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O arquiteto Álvaro Siza Vieira no seu atelier, no Aleixo, no Porto

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O arquiteto Álvaro Siza Vieira no seu atelier, no Aleixo, no Porto

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Siza Vieira: "O papel da Europa na arquitetura tem sido um desastre completo. O estatuto profissional do arquiteto acabou"

O estado da arquitetura, a crise da habitação, os 50 anos do programa SAAL e as críticas de Rui Moreira. Grande entrevista ao primeiro Pritzker português, Siza Vieira.

Os dias de Álvaro Siza Vieira são passados no atelier, no Porto. Aos 91 anos, o mais internacional dos arquitetos portugueses, prémio Pritzker 1992, poupa ao corpo as viagens, mas continua a trabalhar. É numa sala com vista desafogada sobre o rio Douro que recebe o Observador, entre paredes cobertas com folhas com projetos, esquiços, fotografias, e um texto, do dramaturgo Samuel Beckett, sobre “Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor”.

Em entrevista, Siza Vieira fala sobre a degradação do estatuto do arquiteto, mede o pulso ao estado da arquitetura mundial, comenta as perversões das obras e concursos públicos e os projetos que nunca saíram do papel. Fala, também, da luta pelos seus arquivos que o levou de “traidor” da pátria a “insubstituível”. E critica, ainda, a falta de resposta dos governos a uma afirmação que vem na Constituição: o direito à habitação. O primeiro Pritzker português defende que, em 2024, os desafios de pensar a habitação social nas cidades são “os mesmos” de há 50 anos, mas que “os modos de encarar é que não”. O que falta?, perguntamos. “Não há revolução”.

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Estamos no seu atelier, no Aleixo, onde as cinco torres de 13 pisos foram demolidas entre 2011 e 2019. A demolição dos edifícios do bairro chegou a ser usada como bandeira na campanha eleitoral. Por isso gostava de lhe perguntar sobre a relação entre arquitetura e a política — ou o poder. Como é que um arquiteto enfrenta a possibilidade de os seus projetos poderem sustentar ou desafiar essas estruturas de poder?
A relação é de dependência. O trabalho do projetista está dependente dos convites para o trabalho ou dos concursos. E nos convites claro que há umas preferências referidas à ideia que se faz do perfil político do entrevistado e do entrevistador. Isso conta sempre, mas nem sempre. Nem é um problema grande.

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Como é que um arquiteto lida com isso? Pensa sobre como os seus projetos vão ser encarados pelo poder político local?
Com as decisões em relação ao projeto isso é um problema. Porque embora haja uma legislação ou um princípio que condicione as Câmaras e os outros departamentos que se pronunciam sobre os projetos a um parecer em vinte e dois dias, muitas vezes demora meses, quando não anos. E não há nada a fazer. Isso na vida, no trabalho num escritório, é um problema, porque há projetos que param. E quando recomeçam é preciso relembrar, consultar os documentos existentes, porque a pessoa já esqueceu, o projetista já esqueceu. É um problema porque não permite programar ordenadamente o trabalho num escritório que lida sempre, ou quase sempre, com vários projetos.

Nas últimas semanas, o presidente da Câmara Municipal do Porto criticou as estações que estão a ser construídas para o metrobus do Porto, por si desenhadas, defendendo que parecem “ter sido feitas pelo Obélix”. Optou por não responder, pelo menos publicamente. Falou com Rui Moreira?
Não. Não achei oportuno responder porque o presidente da Câmara apresentou o seu ponto de vista. É livre de o apresentar como qualquer cidadão. E eu ouvi.

Parecem “ter sido feitas pelo Obélix”. Moreira critica estações desenhadas por Álvaro Siza Vieira para metrobus do Porto

Como observa a discussão pública, e por vezes mediática, em torno da arquitetura? Ganha-se sempre com o debate que coloca o cidadão comum a falar sobre arquitetura?
Que a arquitetura seja debatida é bom. Faz falta, inclusivamente. Um projetista não trabalha no vazio. Portanto, à partida, tem que ouvir logo a opinião do dono de obra, seja público ou privado. Não vai fazer um projeto para si. Ouvir o que o dono de obra tem a dizer é um dos alimentos para o desenvolvimento do projeto. Na minha maneira de ver, as opiniões e os condicionamentos são bem-vindos, senão estava-se a trabalhar no vazio. Depois é preciso resolver os problemas que se põem, debatê-los, a entrada da racionalidade na apreciação dos diferentes intervenientes e por aí fora.

Costumo chamar ao dono de obra o primeiro arquiteto, porque se está empenhado na qualidade daquilo que encomenda há campo para se trabalhar. Se não se interessa, se o que quer é uma construção que muitas vezes não lhe diz respeito diretamente, é mais difícil. Também há processos de diálogo que vão além do dono de obra, mas o dono de obra é muito importante. Se não tem nenhum entusiasmo, um ponto de vista em relação ao que vai fazer, aí há um vazio. Condicionamentos são bem-vindos, são material do projeto.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Uma das suas obras que criou estupefação e foi alvo de discussão pública nos anos 80 foi o banco Borges & Irmão, em Vila do Conde, hoje vista como uma obra de culto e todos os anos visitada por centenas de estudantes de arquitetura.
Era chamado o Tollan (uma referência ao nome de um porta-contentores que naufragou em frente ao Terreiro do Paço em 1980 e que ninguém conseguia retirar do Tejo). Lembro-me que em Vila do Conde criou-se uma organização chamada “os amigos de Vila do Conde” que pretendia demolir o edifício que ia acabar de construir. Essas coisas às vezes passam, outras vezes não passam. Outras vezes não se trata de demolição, mas de não execução, de cancelamento. Tem aí uma coleção de projetos desse tipo em Portugal e fora de Portugal. Por exemplo, a intervenção na Alhambra de Granada foi um concurso que ganhei, foi aprovado, foi encomendado o projeto de execução, que fiz e que foi pago. E, a seguir, houve um cancelamento. Organizou-se uma associação, uma organização chamada SOS Alhambra, que contestou o projeto. Contestou, pôs fora, no fundo, a diretora da Alhambra e o projeto caiu.

Qual era a base da contestação?
A base é que não gostavam. Nunca foi explicada a base. Era uma organização que tinha como presidente, como por vezes acontece, um arquiteto. De maneira que moveu mundos e fundos até ao cancelamento do projeto.

Há falta de solidariedade na classe?
Muitas vezes há. Solidariedade não é o termo. É mais [falta de] espírito aberto e pensamento no que é essencial. Por exemplo, na Alhambra há uma necessidade urgente de resolver o problema dos acessos, que hoje é ainda uma confusão. Este projeto foi organizado num concurso para resolver esse problema há anos. No entanto, foi cancelado. E nem sequer seguiu outro projeto. Mas como este tenho bastantes.

Por exemplo, Avenidas da Ponte (área entre a estação de S. Bento e a Ponte Luís I, no Porto, que foi demolida na década de 1940 e que nunca foi reconstruída) já fiz dois projetos. Ambos aprovados numa primeira instância e a seguir surgindo uma contestação e sendo cancelados. Portanto, isso acontece. Há interesses ou convicções diferentes que se movem ativamente para um cancelamento. Isto acontece e hoje acontece mais porque há coisas que foram elas próprias canceladas, como direitos de autor. Não há direitos de autor hoje. Se alguém pega num projeto de um arquiteto e chama outro, basta escrever uma carta a informá-lo disso. Vem sempre cuidadosamente transcrito, ao abrigo do artigo tal, da lei tal. E pronto, acabou. É assim.

Isto é o nível de toda a Europa comunitária. O papel da Europa no que se refere à arquitetura tem sido um desastre completo. O que era o estatuto profissional do arquiteto acabou. Hoje não há nenhum. Só há indicação de concursos, [e de] entregar aos mais baratos. Neste momento, em Portugal, [há] concurso entre construtores, não entre arquitetos. [Há uma] queda dos direitos de autor, um desaparecimento dos direitos de autor, e pagamentos incomportáveis, quer nos concursos, quer nas entregas direitas. E, portanto, a situação da arquitetura hoje é terrível.

"O retrato que se faz do arquiteto hoje é de um profissional caprichoso, pouco confortável, pouco conveniente, caro e vocacionado para trabalhar para os ricos. O que é uma distorção completa"

Para quem vê a função social do arquiteto e a arquitetura como um serviço, a sociedade está comprometida?
É, mas pouca gente pensa nisso. O retrato que se faz do arquiteto hoje, que ouço mais repetido, é de um profissional caprichoso, pouco confortável, pouco conveniente, caro e vocacionado para trabalhar para os ricos. O que é uma distorção completa, porque o que continuamos a chamar, ao fim de tantos anos, arquitetura moderna parte exatamente de uma tomada de posição, de uma geração, no sentido de assumir o papel social como o aspeto predominante, o aspeto mais importante. E as obras celebradas, premiadas e que constam da História, nesses anos, 1920, 1930, dizem respeito à habitação social. Era reconhecido não só o direito à habitação, mas o direito à habitação de qualidade. Os arquitetos assumiam isso como base da sua atividade. Mas isso acabou.

Assinalam-se os 50 anos do 25 de Abril de 1974, e do projeto SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), no qual esteve evolvido. Foi um projeto revolucionário de construção de habitação social, em que os arquitetos intervieram no coração das cidades, nomeadamente no Porto, para fazer habitação destinada aos mais frágeis e desfavorecidos, precisamente os que as políticas da cidade estavam a expulsar dos centros urbanos. Passados 50 anos, o que o SAAL pode ensinar para fazer face à crise da habitação que afeta o país hoje?
Há medidas que são anunciadas a propósito, mas o que não vejo é essa preocupação com uma coisa que, como acabo de dizer, vem do passado, da qualidade, do aspeto da qualidade. Isso praticamente desapareceu. Pouco se fala na habitação social, a não ser como programas anunciados previamente, mas que não têm tido seguimento de continuidade. O que se passou depois do 25 de Abril foi uma convergência da situação política na altura, de assumir os direitos dos setores da população com menos possibilidade ao acesso à habitação condigna e um interesse generalizado à Europa. O programa SAAL foi muito divulgado em toda a Europa, mas não só na Europa, porque correspondia a uma preocupação assumida praticamente universal, à habitação social. Que de resto é uma má definição, porque social é toda a habitação. Durou dois anos e… talvez meio.

Porquê?
Porque politicamente foi cancelado. Acabou o programa SAAL. E quem trabalhou no programa SAAL — e trabalhavam sobretudo muitos estudantes, porque correspondia a um momento de reformulação no interior das universidades, o 25 de Abril também trouxe isso, nas chamadas brigadas, que tinham que ter um diplomado, um arquiteto diplomado à frente —, esses arquitetos, que não foram muitos, tiveram, depois do cancelamento [do programa], uma marginalização total. Ficaram sem trabalho, concretamente. E o que fizeram foi apresentado como incompetência, como exemplo de incompetência. Mas tiveram uma grande repercussão fora de Portugal.

Pessoalmente, o que aconteceu? Fiquei sem trabalho. Mas, simultaneamente, tive convites e comecei a ter trabalho fora de Portugal. Porque aquele trabalho tinha interessado na Alemanha, primeiro, na Holanda, em Espanha, em Itália, etc. De modo que foi-me favorável a marginalização. Embora com o incómodo de ter que me deslocar. O que fazia com muito gosto até agora, porque agora já não posso viajar. O trabalho que tenho, há 15 anos, é sobretudo no Oriente, na China, na Coreia, no Japão, e por aí fora. Não posso lá ir, mas trabalho com outro arquiteto, mais novo, o arquiteto Castanheira, há muitos anos. Convidei-o para trabalhar comigo quando tive de ir para a Holanda e trabalha hoje comigo em todo o trabalho no Oriente. E portanto ele pode ir. E gosta de ir.

Álvaro Siza trabalhou para SAAL entre 1973 e 1977, e durante este tempo projetou dois projetos habitacionais, entre eles o Bairro da Bouça, no Porto

©José Mota / Global Imagens

O SAAL deixou não apenas uma marca arquitetónica, mas também uma ideia de questionamento da política de habitação até então desenvolvida e do papel do Estado. O seu compromisso ou a consciência política nasceu ali ou foi exacerbada com o programa?
Não, já tinha uma idadezinha (risos). Não nasceu ali. Mas devo dizer que nunca tive uma política ativa de resistência como muitos, inclusive dentro da escola, amigos e colegas, que estiveram inclusive presos pela PIDE. Não tive atividade tão perigosa porque estava muito centrado na arquitetura. Mas consciência do que se passava tive, como muita gente tinha, e do impacto que teve o 25 de Abril. Muita gente tinha consciência de que não podia continuar assim.

Não retirámos os ensinamentos que deveríamos de um programa como este?
Sim, com certeza, mas foram-se cada vez mais debilitando, enfraquecendo. A ideia da participação direta [da população] era possível porque estava ligada à ideia de — ao contrário do que estava a acontecer — não expulsar ou afastar a população com menos acesso para a periferia, para bairros onde existia um regulamento apertadíssimo, cada um com o seu informador político, etc. Houve um período assim. E, portanto, [havia] a preocupação de: não, as pessoas não têm que ser expulsas da cidade, [têm] o direito à cidade. Isso foi desaparecendo. Então trabalhava-se a participação dos utentes, era possível porque se sabia quem eram os utentes. No caso do Porto, era a população das ilhas, sobretudo, que no fim do século XIX representava metade da população do Porto, no centro e no anel em volta do centro histórico. Portanto, o que foi o SAAL deve-se a esse assumir da não expulsão para a periferia. Ora, hoje, à força, ou pela natural lei do mercado, essa expulsão existe.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Quando se pensa em habitação social no centro das cidades hoje, os desafios são os mesmos?
Os desafios são, mas os modos de encarar os desafios é que não são os mesmos.

Em que é que são diferentes?
Em que não há revolução.

O que falta?
O que falta? Falta o assumir de uma resposta justa a uma afirmação que vem na Constituição, que é o direito à habitação. Não diz mais. Deveria dizer o direito à habitação e à qualidade da habitação, por exemplo. Mas não diz. Pressupõe-se que isso existirá.

Já o ouvi dizer que se criou a ideia de que “um arquiteto só serve para o capricho de quem tem dinheiro”.
É essa ideia de que o arquiteto está vocacionado para o Papa e para o rei, mas isso não é assim. Foi assim até muito tarde. A arquitetura era para o Papa e para o rei, mas havia toda uma legião que movia a construção da cidade, não propriamente com diploma de arquiteto, mas com uma prática consolidada no tempo, em séculos. As casas, em geral, não eram projetadas por arquitetos. Eram os mestres de obra que tinham um saber herdado de geração em geração, os próprios operários. Mas isso desapareceu. Já não é assim.

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É autor da renovação do Chiado, em Lisboa, depois do incêndio em 1988, hoje uma zona intensamente turística. Enquanto arquiteto que participou no desenho de cidades, como olha para o fenómeno de turistificação da capital?
Há diferentes aspetos. Por um lado, corresponde a coisas muito positivas, como o maior intercâmbio cultural, e outro, que é uma maior possibilidade da viagem, do contacto, do intercâmbio cultural também, que é muito positivo. Mas massificou-se e começa a haver uma consciência generalizada dos problemas que também vêm daí, em relação à habitação, mas também em relação ao conforto na cidade. Há massas que ocupam as ruas, as casas, os equipamentos. Está numa situação em que os governos responsáveis se debatem com a necessidade de criar condicionamentos a isso.

Numa cidade como Barcelona já não é permitida a construção de mais hotéis, ou há pouco tempo assim se passava, porque a cidade já estava no centro quase intransitável. Isso começa a acontecer em Portugal também. Seguem-se medidas urgentes porque afetam toda a gente. Há pressões e [o turismo] afeta também a economia de uma maneira muito positiva, mas, em determinada altura, começa a virar.

Sei que não gosta de prémios, mesmo tendo uma série deles, incluindo um Pritzker, prémio máximo da arquitetura. Que relação tem com o ego?
O ego é meu (risos). O ego fica satisfeito, mas não é um sentimento que leva a uma arrogância, que possa levar a uma arrogância ou a um convencimento. Se leva a um convencimento tem efeitos perniciosos. Há uma proporção na reação que não é de glória. Nada disso. Até porque os prémios são muito circunstanciais.

Quando uma pessoa recebe um prémio, como esse, a primeira pergunta que se faz é: porquê eu? Porque bons arquitetos há em todo o mundo uma quantidade deles. Calha por circunstâncias muito variáveis e nem sempre detetáveis, por atenção a um determinado país, por qualquer razão, pela divulgação que surgiu, por acontecimentos históricos que acompanharam o seu percurso, etc. Calhou, pronto, desta vez é aquilo. Não é mais do que isso. Não se julgue que é como receber uma coroa e sentar-se no trono.

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A única casa que construiu para si foi na Malagueira, em Évora — bairro que projetou, premiado internacionalmente. Li que queria fazer as canalizações no exterior das paredes, à vista, em aço inox ou em cobre, mas que não lhe deixaram fazer por ser “feio” e “antigo”. Mas depois fê-lo na sua casa.
Sim.

Resgato este exemplo para lhe perguntar se se considera teimoso.
Teimoso, não. Perseverante, sim. Teimoso, não. Até porque a teimosia conduz a uma inutilidade. Perseverante, sim, tenho sido. Só menos agora, porque cansa.

A perseverança cansa?
Ah, claro que cansa.

"O papel da Europa no que se refere à arquitetura tem sido um desastre completo. O que era o estatuto profissional do arquiteto acabou. Só há indicação de concursos, [e de] entregar aos mais baratos. Neste momento, em Portugal, [há] concurso entre construtores, não entre arquitetos. A situação da arquitetura hoje é terrível."

Há 10 anos, em 2014, doou parte do seu arquivo a Serralves, bem como à Fundação Calouste Gulbenkian e ao Centro Canadiano de Arquitetura (CCA – Centre Canadien d’Architecture), depois de muita inquietação e debate nos meios da arquitetura sobre a possibilidade de saída do país do seu arquivo. Como observou a discussão, na altura?
Divertido. Saiu do país porque não havia nenhuma solicitação no país. Em determinada altura, veio um arquiteto do Canadá que me disse: o Canadá quer os seus arquivos. E eu perguntei: mas o quê dos meus arquivos? Tudo. Estava com problemas nos meus arquivos pessoais, porque já era na altura eram mais de 50 anos de trabalho. Não tinha espaço e condições para os manter devidamente conservados. Embora tivesse uma arquivista permanente aqui no escritório, já era incomportável para mim e para outros arquitetos. Mas não tive oferta nenhuma, nem de Serralves, de quem era o arquiteto e onde já tinha construído o museu. Nunca me solicitaram isso ou mostraram interesse por isso. Nem da Gulbenkian, porque pouco antes de estar com esse problema soube de um bom arquiteto que quis pôr os seus arquivos na Gulbenkian e disseram que não estava vocacionada para isso. De tal modo que com a Gulbenkian nem falei. Portanto, não havia onde pôr [os arquivos]. Quando vão, por falta de alternativa, para um arquivo muito bom, um arquivo do Canadá, famoso, disse: bem, pronto, resolvo mesmo o meu problema. E aceitei.

Aí passei a ser insubstituível em Portugal e também um traidor. Começaram a sair artigos reportando a traição. Tive que escrever um artigo no jornal explicando que estavam no Canadá porque não havia hipótese em Portugal. Nessa altura, o responsável pelos arquivos no Canadá contactou-me dizendo que os próprios arquivos do Canadá viam com agrado a ideia de uma parte dos arquivos virem para Portugal, até diziam por questões políticas, e se estava de acordo para indicar para onde, o que não queriam era pôr em qualquer sítio. Deram-me o perfil que pela sua experiência longa tinham de características desse arquivo escolhido e disse que, com essas características, só via a Gulbenkian ou Serralves, mas que nem um nem outro até agora tinham mostrado interesse nisso. Eles disseram: nós vamos aí, vamos reunir. E reuniram com eles e combinaram realmente uma parte, as três instituições. Uma parte do arquivo veio para Portugal, uma parte para Gulbenkian e uma parte para Serralves. E, portanto, aconteceu isso pacificamente e eu também fiquei satisfeito.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A propósito da Fundação Calouste Gulbenkian, no museu em Lisboa está uma exposição que tem como centro da reflexão o papel do desenho na sua obra. Lá vemos cadernos, folhas soltas, guardanapos, sacos para o enjoo e até maços de tabaco desenhados. O desenho está associado a um tempo de lazer, recreativo, e não necessariamente de labor?
Sim. De trabalho é a prática central, não é? Na minha perspetiva, e de muitos outros, o desenho, inclusivamente o esquiço, o desenho de sondagem rápida, de hipóteses de desenvolvimento de um trabalho para serem analisadas, afastadas, é muito bom para isso. Porque é muito rápido. Um esquiço, uma hipótese de solução de determinado aspeto, faz-se em segundos. No computador é preciso carregar em botões e esperar que a sua excelência se preste a aparecer no ecrã. Portanto, é um dos equipamentos que usamos, juntamente com a maquete, com o computador, com o desenho rigoroso, e muito com o diálogo, com as especialidades que estão presentes no desenvolvimento de um projeto. Essa parte prática, que nunca é só prática, porque faz parte do desenvolvimento do entusiasmo por um projeto, é central, falando do desenho.

Por outro lado, desde menino me habituei, e como que me viciei, no desenho. E, portanto, também desenho coisas que não têm a ver com a arquitetura. Mantive sempre essa prática, nunca interrompi, muito por gosto, por necessidade da expressão, por prazer também.

Há uma liberdade no desenho que não encontra na arquitetura?
Sim, há. É mais livre e mesmo menos censurado. No desenho há uma componente do trabalho, também da arquitetura, que desponta com muita força, que é o instinto, é o não racionalizado, o espontâneo, que depois é mediado por todos os outros equipamentos de que dispomos. Mas nisso é insubstituível. E, portanto, mantenho vivo esse equipamento.

"É mais livre e menos censurado", diz Siza Vieira sobre o desenho, prática que mantém "desde menino". Na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, uma exposição mostra os desenhos do primeiro Pritzker português

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Ainda nessa exposição, há obras de artistas que compõem uma constelação das suas referências pessoais e artísticas, como um quadro de Pablo Picasso e três obras de Amadeo de Souza-Cardoso, mas também obras de Maria Antónia Siza (1940-1973). Nos últimos anos, decidiu mostrar o trabalho de Maria Antónia, sua mulher. O que lhe fez quebrar este silêncio e revelar a obra de uma artista que era até então praticamente desconhecida?
Foi mesmo um dos objetivos da minha vida divulgar a obra de uma grande artista que não teve fundamentalmente tempo para ser conhecida. Em vida, só fez uma exposição aqui no Porto, que teve muito sucesso.

Na Árvore — cooperativa cultural.
Na Árvore, mas local, com os amigos e tal. Entretanto, houve já posteriormente a possibilidade de divulgar, na pequena medida possível, a obra dela. A publicação de um livro de desenhos foi fundamental e manifestou-se interesse em várias partes onde eu trabalhava. Foi feita a primeira exposição fora, julgo que em Milão, mas depois houve exposições individuais, na Croácia, em Espanha, em Madrid. Em vários sítios houve solicitação para exposições ou para peças expostas ou incluídas em exposições minhas, a pedido dos organizadores.

No caso da Gulbenkian e de Serralves foram os próprios responsáveis pela montagem da exposição que me pediram, que manifestaram o desejo de incluir um desenho ou vários desenhos da minha mulher. Não queria impingi-los. Portanto, correspondem a iniciativas vindas de fora, não de mim. Não só para a divulgação, mas também para a conservação, fiz uma doação de desenhos a Gulbenkian e outro a Serralves. Portanto, faz parte dos arquivos das duas instituições. Mas ainda há muitos desenhos que estão aqui. Uma parte são desenhos que pertencerão aos meus filhos.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Essa decisão de que era tempo de mostrar tomou-a com os seus filhos?
Não, porque se há bons desenhos nas duas exposições são os da minha mulher. Era uma desenhadora extraordinária. Pintura há pouco porque não teve tempo. A pintura exige mais tempo, concentração. Não teve tempo e possibilidades de fazer tanta pintura, mas a que fez é muito boa. Agora, desenhos há muitos, uma infinidade deles. A maior parte estão ainda nos meus arquivos, dos quais uma parte é para os meus filhos, naturalmente, e outra parte será para mim, que depois destinarei da forma que me parecer melhor.

Bernardo Pinto de Almeida, professor, crítico e ensaísta, diz sobre a obra de Maria Antónia Siza: “Ela não teme mostrar estados de consciência que não são pacíficos. Há uma dor que atravessa os desenhos, que atravessa o trabalho dela”. Esta ideia de dor que nos atravessa levou-me para uma frase da sua irmã, Tereza Siza, historiadora e fotógrafa, no documentário Siza (2023), de Álvaro Custódio. Diz assim sobre si: “O Álvaro é um homem muito bom e não merecia ter sofrido as coisas que sofreu. A capacidade de sofrimento dele é tão inesgotável como a capacidade de trabalho”.
Bem, é o comentário de uma irmã muito amiga (risos). A minha irmã não ia dizer mal de mim.

Tem 91 anos. O arquiteto Carlos Castanheira continua a classificá-lo como o arquiteto mais jovem que conhece.
É um bom amigo.

Já disse que trocaria toda a sua obra por mais dez anos de vida.
Era um bom negócio, não era?

Fez uma pequena participação no documentário O Labirinto da Saudade (2018), de Miguel Gonçalves Mendes, com base no livro de Eduardo Lourenço, com quem, aliás, contracena. A dada altura, diz: “Não sabemos nada sobre o nascimento, sobre a vida, também não podemos saber nada sobre a morte”. Acredita naquilo que disse?
Não, pronunciei as palavras do guião feito pelo Eduardo Lourenço.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Por isso lhe pergunto: acredita no que disse?
Acredito. O guião é muito bom e foi muito agradável estar com o Eduardo Lourenço uma tarde inteira no Buçaco. Já o conhecia, mas foi a vez em que estivemos mais tempo a conversar. Encontrei-o várias vezes na Gulbenkian, era uma pessoa fantástica. Esteve presente na inauguração de uma pequena obra em França, muito perto do sítio onde vivia, e fez um belo discurso sobre a arquitetura, sempre dizendo “não domino isto e tal”, mas foi uma intervenção lapidar que, infelizmente, não foi gravada. Tenho muita pena disso. É o ponto de vista dos não-arquitetos, mas simplesmente inteligentes e criadores. Como há uma intervenção aqui na Câmara de Matosinhos do nosso prémio Nobel…

José Saramago?
Sim. Sobre arquitetura, também fantástica e que também não foi gravada. Ou foi gravada pela televisão, porque estava lá a televisão, mas a Câmara não descobriu [qual]. Pedi à Câmara, a pedido da Pilar [del Río], e não tinham a gravação. Nem me souberam indicar qual era a de televisão que gravou.

Lembra-se em que que consistia o discurso?
Não, era sobre a arquitetura, os valores da arquitetura, as coisas que interessavam na arquitetura.

Ainda no filme, faz de barman no Bar da Eternidade.
Era.

O que se bebe na eternidade?
Na eternidade acho que nada (risos). Beber é uma atividade terrestre. Lembro-me bem do Eduardo Lourenço a dizer-me: Ó Siza, o que nos fazem fazer! (risos)

 
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