Sempre que o ex-primeiro-ministro, José Sócrates, lhe dizia em tribunal que o dinheiro que tinha recebido do amigo e empresário, Carlos Santos Silva, era apenas um empréstimo, o juiz de instrução Ivo Rosa mantinha o seu ar impenetrável. Dificilmente se percebia o que estava a pensar, se acreditava ou não no que ouvia. Esta sexta-feira, numa sala no rés do chão do edifício A. do Campus da Justiça, em Lisboa, mas em direto em todas as televisões, a postura do magistrado não mudou muito, mas as suas palavras, que ditavam o destino do processo, sim. “Suscitam-se dúvidas quanto à realidade do alegado por ambos os arguidos”, revelou, depois de ter deixado cair vários dos crimes da acusação e de ter livrado a maior parte dos arguidos de irem a julgamento.
O ex-primeiro-ministro José Sócrates justificou sempre que os milhares de euros que foi recebendo de Carlos Santos Silva eram uma ajuda para uma altura em que enfrentava dificuldades económicas. Mas, para o magistrado, que determinou que o antigo primeiro-ministro fosse julgado por apenas seis dos 31 crimes de que estava acusado, Sócrates e o amigo terão mesmo cometido um crime de corrupção, mas diferente dos outros três pelos quais vinham acusados. Um crime que, contudo, já prescreveu.
Tanto o antigo governante como o amigo que conheceu na juventude e que o tem acompanhado desde então, mesmo que tenham seguido caminhos diferentes, foram acusados pelo Ministério Público de corrupção de titular de cargo político: Sócrates na forma passiva, porque recebeu, Silva nas duas formas, ativa e passiva, porque recebeu e também pagou. Mas, para Ivo Rosa, que no total deixou cair 172 dos 189 crimes da acusação, em causa estaria sim um crime de corrupção sem demonstração de ato concreto (também de forma passiva e ativa para cada um deles), punível até seis meses ou multa ate 60 dias, que o Ministério Público nunca lhes imputou.
No entanto, a ter sido praticado em 2006, altura em que começaram as entregas de dinheiro, o crime prescreveu cinco anos depois — ou seja, em 2011. O que significa que quando ambos foram detidos, em 2014, já nenhum deles podia sequer responder por ele.
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A acusação do Ministério Público calculava que José Sócrates teria recebido de forma direta ou indireta de Carlos Santos Silva — empresário que além das suas empresas, trabalhava como uma espécie de assessor para o Grupo Lena — 4.733.691,30 euros, entre as despesas com a casa de Paris, a compra de outros dois apartamentos e as 127 levantamentos de dinheiro em numerário, num total de 993 mil euros, entregues em envelopes ou através das contas de terceiros. Para Ivo Rosa, os cálculos são diferentes: no total, Sócrates recebeu cerca de 1,7 milhões de euros de Santos Silva.
Mesmo num valor mais baixo, o magistrado não tem dúvidas: até é normal emprestar dinheiro a um amigo em dificuldades, como sempre alegou José Sócrates; “o que não é normal”, afirmou o juiz, “é que esses empréstimos tenham sido realizados pelos montantes envolvidos, da forma como o foram”.
“É normal, em nome dessa amizade, que o fizesse de forma informal”, disse, mas nada impedia que Carlos Santos Silva lhe emprestasse dinheiro transferindo-o para a sua conta, como chegou a fazer quando ele estava em Paris — lembrando, por exemplo, uma transferência de 7.500 euros.
Conversas ao telefone mostravam “cuidado”
Para juntar à suspeição destes empréstimos de alto valor pagos de formas diversas e, por vezes, criativas, o magistrado lembrou que nas escutas que constam no processo “denota-se um cuidado” nas conversas mantidas entre ambos, “o que indicia o conteúdo ilícito subjacente a essas entregas”. E recordou mesmo um diálogo que Sócrates teve ao telefone com o seu motorista, João Perna (que será julgado à parte por posse de arma ilegal), em que o repreendeu por uma conversa que tinha tido momento antes com a jornalista Fernanda Câncio, e em que fazia referência a “documentos”. Além deste nome de código, acredita o magistrado, Sócrates e o amigo usavam também outros, como “fotocópias” ou “livros”, subterfúgios que convenceram Ivo Rosa de que por detrás havia um crime.
Por outro lado, o facto de haver transferências para terceiros, como para Célia Tavares, Maria João Rodrigues ou Lígia Correia — que Sócrates sempre disse tratarem-se de amigas em dificuldades — também afasta a tese de que Sócrates estaria a enfrentar ele próprio dificuldades económicas durante a sua vida de estudante em Paris.
Além disso, em todos os períodos de férias, José Sócrates não usou cartões bancários para pagar as suas despesas, como provam os extratos bancários — pressupondo-se assim que usou dinheiro vivo, adensando também as suspeitas da origem ilícita daqueles valores.
O ex-primeiro-ministro ainda explicou em tribunal que esse dinheiro lhe era emprestado pela mãe, que dispunha de quantias em numerário em casa. Mas nem isso convenceu o juiz. “Não se nos afigura credível que alguém tenha esse dinheiro em casa”, disse, além de existirem provas de que a mãe de Sócrates lhe chegou a transferir dinheiro para a conta, mostrando que usava o sistema bancário, constatou o magistrado.
“É possível assim admitir que esse dinheiro tenha origem da conta de Carlos Silva no BES”, concluiu Ivo Rosa. E disse mais: esse dinheiro estava relacionado com o cargo ocupado por José Sócrates. “Não corresponde a um empréstimo, mas a entregas relacionadas com o seu cargo de primeiro-ministro e como contrapartida que este demonstrava”.
Houve corrupção, mas sem ato para justificar os 1.727.398,56 euros
Porém, apesar de entre 2011 e 2014 haver de facto provas que mostram que saíram da posse de Carlos Santos Silva 1,727.398.56 euros que entraram na esfera de Sócrates — em dinheiro, viagens, compra de livros, obras de arte, pagamentos através de João Perna, despesas de Sofia Fava, pagamentos através de empresas, pagamentos à segurança social relativos ao motorista e entregas em numerário feitas de forma direta e indireta —, certo é que, assume Ivo Rosa, entre 2006 e 2011, “não existe prova de qualquer ato” que Sócrates tenha praticado, como primeiro-ministro, para receber esses valores.
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“Não existe qualquer prática de crime de corrupção passiva para ato ilícito ou ilícito. No entanto mostra-se indiciado, quer pela forma como o dinheiro foi entregue, quer pelos montantes e quer pela falta de prova de que tenham sido empréstimos”, disse o magistrado.
O juiz acredita sim que Carlos Santos Silva foi pagando ao amigo por exercer funções no domínio de angariação de obras e projetos e procurar a internacionalização do Grupo Lena. Sem que isso tenha tido uma relação direta na interferência nos negócios que o Grupo Lena conseguiu. “As entregas de numerário tinham como objetivo criar um clima geral de simpatia”, escreveu Ivo Rosa na decisão, aquilo a que o Ministério Público, nas suas alegações finais, chamou de “compra da personalidade”.
Estas entregas em numerário, diz o magistrado, indicam o “existencialismo de um mercadejar com o cargo” — um dos pressupostos da lei para um tipo de crime que não é o de corrupção passiva para ato ilícito, mas sim um crime de corrupção sem demonstração de ato concreto — que hoje se denomina de recebimento indevido de vantagem. Ou seja, José Sócrates fez negócio com o próprio cargo: bastava-lhe ser primeiro-ministro e a Carlos Santos Silva bastava ser ligado a ele para “abrir portas”.
Não há crime de corrupção, porque prescreveu, mas há branqueamento
Apesar deste crime de corrupção ter prescrito em 2006, é o crime precedente de um outro: o de branqueamento de capitais, que ainda não prescreveu. O magistrado diz que os dois amigos procuraram esconder — e, assim, lavar — o dinheiro ilícito que o antigo primeiro-ministro recebia do empresário. Ivo Rosa explica, aliás, que emprestar dinheiro através de terceiros “não parece um empréstimo” — parece mais uma dissimulação.
“Mostra-se indiciado que as manobras utilizadas pelos arguidos Carlos Santos Silva e José Sócrates com vista à circulação das quantias monetárias em causa através das contas bancárias dos arguidos João Perna e Inês do Rosário tinham como objectivo ocultar e dissimular a verdadeira origem das quantias monetárias que chegaram à esfera do arguido José Sócrates”, lê-se.
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Assim, o juiz Ivo Rosa decidiu levar ambos a julgamento por três crimes, em coautoria, de branqueamento: um pelo dinheiro que passou pela conta da companheira de Santos Silva, Inês do Rosário, no Montepio Geral, entre 2013 e 2014; outro pelo valor que passou na conta do motorista João Perna entre 2011 e 2014; e, ainda, um terceiro crime de branqueamento por Carlos Silva ter usado, alegadamente, a empresa RMF Consulting para a realização de pagamentos — no valor global de 163.402,50€, entre 2012 e 2014, a favor das testemunhas António Mega Peixoto, António Manuel Costa Peixoto, Domingos Farinho e Jane Kirkby no interesse do arguido José Sócrates.
Os dois arguidos serão também julgados por três crimes de falsificação de documento, também em co-autoria: um relativamente aos contratos de prestação de serviços celebrados entre precisamente a RMF Consulting e o professor Domingos Farinho, alegado escritor fantasma de Sócrates, e a sua mulher, Jane Kirkby; outro relativo aos contratos da mesma empresa com os bloggers António Manuel Peixoto e António Mega Peixoto, que teriam a função de falar bem de Sócrates na internet; e um terceiro relativo ao suposto contrato de arrendamento do apartamento de Paris.