Minutos depois de o carro do Ministério da Administração Interna ter colhido um trabalhador em plena A6, Eduardo Cabrita foi afastado do local do acidente num carro de segurança da comitiva. Já o motorista que conduzia o BMW, e que agora é acusado de homicídio por negligência, ficou no local visivelmente transtornado. Marco Pontes ora se levantava ora se sentava na berma da estrada, tendo mesmo que pedir a outros ocupantes do carro que o ajudassem a mostrar a sua identificação, enquanto Nuno Santos esperava pelos primeiros socorros.
Esta é uma das informações que consta nos depoimentos prestados no inquérito, que correu no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Évora, e cuja acusação foi conhecida esta sexta-feira, culminando no pedido de demissão do próprio ministro. No despacho, de 25 páginas, o motorista — que seguia a 163km/h — acaba por ser acusado de não respeitar as regras de trânsito mas é ilibado do crime de “condução perigosa”. E um despacho em que ministro, assessor do ministro e segurança pessoal de Cabrita apresentam versões coincidentes na ideia de que não foi dada qualquer indicação a Marco Pontes sobre a velocidade a que devia seguir.
Eduardo Cabrita demite-se depois de acusação no caso de atropelamento mortal
Da comitiva de Eduardo Cabrita, naquele dia 18 de junho de 2021, faziam parte dez pessoas, divididas por três carros que circulavam praticamente juntos, numa viagem de regresso a Lisboa, depois da passagem pela Escola da GNR, em Portalegre. Eduardo Cabrita vinha num BMW, sentado a meio no banco de trás. Com Cabrita, seguiam um assessor, do seu lado esquerdo, e um segurança, à direita do ministro. Ao volante vinha Marco — que incorre agora numa pena de prisão de três anos —, acompanhado do oficial de ligação do MAI à GNR.
Os depoimentos de todos eles foram importantes para o Ministério Público (MP). Mas há outro dado comum a todos e que tem sido desde o início um argumento do próprio Governo: a falta de sinalização do local. Naquele quilómetro 77,6 da A6, no sentido Caia-Marateca, todos se queixaram da falta de “sinalização estática” do carro que naquele dia estava na berma da A6 com uma equipa de homens a aparar a vegetação. Uma informação desmistificada pela própria Brisa numa resposta que deu ao processo: quando há sinalização móvel, como foi o caso, não há sinalização atrás. Mas que mesmo assim não serviu a Cabrita quando, mal soube da acusação, falou sobre o caso: “As condições de um atravessamento de via não sinalizada têm de ser esclarecidas no quadro do acidente”, disse o ministro, depois de referir que era apenas “um passageiro” e horas antes de se demitir.
Chamado a depor no processo, o governante garantiu ao Ministério Público não ter dado qualquer indicação quanto à velocidade que o seu motorista devia adotar ou à urgência em chegar ao destino. Até porque na sua agenda de trabalho não tinha “compromissos externos agendados, apenas reuniões internas com entidades do MAI” a partir das 14h30, lê-se no despacho de acusação a que o Observador teve acesso.
Motorista diz que conduzia mais à esquerda e que Nuno tentou voltar ao separador central
Já o único arguido no processo, agora acusado, precisou que o BMW que conduzia circulava à frente, na faixa mais à esquerda, seguida depois pelo carro de segurança que circulava na faixa mais à direita e, por último, a terceira viatura que seguia igualmente na faixa da esquerda, atrás dele. Uma opção — seguir pela faixa da esquerda — que assegura ter sido definido pelo Corpo de Segurança Pessoal da PSP, mas que o Ministério Público considerou não ter qualquer justificação.
Nas declarações que prestou na fase de inquérito, Marco Pontes disse também que, como não havia horários para cumprir, “não fazia utilização de luzes luminosas de cor azul, nem sinais sonoros”. Por outro lado, alegou não saber a que velocidade seguia, mas que considerava ser a “adequada à via”.
Marco, que foi ouvido mais do que uma vez, esclareceu que, quando se deu o embate, na berma do lado direito estava parada “uma viatura sem qualquer sinalização luminosa”. “Apenas acoplado um sinal de sentido obrigatório e um sinal de triângulo, colocado na parte traseira do lado esquerdo”. Tudo aconteceu numa “fração de segundos”, a partir do momento em que viu Nuno Santos a sair do separador central para a faixa de rodagem.
O Ministério Público insistiu neste ponto. Afinal, onde estava Nuno? Marco assumiu que ele já estava na estrada, “a caminhar dentro da faixa de rodagem, de costas para a viatura que conduzia, em direção à berma do lado oposto”. Marco diz que ainda travou, depois buzinou. Nuno ter-se-á apercebido da aproximação do carro em que seguia Cabrita, “parou e hesitou”, o que o levou o motorista a mudar a trajetória para a direita. “O peão fugiu para a esquerda (na direção do separador central)”, escreve o Ministério Público. Nuno terá rodado o corpo sobre o lado direito quando viu o carro conduzido por Marco Pontes.
Paulo Machado, o oficial de ligação da GNR ao MAI que seguia ao lado de Marco, corroborou essa descrição dos acontecimentos. No entanto, enquanto Marco diz que a vítima tentou fugir para a esquerda em direção ao separador central, Machado diz que ele tentou fugir para o lado oposto, para junto dos três outros colegas que se encontravam a operar a viatura de limpeza na berma.
163km/h. A “velocidade mais provável” a que seguia comitiva
No banco de trás seguiam o ministro, do seu lado direito o segurança pessoal Rogério Meleiro, e do lado esquerdo o assessor David Rodrigues. O oficial de ligação esclareceu que o embate do peão se deu na via mais à esquerda da faixa de rodagem, precisamente em que circulava o carro conduzido por Marco Pontes. Também ele, numa segunda inquirição, afirmou que o ministro não tinha tido qualquer interferência na velocidade em que seguia o carro do ministro da Administração Interna nem na decisão de circular na faixa mais à esquerda.
O Ministério Público ouviu ainda os ocupantes das outras duas viaturas que seguiam na comitiva, mas considerou que nada acrescentaram de novo à investigação. Nos últimos seis meses, porém, o Ministério Público chegou a pedir à BMW informações para conseguir perceber a que velocidade circulava o carro — que, entretanto, foi devolvido ao Governo, segundo apurou o Observador. Da marca, veio a proposta de indicar um perito para analisar o carro — o relatório é referido no despacho de acusação, ainda que não seja feita qualquer menção às suas conclusões. As autoridades pediram ainda uma peritagem à Universidade do Minho, “destinada a apurar a velocidade instantânea e a dinâmica do acidente”.
Segundo o despacho de acusação, os peritos da Universidade do Minho concluíram que a “velocidade instantânea se situou entre os 155Km/h e os 171km/h, apresentando-se a velocidade de 163Km/h como a mais provável”.
Além disso, as autoridades recorreram a outras provas, como a inspeção judiciária feita no local, à inspeção ao carro, ao croqui do acidente e, tal como o Observador apurou, à recolha de vestígios biológicos no separador central. No entanto, apurou o Observador, o laboratório da PJ — a quem a GNR pediu esta perícia — concluiu que esses vestígios em nada coincidem com a vítima Nuno Santos. Segundo os seus colegas de trabalho, a vítima terá ido ao separador central verificar se havia escoadores das chuvas entupidos.
O Ministério Público considerou, então, que Marco Pontes conduzia na faixa da esquerda da A6, no sentido Este/Oeste (Caia/Marateca), em excesso de velocidade (a cerca de 163km/h), o que significa que “violou as regras de circulação rodoviária, sendo que não circulava em serviço de urgência de interesse público”.
A comitiva em que seguia “transitava fora das condições de serviço urgente de interesse público, pelo que não fazia uso da sinalização legalmente imposta para o efeito”. Naquele dia 18, “o tempo encontrava-se seco, a visibilidade no local era boa e não existia encadeamento”, descreve o Ministério Público. E o despacho também não manifesta dúvidas sobre se os equipamentos dos trabalhadores eram os adequados às funções que estavam a desempenhar naquele local. Os funcionários da Arquijardim que limpavam as bermas daquele troço da A6, refere o Ministério Público, “envergavam botas de proteção (com biqueira de aço) e vestuário de alta visibilidade (colete refletor e calças com faixas refletoras)”.
Comitiva não viu sinalizações. MP diz que trabalhos estavam “devidamente sinalizados”
Mais. Ao contrário do que afirmou de imediato o MAI — e que foi mantido ao longo de todas as inquirições —, “a atividade em causa estava devidamente sinalizada por veículo de proteção que, no taipal de trás, dispunha do sinal de trabalhos na estrada, como complemento dispunha do sinal de obrigação de contornar obstáculos à esquerda e duas luzes rotativas, a qual se encontrava a cerca de 100m/150m do local de realização dos trabalhos”.
Carro de Cabrita seguia a 163km/h. Motorista acusado de homicídio por negligência
Nuno foi, para o MP, atingido pela lateral esquerda da viatura quando atravessava para o lado direito. Mas a velocidade a que circulava o BMW que o colheu, que excedia em 40 km/h o limite legal, é para a acusação um comportamento sem qualquer precaução da “mais elementar prudência e cuidados impostos pelas regras de condução estradal essenciais para uma circulação rodoviária segura, o que podia e devia ter feito e que era capaz de adotar”. Por isso acusou o motorista de um crime de homicídio por negligência e de duas contraordenações.
A família da vítima, que deixa a mulher e duas filhas, quer avançar com um pedido de indemnização contra o Estado como forma de responsabilizar o ministro pela velocidade a que o carro seguia.