“Vida por Vida. Hoje, testemunhámos o expoente máximo do nosso lema.” A frase é dita entre lágrimas pelo presidente da associação de bombeiros de Vila Nova de Oliveirinha, enquanto tenta explicar a tragédia.
A manhã de verão do dia 17 de setembro começava como tantas outras na vida dos bombeiros Paulo, Sónia e Susana — à procura de fogo.
Esta terça-feira, perante o avançar das chamas em Vila do Mato, freguesia do concelho de Tábua, os três bombeiros seguiram num carro de combate a incêndios juntamente com Francisco e Luís. Uma equipa de cinco operacionais experientes. Só que Paulo Santos, Sónia Melo e Susana Carvalho nunca regressaram — morreram no fogo.
A notícia chegou quando o sino da igreja de Vila Nova de Oliveirinha tocava 12 badaladas e as preocupações da aldeia estavam centradas num incêndio a poucos quilómetros, em Vila do Mato. “Estamos a falar de uma vertente do Mondego muito acentuada, com plantações de eucaliptos. O fogo vem de baixo para cima, e quando eles vêem que já não conseguem lutar tentam subir. O fogo apanhou-os por trás. Não conseguiram chegar à carrinha”, conta Vítor Melo, presidente da Associação de Bombeiros de Vila Nova de Oliveirinha.
É com um rosto emocionado que conta em que circunstâncias morreram os três bombeiros: “Uma viatura estava no cimo do monte, o fogo estava a subir e estava tudo cheio de fumo. Os colegas da carrinha, quando viram as chamas, fugiram, tal como os restantes estavam a fazer. O fogo passou e depois voltaram ao local para os procurar.”
Não deveria ser Vítor Melo a prestar esclarecimentos, mas o comandante estava também a receber apoio. “Era irmão do Paulo. O irmão do comandante morreu no fogo”, diz um morador que está no quartel para confortar a corporação. “Foi família que morreu aqui. O Paulo e a Sónia são cunhados. O Paulo era casado com a irmã da Sónia. E a Sónia ia casar no próximo ano. O noivo estava na carrinha. Foi um dos que sobreviveu. A Susana também tinha o marido no combate ao fogo, mas ele estava noutro local. É família. Numa localidade com 200 habitantes, o choque é muito grande”, explica João Nuno Brito, presidente da Junta de Freguesia.
De Vila Nova de Oliveirinha viam-se, na tarde desta terça-feira, colunas de fumo em todas as direções, o ar ficava cada vez mais difícil de respirar e nas ruas atravessavam a alta velocidade ambulâncias e camiões de bombeiros pelas ruas estreitas da aldeia, no município de Tábua.
Paulo, Sónia e Susana perderam a vida no fogo numa luta que continua a ser travada pelos parceiros da corporação. “Juízo”, aconselha Vítor Melo, enquanto encaminha mais uma equipa para o combate ao fogo junto ao rio Mondego. “Partir para o fogo novamente? Há pessoas que pensam que o dinheiro compra tudo, mas ser-se bombeiro não tem preço. Depois do que aconteceu, as nossas equipas continuam a combater.”
“Eles disseram que estava a ficar mau”
José Saraiva vive em Vila de Mato e a meio da manhã, como habitual, estava a beber café no centro da aldeia, na pastelaria Seara da Vila. O parque de estacionamento estava repleto de carrinhas de bombeiros. O filho do dono deste estabelecimento é um dos operacionais e está numa equipa de cinco.
Com 68 anos, José diz que conhece todos: “Vinham de Oliveirinha e de manhã falei com eles na pastelaria, estive à conversa com um deles. Vinham do fogo e depois voltaram. Foi por volta das 11h00 da manhã. Estavam os cinco no café, mas estavam mais uns quantos a descansar um pouco. Estavam calmos. Eles tinham muito traquejo.”
A conversa foi curta. “Falámos sobre o fogo. Eles disseram que estava a ficar mau. Foi a conversa do costume. Eles também não podem dizer muito para não alarmar as pessoas.”
Depois da pausa, Paulo, Sónia, Susana, Luís e Francisco seguiram para uma frente de fogo junto à Quinta do Rabaçal. As chamas tinham acabado de atravessar o Mondego e aproximavam-se de habitações. “Estavam a combater. Com a agulheta, de mangueira na mão. Formavam a equipa de cinco elementos. Dois estavam na carrinha, como é prática, e os outros três estavam a combater o fogo. Um na agulheta, os outros dois na mangueira”, explica Vítor Melo, presidente da Associação de Bombeiros de Vila Nova de Oliveirinha.
Uma situação normal de combate a incêndios. Mas o fogo contava com o aliado mais temido por bombeiros e populações. O vento forte permitiu que as chamas progredissem rapidamente pela encosta acima e a única solução seria fugir. Paulo, Sónia e Susana correram à procura da carrinha, mas não chegaram ao destino. Luís e Francisco esperaram até deixar de ser possível.
Francisco estava noivo de Sónia, que era cunhada de Paulo — o irmão do comandante dos bombeiros de Vila Nova de Oliveirinha. “O comandante está bastante abalado porque chegou ao local enquanto tudo estava a acontecer. Não só como comandante de todos aqueles operacionais, mas também como irmão. Está combalido”, explica o presidente da junta de freguesia.
“O Paulo não dá para explicar. Era humilde. Só sabia ajudar”
Paulo Santos faria 39 anos no próximo mês de outubro. Casado, pai de duas meninas, uma ainda no 1º ciclo, outra ainda não chegou ao pré-escolar. “Experiente” é a palavra usada por todos os que o conhecem para o descrever.
“O Paulo, não há explicação. Humilde. Ajudava toda a gente. Alegre. Era um pai dedicado, nada faltava às miúdas. Era meu primo, filho de uma prima direita do meu pai. O Paulo era um bom homem”, conta Tomás Rocha, habitante de Vila Nova de Oliveirinha e irmão de Luís Rocha, o condutor da carrinha de bombeiros em que seguia Paulo Santos. “Para esta terra, isto é muito, muito complicado. É família que morreu no fogo.”
Em 2021, Paulo Santos foi candidato pelo PSD à Junta de Freguesia desta pequena aldeia do município de Tábua. “Era uma pessoa extremamente afável. Tenho muita consideração por ele, independentemente de termos sido adversários”, diz João Nuno Brito, o atual presidente da Junta de Freguesia. Paulo tinha três irmãos, dois sabem o que é combater incêndios — o mais velho lidera a corporação de Oliveirinha.
Nesta terça-feira, Paulo Santos, também conhecido como “Paulito”, estava ao lado da cunhada, Sónia Melo, quando morreu enquanto combatia o fogo junto ao Mondego.
“A Sónia ia casar. O noivo estava com ela no fogo”
Em janeiro deste ano Sónia Melo completou 36 anos. Enfermeira e bombeira, tinha ainda tempo para um part-time num laboratório de análises clínicas. “Ia casar. A minha afilhada”, conta o presidente da Associação de Bombeiros de Oliveirinha.
Francisco Cunha, o noivo, estava também a combater o fogo. Ela, junto às chamas; ele, no carro de combate. “Está tudo em choque. Eles tinham muitas horas de combate a incêndios florestais”, diz-se no café central da aldeia.
Durante a tarde, a pastelaria Seara da Vila fechou. O proprietário é o pai de Francisco Cunha, seria sogro de Sónia Melo.
“A Susana era de Loureiro e o companheiro também era bombeiro”
Com 36 anos, Susana Carvalho também carregava anos de experiência no combate ao fogo. Era a única desta equipa que não vivia em Oliveirinha, mas também tinha família no incêndio. O companheiro estava noutra frente quando soube o que aconteceu na Quinta do Rabaçal.
Susana não tinha filhos, mas sim um enteado. “Conhecia todos. É daquelas coisas que não tem explicação. Estavam a tentar acudir ao fogo e foram apanhados”, lamenta José Saraiva, que horas antes tinha estado com todos estes bombeiros.
O município de Tábua decretou três dias de luto municipal e no quartel de bombeiros continuam equipas médicas. O autarca diz que, “felizmente, foram enviados de imediato psicólogos e técnicos para dar resposta a nível de saúde mental”.
João Nuno Brito, o presidente da Junta de Freguesia de Vila Nova de Oliveirinha, fala em choque e revolta. “O que podemos fazer? É estar presentes e dar apoio moral e psicológico. Às vezes, basta um abraço e um sorriso. Às vezes, sem palavras, é só estar presentes. Para sentirem que não estão sozinhos. São perdas muito sentidas.”
Vítor Melo, presidente da associação de Bombeiros, sabe que há trabalho por fazer, coordena as equipas enquanto recorda quem morreu no fogo. A soluçar, pede que este dia não se esqueça e, ainda a quente, diz que não sabe se tem força para continuar: “Eu não ganho nada. Sou presidente há 14 anos. O meu pai foi 20. Uma vida nos bombeiros. Agora apetece atirar a toalha ao chão. É inglório. Nós estamos porque gostamos. Porque precisamos. Os bombeiros aqui servem para tudo. E o Estado, como olha para nós?”