorrido “num prejuízo de dois milhões e meio de euros”, como revela o gestor da empresa ao Observador. A BOL estima ser “o maior credor da Produtora”, como chegou a indicar num email enviado ainda em outubro. Não foi o único. Em termos de vendas, foram “dois dias catastróficos. Não aconteceu nada do que se esperava. Houve imenso desperdício e muito prejuízo”, disse ainda no ano passado à NIT uma das pessoas ligadas ao evento.

Segundo Nafize Madatali, depois de se apurar o prejuízo, a Comitiva de Mordomias, aconselhada por uma equipa legal, escolheu entre um de dois caminhos que via como possíveis: partir para uma insolvência fortuita ou avançar para um Processo Especial de Revitalização (PER). A escolha acabou por recair na segunda. “A equipa legal disse: ‘Se vocês acreditarem no projeto e acreditarem em vocês, se quiserem mesmo dar a volta às coisas e dar o corpo às balas, então vão para um Plano Especial de Revitalização e pedem ajuda à Segurança Social para suportar os custos do PER, pedem depois para entrar em tribunal, apresentar o vosso plano de recuperação, fazem tudo isso”, explica.

"Chegamos à conclusão que as coisas tinham corrido mal, tínhamos incorrido num prejuízo de 2 milhões e meio de euros. (...) A equipa legal disse: se vocês acreditarem no projeto e acreditarem em vocês, se quiserem mesmo dar a volta às coisas e dar o corpo às balas então vão para um Plano Especial de Revitalização"

Mas, afinal, o que é e como se põe em marcha um PER? Trata-se de um “processo judicial que se inicia pela manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos credores, por meio de declaração escrita e assinada, através do qual o devedor convida credores que não assinaram a declaração a participar no Processo Especial de Revitalização para regularização das respetivas dívidas”, como se pode ler na página da Segurança Social.

Contactado pelo Observador, o advogado João Carlos Teixeira, especialista em processos semelhantes e que representou um dos credores da Associação Académica de Lisboa (AAL), explica com maior pormenor o que está em causa e quais as entidades que o podem requerer. “De acordo com a lei, aplica-se a empresas que, de uma forma comprovada, se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas em que, apesar de tudo, seja suscetível a recuperação e que pretendem encetar negociações com os seus credores.”

Ao contrário de um processo de insolvência, que está sobretudo voltado para os credores, um PER tem em vista a revitalização da empresa. “O que se exige, e esse é o grande objetivo do PER, é que a maioria dos credores — portanto, pelo menos 50% mais 1% dos credores — possa aprovar um plano de recuperação da empresa que está a dar entrada desse PER”, indica João Carlos Teixeira. A aprovação desse plano fica sempre condicionada a uma homologação posterior por parte do tribunal. Se alguma dessas etapas falhar, isso impede que “a empresa entre em recuperação e, provavelmente, aquilo que se seguirá é entrar em insolvência”, admite.

Na experiência deste advogado, estes processos não são demorados e, sendo considerados pela lei como urgentes, a sua tramitação tem prioridade relativamente a outros. João Carlos Teixeira salienta que não é desejável que, desde que o processo entre no tribunal até que haja uma homologação por parte do tribunal, permitindo que o processo prossiga para execução, passem mais de seis ou sete meses. No entanto, isto “depende sempre da postura dos intervenientes processuais”. O que pode efetivamente ser mais demorado é a execução do PER. Essa, sim, pode “durar anos”.

Um PER implica necessariamente a nomeação de um administrador judicial provisório, que é a “é a figura central em termos do controlo” do processo e é, normalmente, nomeada dias depois de o pedido entrar em tribunal, caso estejam reunidas as condições necessárias para prosseguir. É este administrador que, em articulação com os credores, vai decidir sobre a forma como a empresa em PER utiliza as suas contas e fundos.

Ao Observador, o gestor da Comitiva de Mordomias alega que, dada a situação da empresa, está impedido de movimentar os fundos disponíveis — e, por isso, que não tem forma de devolver de imediato o valor aos clientes que manifestaram interesse em receber de volta o valor dos bilhetes. Da mesma forma, também estaria impedida de regularizar eventuais dívidas com os vários fornecedores e artistas. João Carlos Teixeira faz uma ressalva a esse respeito: “Nada impede que uma empresa, com controlo e com critério, continue a ter acesso às suas contas e aos seus dados financeiros. Antes pelo contrário, isso é desejável para que a empresa possa efetivamente recuperar. Mas sempre de forma supervisionada”, esclarece.

A questão é que essas limitações só se fazem sentir depois de uma empresa dar início, de facto, a um PER. O advogado refere ao Observador que o mesmo não se pode dizer quando ainda está na fase de um pedido de apoio jurídico junto da Segurança Social. “Não existindo ainda um PER, é-se total e absolutamente livre para fazer o que se quiser da empresa: mexer nos fundos, pagar, não pagar. A questão é se isto depois leva a algum tipo de responsabilidades futuras pelo tipo de movimentações e por isso a empresa escolhe não o fazer”, refere.

É nesta fase que se encontra ainda a Comitiva de Mordomias. Como o gestor da empresa indicou, e como já constava no email enviado aos requerentes de reembolso de bilhetes, a empresa “apresentou no dia 30.11.2023 na Segurança Social o Requerimento de Proteção Jurídica para pessoa coletiva ou equiparada”. No entanto, para já, ainda aguarda uma resposta, que espera vir a chegar muito em breve: “Devemos estar a receber a resposta a qualquer altura, a qualquer momento a confirmação de apoio jurídico. Não vejo razão para que não aconteça. E a partir daí vamos apresentar o pedido ao Tribunal”.

Por enquanto, e de acordo com o terá sido transmitido pela equipa legal ao gestor da Comitiva de Mordomias, a empresa está impedida de fazer qualquer tipo de pagamento. “Como gestor de empresa não posso decidir, por minha livre e espontânea vontade, pagar um valor dos bilhetes às pessoas. Poderia ter o suficiente para pagar a A, B e C, e depois não ter para pagar a D, E e F. Isso não pode ser”, acrescenta. O gestor garante que a empresa tem a listagem de todas as pessoas que compraram o bilhete, de todos os fornecedores de equipamento e prestadores de serviços e que a seu tempo todos serão chamados para apresentar a sua reclamação. Rita Santiago e Ivan Matias não pensam desistir. Mas nesta fase limitam-se a esperar pelos próximos episódios.

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