Não há duas sem três. Depois de uma primeira nega do Ministério Público, esta sexta-feira foi a vez de o Tribunal da Relação de Lisboa considerar que não existem indícios de crime na atribuição do caso Marquês ao juiz de instrução Carlos Alexandre. O ex-primeiro-ministro, José Sócrates, acusa-o a ele e à funcionária judicial — que com ele trabalhava no Tribunal Central de Instrução Criminal em 2014 — de terem atribuído o caso manualmente em benefício de ambos, pela “carreira, vaidade” e pelo “gosto de ter poder”. Perante mais uma recusa em incriminar o magistrado, a defesa pondera agora levar esta decisão, que considera “corporativa”, ao Supremo Tribunal de Justiça.
O ataque a Carlos Alexandre seria, para a defesa, a forma de conseguir anular o despacho que ditou a prisão preventiva de José Sócrates no aeroporto de Lisboa, quando o antigo primeiro-ministro chegava de uma viagem com origem em Paris. Uma tentativa de derrubar toda a Operação Marquês, que continua sem data de julgamento prevista. Os argumentos de Sócrates levaram o juiz de instrução do caso, Ivo Rosa, a mandar abrir, a 9 de abril de 2021, um inquérito para apurar porque é que dezenas de processos foram atribuídos manualmente no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) entre setembro de 2014 e abril de 2015, violando a lei que obriga à sua distribuição eletrónica. Nessa investigação, o Ministério Público (MP) acabaria por não encontrar qualquer indício de crime. Mas Sócrates não se satisfez com a resposta, pediu a abertura de instrução e levou o caso para o Tribunal da Relação.
Numa súmula da decisão, na manhã desta sexta-feira, lida ao longo de uma hora na sala de audiências do primeiro andar do tribunal, o juiz Jorge Antunes acabou por acompanhar a mesma decisão que já tinha sido tomada pelo Ministério Público: “A versão não se mostra minimamente fundada na prova produzida”, disse o desembargador. Na sentença a que o Observador teve acesso lê-se mesmo que não ficou demonstrado que a atribuição do caso “tenha sido fruto de conluio de ambos, como ação de intencional desvio às obrigações inerentes às funções de um e de outro dos arguidos, propositada, com o intuito de alcançar benefícios ilegítimos ou de causar prejuízo ao assistente”.
Uma decisão sem arguidos na sala
De frente para os advogados de José Sócrates, de Maria Teresa Santos e de Carlos Alexandre, e sem arguidos na sala, o juiz Jorge Antunes lembrou que, nesta fase de instrução, cabe aos juízes fazerem um juízo de prognose. Caso a acusação de José Sócrates contra o juiz Carlos Alexandre e a funcionária judicial Maria Teresa Santos seguisse para julgamento, ambos seriam condenados? Para o juiz, não há qualquer prova que corrobore os indícios dos crimes de abuso de poder, falsificação praticada por funcionário e denegação de justiça. E se o caso seguisse para julgamento, dificilmente o juiz e a funcionária seriam condenados.
“A resposta a tal interrogação é clara — perante o acervo probatório recolhido, não é, de todo, provável que o tribunal, em julgamento, se convença, para além de toda a dúvida razoável, da veracidade dos factos imputados pelo assistente aos arguidos”, lê-se na letra da decisão.
À medida que o juiz ia explicando por palavras suas o teor da sentença, o advogado de Sócrates ia abanando a cabeça, desconfortável na cadeia, e bebendo água. Adivinhava o desfecho. “É facto que [Maria Teresa Santos] atribuiu o processo sem presença de magistrado judicial, mas também é certo que pediu para por os computadores a zero”, constatou o juiz, depois de alguns problemas técnicos no microfone instalado na sala.
Maria Teresa Santos fez 143 atos de distribuição desde o dia em que chegou ao TCIC, a 1 de setembro, até ao final de dezembro, e só duas foram automáticas. Para o juiz, os números mostram o volume de trabalho entrado e justificam que as distribuições dos processos não tivessem sempre sido feitas na presença de um magistrado, como a lei exige. Uma explicação acompanhada dos problemas no sistema informático CITIUS que se revelaram nesse ano de reorganização judiciária.
No requerimento de abertura de instrução, que funciona como acusação, o ex-primeiro-ministro socialista não colhe a explicação. Primeiro, diz que não há qualquer registo de falha no CITIUS no TCIC e, depois, disparou contra Carlos Alexandre e Maria Teresa Santos, que acusa de terem feito uma atribuição manual do processo do Marquês para garantir que era atribuído a Carlos Alexandre e não ao segundo juiz naquele tribunal, João Bártolo.
Sócrates diz mesmo que Carlos Alexandre combinou com a funcionária que a 1 de setembro de 2014, após a reorganização judiciária que fez com que Carlos Alexandre partilhasse o tribunal com mais um juiz, que mal o processo Marquês fosse remetido ao tribunal pelo DCIAP lhe seria atribuído. E por duas razões: “Prolongar a sua [de José Sócrates ] devassa da vida privada, pessoal, profissional e política, através da sua sujeição a detenção e prisão preventiva e o sofrimento dos consequentes prejuízos” e, por outro lado, para obterem benefícios na carreira, pela “vaidade, gosto em ter poder e em exibir poder e os seus abusos”.
Tribunal desvaloriza maior parte da acusação de Sócrates
Uma tese completamente desvalorizada pelo tribunal. Para o juiz desembargador, não existe no processo qualquer prova que corrobore “a gravidade da acusação”. Os “alegados do assistente são factos não suficientemente indiciados”, disse mesmo Jorge Antunes. Na decisão, escreveu: “Consigna-se que o requerimento de abertura de instrução contém, para além da alegação de factos concretos, menções que constituem conclusões, juízos de valor e considerações técnico-jurídicas que, não correspondendo à alegação de qualquer facto concreto, são insuscetíveis de indiciação ou prova”. De viva voz, acabaria por dizer que se limitou a analisar os factos em discussão: a distribuição dos processos no TCIC entre 8 de setembro e 5 de novembro, sobretudo o da Operação Marquês.
Para o tribunal, o facto de a 6 de novembro de 2014 a própria funcionária judicial ter dado conta à comarca de que era necessário repor os contadores dos computadores, colocando-os a zero, a fim de conseguir fazer sorteios eletrónicos dos processos, contraria a tese de Sócrates. Nesse mesmo dia, os computadores seriam “zerados” à distância por um técnico do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IFFEJ). Sem resposta ficou a questão sobre porque só o fez dois meses depois e porque continuaram a ser feitas distribuições manuais, como mostram as tabelas disponibilizadas pelo próprio Conselho Superior da Magistratura. O juiz valorizou também o facto de o próprio técnico do IGFEJ referir que a “versão do sistema Citius instalada” no DCIAP era então “muito desatualizada, por razões” que o ultrapassavam.
“Do teor de tal ofício não decorre, como é bom de ver, que não tenham existido anomalias dos meios eletrónicos não reportadas ao IGFEJ. Decorre, sim, que a intervenção de alteração de contadores foi efetuada na sequência do pedido apresentado pelos serviços de gestão da Comarca de Lisboa”, lê-se na sentença.
O ataque feroz de Sócrates que de nada valeu em tribunal
No despacho de abertura de instrução, o ex-primeiro-ministro, que deverá ser julgado por três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documento, diz-se mesmo vítima de perseguição por parte do juiz Carlos Alexandre. Lembra a entrevista que deu à SIC, em que fez “insinuações descabidas e a despropósito, quando afirmou ter o participante dinheiro em contas de amigos, através da formulação oblíqua de ele não os ter”. E acusa-o mesmo de cometer “ilegalidades” além do sorteio, ao permitir “todo o tipo dos mais devassadores e intrusivos meios de obtenção de prova”, como as escutas, “passando pela recusa da prisão domiciliária sem pulseira eletrónica e pela detenção para interrogatório à chegada a Lisboa, vindo de Paris”.
Sócrates revela ainda a estreita ligação de Carlos Alexandre à funcionária judicial com quem tinha trabalho ao longo de anos no tribunal militar e que foi trabalhar com ele à margem de qualquer concurso interno, considerando essa ligação parte de um plano criminoso para conseguir o processo Marquês. O tribunal ficou esclarecido com as explicações dos próprios: Carlos Alexandre pediu à presidente da comarca para colocar aquela funcionária ao seu serviço, dada a sua experiência, e ela aceitou. A relação entre ambos, no entanto, acabaria por deteriorar-se, como contou o próprio Carlos Alexandre. E Maria Teresa Santos acabou por mudar de serviço sem sequer se despedir do juiz do TCIC.
Além de pedir para julgar os dois arguidos pelos crimes de abuso de poder, falsificação, denegação de justiça e prevaricação, a defesa de Sócrates procurou que o inquérito arquivado pelo Ministério Público e agora em apreciação fosse considerado ferido de uma nulidade. Isto porque, inicialmente, este caso foi declarado em segredo de justiça pelo juiz de instrução João Bártolo, que acabaria por ser chamado como testemunha. “No momento em que foi proferida a decisão cuja nulidade foi arguida, não havia qualquer motivo para o que o juiz que a julgou se declarasse impedido”, disse o magistrado. João Bártolo pediu o afastamento do processo quando soube que iria testemunhar.
Pedro Delille pediu também para serem ouvidas novamente nesta fase de instrução todas as testemunhas, a maior parte funcionários do TCIC, que tinham sido ouvidas na fase de inquérito, por ter encontrado contradições em respostas que deviam ser esclarecidas. “A instrução não corresponde a um prolongamento de inquérito nem a uma intervenção hierárquica”, alertou o juiz. “É certo que, residualmente, a lei prevê a obrigatoriedade da realização de determinados atos específicos, embora não propriamente de investigação, entre os quais, porém, não se inclui a inquirição de testemunhas nem, obviamente, a sua reinquirição”, considerou o magistrado.
Já à saída do tribunal, Pedro Delille considerou, em declarações aos jornalistas, que a decisão era “corporativa” e que esperava lê-la com atenção, admitindo o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Sócrates não vai baixar os braços. A guerra continua.