Quinta-feira, 19 de maio
O sr. Ramos, um conhecido da minha família paterna que foi combatente no Ultramar, comentou com o meu pai que haveria uma reunião de 40 mil boinas verdes na escola de pára-quedistas de Tancos. Assim que o meu pai me avisa disso pelo WhatsApp, peço-lhe o número do sr. Ramos e telefono-lhe para saber mais. O sr. Ramos promete apresentar-me a uma quantidade impressionante de generais e comandantes e diz-me que posso aparecer em Tancos na segunda-feira sem problemas que ele trata de tudo. Mais importante do que isso, promete-me comida e bebida. Ao longo dos dias seguintes, ligo-lhe insistentemente para saber os horários da cerimónia e outras informações que me parecem relevantes, mas ele, sem deixar de me tentar convencer que desempenha um papel fundamental na organização do evento, confessa a custo que não sabe mais nada, mas pede-me para não me preocupar com isso e que esteja lá entre as oito e as nove da manhã. Numa das chamadas, apercebo-me de que o número de participantes diminuiu para 20 a 30 mil e começo a ficar preocupado com o que vou encontrar, agora que convenci o Observador a enviar-me lá com um fotojornalista, o Tomás.
Segunda-feira, 23 de maio
06h38: Saio de casa. Apanho o Tomás em frente ao edifício do Observador e partimos para Tancos.
08h14: O sr. Ramos telefona-me a dizer que está atrasado, mas diz-me para ir entrando. Já só peço que haja mais de cinco mil pessoas.
08h23: Chegámos. As promessas do sr. Ramos parecem cumprir-se: apesar de ser ainda muito cedo, estão centenas de carros e dezenas de camionetas estacionadas num enorme descampado. Ainda não parámos e já vimos um boina verde e a respectiva mulher a protestarem indignadamente com um militar a propósito do lugar de estacionamento que lhes fora atribuído. Enquanto caminhamos para o centro do recinto, uma senhora com uns sessenta anos comenta que dantes os homens queriam tirar as cuecas às mulheres para lhes chegar ao rabo e que agora tinham era de lhes tirar o rabo para chegar às cuecas. Quando repara na máquina fotográfica do Tomás, repete a piada para ter a certeza de que a ouvimos. Tento estimar o número exacto de pessoas presentes e calculo que sejam muitas. À porta do recinto, acumulam-se tendas a vender cervejas, bifanas e t-shirts com mensagens como «Que Nunca por Vencidos se Conheçam» ou «Somos Boinas Verdes Reagruparemos no Inferno». O Tomás vai beber um café.
08h38: Começamos a caminhar em direção à zona das caravanas, onde muita gente está acampada. Antes de chegarmos, o Tomás aponta-me um senhor com uns sessenta anos todo vestido de militar. O senhor está sozinho, o que me parece uma enorme vantagem para que a conversa resulte. Pergunto-lhe se me posso sentar, responde-me que sim desde que não me aproxime muito. Imagino que tenha medo do coronavírus, pergunto-lhe se é isso e ele tem a generosidade de não me desmentir. O Tomás aponta-lhe a máquina e ele diz-lhe que nem pensar. O Tomás baixa a máquina. Eu pergunto-lhe se podemos conversar, ele diz que sim, mas avisa-me que não vai dizer grande coisa. Eu pergunto-lhe em que anos foi pára-quedista e ele diz-me que esteve na República Centro Africana em ‘83. Pergunto-lhe se é casado, ele diz que sim, há 36 anos. Depois, conta-me que nunca falou com a mulher nem com os filhos sobre o que viveu lá e, portanto, não é de certeza com um puto como eu que vai agora desabafar. A seguir, conta-me que vem todos os anos a estas reuniões, mas que não faz tenção de recordar seja o que for. Está cá pela camaradagem. Pergunto-lhe se veio mais alguém do batalhão dele (não faço ideia se é “batalhão” que se diz, mas arrisco a palavra e ele não me corrige), ele diz-me que já viu para ali um antigo camarada, mas que quer evitá-lo. Deixo-o finalmente em paz. Tenho medo de que entre um tipo como eu e alguém que passou pelo que estas pessoas passaram não haja comunicação possível. Entretanto, o sr. Ramos ligou-me, eu ligo de volta e ele não atende.
09h03: Na zona das rulotes, conversamos com um grupo de pára-quedistas do Ultramar. Pergunto-lhes pelas tatuagens e percebo que, apesar de também serem feitas com tinta de canetas e agulhas, são diferentes das que estou habituado a ver em antigos combatentes. Não dizem “Amor de Mãe” nem “Angola ’69”. Têm o grifo dos pára-quedistas e percebo que são uma espécie de medalha, que serve para os distinguir dos militares do Exército. Tento saber se algum deles tem o horário do evento e eles dizem-me para não me preocupar com isso. Começa a ficar claro que ninguém ali se preocupa com tal coisa. O filho de um deles é tatuador e o pai mostra-me, orgulhoso, fotos de algumas criações do rapaz. Quero perguntar pelas boinas, mas, na minha invencível estupidez, refiro-me a elas como “chapéus”. Assim que a palavra me atravessa a boca, preparo-me para, no mínimo, ser ofendido. Estou pronto para fugir disparado em direção ao carro, deixando para trás o pobre do Tomás, que com duas máquinas ao pescoço não conseguiria correr, mas eles corrigem-me com um sorriso. Não parecem ter ficado chateados.
09h45: Dirigimo-nos para o que calculo que seja a “porta de armas” de que já tanto ouvi falar. Meto conversa com um senhor negro de boina verde, o sr. Pires, que me conta que o seu pai conhecera a sua mãe quando foi para Angola combater, mãe essa que seria mais tarde assassinada por tropas angolanas. Pergunto se acha que foi por isso que decidiu servir no Exército português, ele responde-me que os pára-quedistas são das Forças Armadas. Eu digo “Forças Armadas, claro”. Ele diz que acha que sim. Tento meter conversa com duas raparigas que calculo que tenham uns vinte e poucos anos. Pergunto-lhes se são filhas de um pára-quedista, elas dizem-me que não, que são namoradas de um. Percebo que o namorado de uma delas olha para mim e para o Tomás com desconfiança. Elas não nos dão grande conversa. Afastamo-nos. Conversamos com um senhor com um bigode impressionante, que nem sequer era pára-quedista militar, mas o Tomás teimou que lhe havia de tirar um retrato e, portanto, ouvi-o uns minutos.
09h53: Conversamos com um grupo de quatro ou cinco boinas verdes muito simpáticos e divertidos que serviram nos anos 90. Começo a notar um padrão: lamentam a falta de disciplina e rigor dos novos recrutas e a transferência dos pára-quedistas das Forças Armadas para o Exército. Explicam-nos que no tempo do Ultramar havia exageros, mas que esta bandalheira também não pode ser. Descubro nisto a perspetiva para o artigo que mais tarde vou escrever para o Observador e desato a massacrar os militares que encontro a partir daí com perguntas sobre o tema.
10h02: Conversamos com quatro pára-quedistas mais ou menos da minha idade, mas todos capazes de derrotar sozinhos um pelotão de Joões Pedros Valas. Pedem-nos que ajudemos um deles a entrar no Big Brother. Eu prometo tentar, mas esqueci-me de apontar o nome. Pergunto-lhes se foram pára-quedistas há muito tempo e eles explicam-me que ninguém deixa de ser pára-quedista, é-se pára-quedista para a vida. Eu digo-lhes que faz sentido, mas a verdade é que não faço ideia. Também não perguntei se achavam que faltava disciplina aos recrutas de hoje, para ver se a minha teoria sempre se confirmava. Vejo que o sr. Ramos me tentou ligar há meia hora.
10h08: Passamos por um boina verde com a cara toda tatuada de símbolos e mensagens que ao longe parecem, na melhor das hipóteses, nacionalistas. O Tomás quer tirar-lhe uma fotografia, mas deixamo-lo escapar, em parte, parece-me, por medo.
10h12: Ao pé do acesso a uma casa-de-banho, conversamos com mais uns pára-quedistas que serviram na Guerra. O Tomás descobre que são de Benavente como ele. Um deles conta-me que passou a sua primeira noite no mato com um morto ao lado. Tento não me mostrar impressionado. Explica-me que nas noites em que alguém morria, havia um enorme silêncio entre os boinas verdes e depois acrescenta que os militares portugueses fizeram uma festa na sanzala quando o Salazar morreu. Sem que eu puxe muito por eles, lamentam a falta de disciplina dos novos recrutas. Dizem que se no tempo deles houvesse um fósforo no chão, o sargento os obrigava a limpar “aquele pinhal”. Apontam-me para as ervas-daninhas no chão e perguntam-me se eu acho bem. Eu não tenho grande opinião sobre o assunto. Passa por nós um boina verde de 70 e poucos anos e atira uma beata para o chão.
10h32: Converso com o Mexicano, um pára-quedista com uns quarenta anos, filho de um pára-quedista que combateu no Ultramar e que, pelo que conta, teria fortes traumas de guerra. Diz-me que um dia encontrou em casa dos pais fotografias de angolanos desmembrados. A seguir, diz-me que o pai dele não era violento e torna-se claro para mim nesse momento que essa palavra tem para ele um significado diferente do que para mim. Um amigo do Mexicano conta-me uma história de brutalidade em Tancos, nos anos 80, mas mal eu saco da caneta protesta comigo e afasta-se. O Mexicano explica-lhe que vai ser tudo anónimo, para ele não se preocupar. Eu confirmo. O Mexicano diz-me que não se importa que o nome dele apareça. Ao fundo, decorre uma parada com a presença de Sua Excelência, a Ministra da Defesa. Pergunto ao Tomás se sabe se aquela senhora é a ministra, ele diz que acha que não. O Google diz-nos que sim. Penso em conversar com ela, o Tomás diz que devia tirar uma fotografia, mas saímos dali.
10h50: Num outro ponto do recinto, alguns recrutas estão em sentido perante uma enorme bancada completamente cheia. Pergunto a um militar no cimo das escadas se tem um horário do evento. Ele deixa-me tirar uma fotografia ao papelinho e percebo que infelizmente perdemos o lançamento de balões quentes às sete e meia, e a missa solene acompanhada de uma homenagem aos defuntos às oito. No horário, prometem ainda uma demonstração aeroterrestre ao fim do dia e uma demonstração cinotécnica (não sei o que é, mas tento não arriscar uma hipótese para não me envergonhar ainda mais. Explica-me que são exercícios de perícia canina). Percebo também que o militar com que falo é capelão. Pergunto-lhe se acha que há mais fé entre militares do que na sociedade civil, ele dá-me uma longa resposta a que não prestei muita atenção porque me distraí com a quantidade de tempo que os recrutas já levavam para ali parados em continência em frente à bancada, onde imagino que já esteja a ministra.
11h05: Partilho com o Tomás a minha teoria acerca da nostalgia, digo-lhe que todos os militares com que conversámos acham que o mundo estava no sítio certo precisamente quando tinham vinte anos. O Tomás diz que sim, mas parece não me ouvir, entusiasmado com o evento. Subimos a uma torre de exercícios para tirar fotografias. Ouvimos ao fundo o hino nacional.
11h28: Vemos de novo o militar de cara tatuada. Deixamo-lo escapar novamente. Desta vez, ficou claro que foi mesmo por medo.
11h30: Vamos de novo em direção às caravanas. Vemos um senhor com uns oitenta anos de fato e boina verde. Todas as outras pessoas estão de T-shirt, digo-lhe. Ele diz-me que aprendeu a responsabilidade e o rigor ali e que quando vem à casa-mãe tem de se vestir condignamente. Explica-nos que não gosta de ver boinas verdes, que se gabam de serem diferentes de todos os outros, a caírem de bêbados. Parece-me um homem genuinamente bom. O sr. Ramos liga-me. A carrinha onde vinha avariou.
11h48: Encontramos um grupo de pára-quedistas que serviram nos anos 60 no Ultramar e que já não se viam há quarenta anos. Ninguém diria. Um deles descreve-me da maneira mais seca e aborrecida possível a vez em que viu dois camaradas morrer ao seu lado e deu por si cercado por uma ofensiva inimiga. Percebo que o aborrecimento da narrativa o ajuda a tornar aquilo digerível, como se a descrição precisa dos factos o tirasse dali para fora. O Tomás pede para lhes tirar uma fotografia e ele insiste em aparecer a segurar no livro que escreveu sobre o Ultramar.
12h20: Começo a pensar que seria melhor para o artigo que nunca conseguisse encontrar o sr. Ramos, mas já temos alguma fome. Ligo-lhe e combinamos ao pé de uma ambulância. Pergunta-me pelo meu pai e explica-me que eu nunca vi nada assim. O Tomás junta-se a nós cinco minutos depois e é também informado de que nunca viu nada assim. Concordamos.
12h36: Vamos para a tenda do Núcleo de Paraquedistas das Terras do Infante, onde nos é dada comida e bebida e onde um boina verde muito parecido com o Herman José, ao perceber que estou ali para escrever sobre a reunião, me explica que esteve a isto de interpelar a ministra, que, por ele, metade dos políticos era para fuzilar, que onde é que já se viu uma Ministra da Defesa mulher, que só neste país. Louva o 25 de Abril, mas diz que se soubesse que ia resultar nisto mais valia terem estado quietos. Comunicou-me ainda que durante a parada gritou aos pára-quedistas que aquilo não tinha jeito nenhum, que não era assim que se marchava e que por isso é que o país está como está. Este boina verde terá sido, aliás, o único que encontrei ao longo do dia que me fez lembrar a versão caricatural que existe na minha cabeça de um guerrilheiro do Ultramar: esses tipos forçados a combater numa guerra que não lhes dizia respeito, endurecidos pelo horror absoluto e depois abandonados a si mesmos, presos a uma revolta incomunicável que não os deixa dormir e que canalizam em direção a tudo o que mexe. Esse bando de mutilados com cujas chagas protesto por me tirarem o apetite para a sobremesa. De seguida, um amigo do sósia do Herman pede-me que não ligue e passa a apresentar-me uma teoria muito mais sensata para as mudanças nas hierarquias militares. Outro boina verde serve-me medronho enquanto me conta as suas aventuras sexuais em África a menos de um metro da mulher. Assegura-me de que ela não se incomoda e o silêncio complacente da senhora parece confirmar isso mesmo. Depois, converso com o sr. Ramos, que, apesar de não falar das histórias traumáticas que viveu na guerra com a família, me explica que as pode contar a mim, porque as suas recordações têm livre-passe para virem à tona em concentrações destas. É-me dito mais uma vez que todos vêm a Tancos pela camaradagem e pelas memórias da juventude, mas que ninguém tem grande vontade de recordar um período que só queriam que acabasse. Reagrupam ali, anualmente, de costas voltadas para o inimigo.
13h45: Somos levados para um outro acampamento, onde cerca de dez combatentes do Ultramar cantam, dançam e tocam concertina. Um deles, o senhor Vinício Galo, esperneia no chão enquanto dança e bebe vinho diretamente do bag-in-box de Pias. A festa aumenta com a chegada de um senhor de Portimão que todos me explicam estar muito doente. Reparo que estão comovidos e talvez seja este o momento que melhor descreve o que aqui se passa: um conjunto de velhos a comportarem-se como os miúdos que um dia foram noutro sítio, para evitarem olhar para as coisas que não podem mudar, sendo que entre essas coisas se encontra o passado, o presente e o futuro. Neste momento, quis por um segundo levar o chapéu ao peito, mas a diferença entre mim e eles é que na cabeça eu não trago nada.
13h58: Confronto um jovem militar com as acusações de falta de disciplina e rigor que fui ouvindo ao longo do dia. Ele encolhe os ombros e diz-me que um dos treinos que teve de fazer consistiu em passar sete semanas seguidas a dormir três horas por semana.
14h13: Vamos à casa-de-banho. Quando estou quase a entrar, um grupo de militares avisa-me com rispidez, mas simpatia, que não devo pisar o grifo feito em calçada. Apercebo-me de que os militares das 10h12 estavam a pisar aquele mesmo grifo.
14h19: Consigo convencer o Tomás de que está cansado e sentamo-nos à sombra. Ele explica-me que não trocava aquele emprego por nenhum outro. Parece genuinamente feliz.
15h03: Vamos ver a demonstração cinotécnica. Ao chegar às bancadas, ouço um boina verde com uns 60 anos a troçar de um recruta por não parar de marchar para um lado e para o outro. O recruta, tal como todas as outras pessoas na bancada, ouviu-o e ignorou-o. Para gáudio dos filhos dos boinas verdes, vemos uma cadela pára-quedista e dois outros cães que fazem habilidades. A certa altura, o comandante (imagino que fosse comandante, mas não tenho como saber) informa os espectadores que agora os cães são treinados com incentivos em vez de, subentende-se, à porrada. Explica que é essa a diferença entre cooperação e submissão. Parece-me que está a querer traçar um paralelo entre a vida militar em democracia e em ditadura, mas talvez esteja só mesmo a falar de cães. O momento alto da exibição acontece quando nos explicam como se capturam dois terroristas centro-africanos escondidos atrás de uma parede de pladur com recurso a apenas onze recrutas, dois cães e uma carrinha. Aplaudimos entusiasticamente.
15h58: Informam-nos de que não haverá saltos por causa do vento.
15h59: Voltamos. A caminho do carro, o Tomás sorri como um puto. Foi um dia bom.
João Pedro Vala é escritor, autor do romance “Grande Turismo”. Passeio das Virtudes é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vida