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Startups. “A maior parte das pessoas na América e no mundo são escravas de um salário”

Transformou uma cidade esquecida num tubo de ensaio para comunidades startup e replicou a fórmula pelo globo. Agora, Clark Dever, gestor de produto na Techstars, tem Portugal na mira.

“Estamos sempre interessados em chegar a sítios a que outros não chegaram  – ou não querem chegar”, diz Clark Dever, do lado de lá do monitor. E olhando para o percurso do norte-americano de 37 anos, que em 2019 assumiu o cargo de gestor de produto na aceleradora americana Techstars, percebe-se a afirmação. Perentório no que ao crescimento e desenvolvimento de startups diz respeito, Dever acredita no potencial das startups acima de todas as coisas; pela agilidade e pela destreza, as ideias sobrepor-se-ão à derrota trazida pela pandemia no mercado global, graças a um “otimismo militante”.

Em entrevista ao Observador, o fundador e mentor diz que há muita margem de manobra para as grandes ideias, critica a distribuição de investimento por parte das instituições de gestão de recursos e explica o modelo de sucesso para fazer florescer um ecossistema de startups, seguindo a estratégia que ele próprio desenvolveu ao longo de uma década na cidade de Buffalo, no estado de Nova Iorque. Pelo meio, Clark Dever fala da problemática portuguesa, afasta a ideia de falta de oportunidade e reitera que o problema, tal como noutros países é cultural. É necessária uma comunidade forte, que se veja como um todo e não como concorrente, da qual todos queiram fazer parte.

"Acreditamos que a capacidade de atingir objetivos está igualmente distribuída no mundo, mas as oportunidades não. Portanto, estamos sempre interessados em chegar a sítios a que outros não chegaram – ou não querem chegar –, e providenciar esse acesso à nossa rede global, dar às startups essa oportunidade"

É visto como um guru da mentoria. Como é que isto começou?
Estive envolvido na comunidade de startups de Buffalo ao longo dos últimos 10 anos e passei a maior parte desse tempo a construir empresas, como fundador ou membro de equipas muito iniciais, ou a aconselhar essas empresas. Ao longo desses 10 anos fiz provavelmente parte de 10 empresas diferentes desde a parte da formulação até ao financiamento série A. Com toda a dor e superação que isso trouxe aprendi algumas coisas e sempre me foi muito importante dar a mão aos que estão na escada comigo para os ajudar a subir. Quer seja alguém que acabou de sair da faculdade ou que é fundador pela primeira vez, de alguma forma esta tutoria sara as feridas que tive de aguentar.

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Em retrospetiva, acredita que é uma das partes mais importantes dos seus percursos?
Sou uma pessoa no caminho a ajudá-los na viagem. Até que faças parte da experiência de construir uma startup de elevado crescimento, há esta ideia de que o fundador é que faz andar as coisas e torna tudo possível. A realidade é que toda a inovação e crescimento vem das equipas, essas equipas podem ser de empregados mas também de mentores, consultores, pessoas que trabalham na comunidade para apoiar essas startups. É mesmo preciso um esforço de comunidade para lançar uma empresa de alto crescimento, porque a matemática é mesmo muito desafiante: é esperado que estas empresas cresçam 30% todos os meses ao longo de anos e isso é uma experiência quase impossível.

Olhando para o seu próprio percurso, e para as dores de que falou anteriormente, quais acredita terem sido as que o moldaram?
A primeira empresa que fundei foi de hardware eletrónico que é uma das startups mais difíceis de iniciar, ainda que não o soubesse na altura. O acesso ao capital é tão importante para essas empresas – ao contrário do que acontece com o software, em que há mais margem para erro –, porque, aqui, leva-se muito tempo a fazer as coisas caso falhes. Essa experiência de tentar criar algo a partir do nada, e toda a ajuda que recebemos de empresas maiores ou dos primeiro investidores anjo, isso teve um impacto tremendo. Sentir essa luta e frustração todos os dias, de ter esta ideia e perceber que “se ao menos tivesse x, y ou z conseguíamos.” Costumávamos dizer “não deixar pedra sobre pedra” na procura; procurámos tudo, candidatávamo-nos a quase todos os programas para ter os recursos para sobreviver. Isso foi uma luta.

Sobre o trabalho que desenvolve na Techstars, o Clark tem uma ideia formada acerca de Portugal. É um mercado ao qual estão atentos?
Na Techstars acreditamos que a capacidade de atingir objetivos está igualmente distribuída no mundo, mas as oportunidades não. Portanto, estamos sempre interessados em chegar a sítios a que outros não chegaram – ou não querem chegar –, e providenciar esse acesso à nossa rede global, dar às startups essa oportunidade. Em 2012 ou 2013, quando começámos, havia um acelerador e agora existem quase 50 globalmente. Com esse aumento de pegada, há mais oportunidades, as empresas podem recorrer a aceleradores mais próximos, já não precisam de ir aos Estados Unidos, há aceleradores europeus e temos a Techstars Anywhere, um acelerador virtual. A outra coisa é que temos a startups weekend, parte do nosso portfólio de marcas e isso acontece em centenas de cidades todos os anos.

"A minha crença, suportada por dados, diz que o capital surge quando há oportunidade. Em quase todas as cidades a que fui, existe um problema comum que é os fundadores queixarem-se da falta do investimento de Angels [investidores privados] e de os Angels dizerem que não há negócios suficientes. É preciso criar mais startups, mais oportunidades e o capital há-de lá chegar, porque há muito capital de risco para ser investido"

Disse que a Techstars vai a sítios onde outros não querem ir. Portugal é um desses sítios?
Não, acho que não, é só a forma como vejo as coisas. As startups de grande crescimento não são possíveis sem capital de risco, por norma. Claro que há exceções, há quem faça bootstrapping até ao crescimento elevado e isso é possível por causa da AWS e de todas as outras coisas, mas até à pandemia, e até agora, se olharmos globalmente, 80% do capital de risco está em São Francisco, Nova Iorque e Boston. Óbvio que isso está a mudar, mas esses investidores de risco preferem fazer negócios nessas comunidades, querem conhecer as pessoas e não investem fora disso. Isto tem, no entanto, vindo a mudar nos últimos 18 meses, com cada vez mais negócios a acontecer de forma virtual. Perceberam que não há diferença em investir via Zoom numa pessoa que é de São Francisco ou de Portugal, mas isso tem sido lento a mudar. Quando digo “onde outros não vão”, é mais sobre o facto de que investir fora representa mais um risco para estes investidores de risco e eles querem mitigar os riscos ao máximo.

Mas essa posição dos investidores pode contribuir para um certo negativismo por parte da comunidade portuguesa de startups em conseguir um investimento considerável.
Percebo, mas deixo um exemplo. Buffalo, em Nova Iorque, que é de onde sou, é uma cidade a que chamamos de cinturão de ferrugem [em inglês rust belt, uma cidade conhecida primeiramente pela manufatura], portanto todas as manufaturas abandonaram a cidade na década de 70 e esta está em declínio há meio século. O meu produto na Techstars é desenvolvimento de ecossistemas, portanto, ir até cidades de segunda, terceira ou quarta linha e ajudá-las a construir a sua comunidade orgânica de startups. Quando começámos em Buffalo, quando me contrataram, apareceram provavelmente umas 150 ou 200 pessoas nos eventos de startup. Nos 12 a 18 meses seguintes de trabalho, construímos uma comunidade Slack que tem 1800 pessoas e uma lista de email que tem 5000.

Como é que fizemos isto? Baseamo-nos na Boulder Thesis de Brad Feld que fala de quatro pilares e diz que os empreendedores devem liderar a comunidade startup, porque são estes os únicos que têm um compromisso de longo prazo. Caso contrário, a política, os impostos e o que seja mudam as prioridades e é necessária uma visão alargada. Há também os pilares da inclusão e diversidade, que são essenciais. Quer isto dizer que quem fizer parte da comunidade de startups ou que se considera parte, tem de ser bem-vindo. Nos Estados Unidos temos este problema que é: a nossa comunidade de startups é quase toda constituída por homens brancos ou asiáticos e, criando uma comunidade mais diversificada, aceleramos a inovação — 80% da inovação é pegar numa solução conhecida noutro problema e usá-la onde ainda não foi. Tendo uma comunidade inclusiva estamos a trazer estas ideias e a criar sinergias para formar startups. O último pilar é que o engagement precisa de ser contínuo; é preciso ter eventos semanais que obriguem a comunidade a encontrar-se. Assim que tudo isto se alinhar, começamos a ver crescimento.

A minha crença, suportada por dados, diz que o capital surge quando há oportunidade. Em quase todas as cidades a que fui, existe um problema comum que é os fundadores queixarem-se da falta do investimento de Angels [investidores privados] e de os Angels dizerem que não há negócios suficientes. É preciso criar mais startups, mais oportunidades e o capital há-de lá chegar, porque há muito capital de risco para ser investido. Se tiver boas ideias e uma comunidade que apoia as startups, é possível encontrar capital, desde que continue a entregar ideias.

Como é que as startups podem ajudar a economia agora?
Tenho um ponto de vista muito americano nisto e peço desculpa por isso mas, com a Covid, nós sofremos com uma taxa enorme de desemprego. Sei que muitos países europeus seguraram as pessoas, mas aqui não aconteceu. Tivemos um sistema direto de pagamentos com muitas falhas, deram pouco dinheiro às pessoas individualmente e isso criou um ímpeto para a criação. Em Portugal, talvez tivessem dinheiro mas tinham também tempo, porque os negócios abrandaram drasticamente e isso empurrou as pessoas a pensar e delinearem as suas ideias. É aqui que o ecossistema funciona como produto.

"Acredito que, numa economia global, se tivermos o desejo, há sempre bolsas de dinheiro. O tempo é muito caro, o capital é barato. Como fundador, resume-se tudo a olhar da forma mais abrangente possível para formas de dar início a alguma coisa"

Por causa do impacto da Covid estamos numa ótima posição para ajudar o processo de recuperação; os negócios sofreram, mas muita gente começou a aplicar as suas ideias ou foram forçados a ir de um sistema tradicional de negócio a um digital. Com isto, passaram de ter um produto que não conseguia ser escalado a um que pode competir no mercado global. Há muitas oportunidades agora para os governos regionais criarem a infraestrutura que suporta estas empresas que pivotaram este novo paradigma ou para as pessoas que deixaram os seus negócios para experimentar novas ideias. Acredito que é assim que o empreendedorismo vai liderar a recuperação porque vão existir quatro ou cinco vezes mais empresas do que existiam.

É certo que a pandemia fez disparar os números do empreendedorismo nos Estados Unidos, em parte pela falta de apoios. Em Portugal, esses mesmos apoios criaram um buraco financeiro que deu origem a um outro problema: a distribuição orçamental. E isso pode ter o efeito inverso.
Acredito que, numa economia global, se tivermos o desejo, há sempre bolsas de dinheiro. O tempo é muito caro, o capital é barato. Como fundador, resume-se tudo a olhar da forma mais abrangente possível para formas de dar início a alguma coisa. Se falarmos de um negócio de software, todos os operadores, seja Google, Amazon ou Microsoft têm milhares de milhões de dólares em créditos, basta, para isso, dizer que têm uma startup. Porque eles sabem que o retorno é quase garantido. Isso é um exemplo, mas tudo o que precisa de conseguir é chegar ao primeiro ponto e, depois, há toda uma imensidão de competições internacionais. Mas se conseguirmos resolver um problema de humanos, em que alguém está disposto a pagar-nos por isso, há muitas piscinas de dinheiro prontas e atentas. Eu venho de uma aceleradora, portanto, entrar em aceleradoras também é um selo de segurança. Se usar a Techstars, os investidores vêm isso e percebem que foi o escolhido por entre centenas de concorrentes e isso dá-lhe pedigree que comprova que consegue gerir um negócio de capital de risco. Este é o meu ponto de vista: estamos num mercado global, portanto não interessa onde está porque existe internet e há oportunidades aí.

Quais os negócios ou indústrias mais afetadas pela pandemia?
As empresas que estão a trabalhar nos últimos paradigmas geracionais de negócio. As que se adaptaram ou que pensaram em avançar para o futuro foram bem sucedidas mas as mais conservadoras, de logísticas, as empresas de transporte, por exemplo, essas não tiveram formas de mudar o modelo de negócio. Por outro lado, trabalho com uma startup de autocarros que usou a pandemia como oportunidade para se fundir com outras startups do mesmo ramo para conseguirem angariar capital. E usaram o tempo em que pararam para se concentrarem no negócio, para perceber como seriam os próximos cinco anos. A realidade é que, como fundador, a dura verdade que temos é que as pessoas no topo da empresa, os estrategas, se forem adaptáveis, a empresa sobrevive. É preciso ser militantemente otimista. Se não acreditar nisso, fazer parte de uma empresa de crescimento elevado não é para si. Outro erro comum dos fundadores é que vêm a receita como reflexo da sua aptidão para gerir uma empresa, o que não é a melhor forma. Porque podemos estar a fazer tudo certo mas chega a pandemia e o mercado esmaga a empresa. Portanto pode haver uma lomba mas se formos um bom líder, podemos recuperar. Isso é uma falácia e acaba com muitas empresas.

Acredita que, devido à pandemia, estamos a viver a mudança mais rápida de sempre no mundo empresarial?
Sem dúvida. Mas é estranho, é uma cara ou coroa. Eu estou a tutorar entre 40 e 100 empresas de forma ativa mensalmente e de repente ligam-me de diversos pontos a dizer “Clark, não consigo lidar com o inbound” porque forçou todos os clientes que estavam relutantes a experimentar o negócio online a serem forçados a aceitar as novas condições. E, do outro lado, tinha pessoas a dizer-me “não recebo uma chamada há dois meses”. Metade das pessoas tiveram de escalar a força de trabalho e a operação, a outra metade teve de pivotar o negócio inteiro para sobreviver. E depois olhamos para exemplos como a Zoom que, já sendo grande, cresceu 4000%.

Se pensarmos nisto, todas as avós do mundo estavam a fazer videoconferências, eles engoliram o mercado, temos de ter isso em conta. A televisão foi inventada e levou 10 ou 20 anos para que 80% das casas tivessem um televisor, com os iPhone, levou dois ou três anos até que 80% das casas tivessem um smartphone. Com a pandemia, a Zoom estava ali e, de repente, 80% da população do mundo estava a usar o serviço. A internet compactou a linha temporal da adoção de muitas coisas, o que é bom se formos uma empresa de elevado crescimento. E, antigamente, tínhamos de construir um centro de dados, o que obrigava a um investimento gigante, hoje, com a oferta na nuvem, é muito fácil crescer. Eu tenho 37 anos e é ótimo ver esta evolução rápida entre o analógico e o digital. É uma altura incrível para estar vivo.

"Pela sua natureza, as startups são mais ágeis, com equipas mais pequenas. E aqui entra outra falácia muito comum na comunidade startup: que as grandes empresas podem chegar e roubar as ideias. Se uma grande empresa te roubar uma ideia é porque a tua startup era disfuncional e não estava destinada ao sucesso"

O que é que Portugal pode estar a fazer mal relativamente ao ecossistema de startups? O que é que falta?
Geralmente, o que as pessoas fazem de errado é que se concentram em grandes soluções institucionais para resolver os problemas da comunidade de startups. As instituições, sejam elas faculdades ou associações financiadas por burocratas, pensadas para ajudar startups, são parte da solução mas raramente é o capital entregue diretamente aos organizadores base da comunidade; as pessoas que organizam os grupos de Python, as pessoas que estão a fazer os pitches, os fundadores que criaram o clube do café para reunir gente. Universalmente, essa é a peça que falta.

Toda a gente se foca em agarrar em empresas que já existem e tentar dimensioná-las através de meios institucionais. E o que é preciso, na verdade, é aumentar a densidade do gráfico social. É isso que o produto Techstars faz, criar mais investidores angels, contactando pessoas que tenham o capital e ensinando-lhes o que são portfólios, investimentos e crescimento. Focamo-nos em juntar fundadores, encontrá-los e juntá-los numa sala Slack privada, de forma a que falem entre eles. Fazer eventos específicos para fundadores e, por último, abrir a inclusão: encontrar todas as pessoas que achem que as startups são fixes e pô-los na mesma sala, porque essas pessoas estão à procura de trabalho e vão levar conhecimento de negócios tradicionais. Não conseguimos isso dependendo apenas de apoios institucionais.

A coisa que mudou o jogo em Buffalo foi que, ao longo de um ano, em todas as reuniões que tive, liguei duas vezes à pessoa com quem estava a falar, uma coisa tão simples. Ligar uma pessoa nova a outras duas e ensiná-las a fazer o mesmo. Apresentei 1000 pessoas num ano dentro da nossa comunidade, e isso mudou tudo. Quando olhamos para as organizações de apoio ao empreendedorismo, estas têm de ser gatekeepers: estão responsáveis por recursos que lhes foram dados, então estão a tentar escolher os vencedores. Mas, na realidade as startups unicórnio, como a Uber, por exemplo, se nos fizessem o pitch e explicassem a ideia por detrás da empresa, nenhuma organização ou governo no seu perfeito juízo ia investir numa coisa assim. Tecnologias de mudança de paradigma parecem loucuras, portanto, a única forma de permitir que essa ideia floresça é removendo os gatekeepers, ligando as pessoas diretamente a quem precisam de ser ligados. E isso é o que aconteceu em Buffalo e não é difícil de fazer.

Então é uma fórmula replicável em qualquer país?
Sim, porque é um problema sistémico. A natureza das entidades burocráticas é que sentem uma obrigação em comandar os recursos mas, muitas vezes, estas não têm a experiência apropriada para fazer os julgamentos certos. Mas é possível criar um valor comum na comunidade, desde que todos possamos ativar a escuta ativa e, com isso ajudemos outra pessoa. Por exemplo, eu posso não conseguir resolver o teu problema mas posso conhecer alguém que o pode.

Mas a questão da competitividade não vai ser um entrave à comunidade?
Perguntam-mo muitas vezes, mas há aí uma falácia muito comum. A Techstars tem este valor que é o Give First [dar primeiro]. Não é altruísmo, mas é a ideia de que uma maré alta levanta todos os barcos e se dermos, eventualmente é-nos retribuído. Claro que são necessários alguns paladinos na comunidade para tornar isto válido, pessoas com nome, com experiência, que comprovem os resultados e ajudem a normalizar a ideia. Mas a verdade é que, muitas vezes, as pessoas que apresento, são concorrentes: têm pontos de vista, clientes e ideias de negócio diferentes. Contudo, quando percebem isso, muitas vezes são a solução perfeita uns para os outros. E quando vão angariar financiamento, o primeiro pode não o conseguir mas o vizinho consegue e isso é bom para os dois porque há troca de informação, de valores, ninguém fica para trás porque o objetivo é que todos cresçam. Para isto, é preciso ter uma filosofia de abundância, especialmente depois da pandemia.

Acha que as startups estão mais preparadas para enfrentar o que resta da pandemia e o pós?
Sim. Pela sua natureza, as startups são mais ágeis, com equipas mais pequenas. E aqui entra outra falácia muito comum na comunidade startup: que as grandes empresas podem chegar e roubar as ideias. Se uma grande empresa te roubar uma ideia é porque a tua startup era disfuncional e não estava destinada ao sucesso. Tu podes pivotar o teu negócio umas quatro vezes até que uma grande empresa tenha uma reunião sobre se vai criar uma unidade para entrar no teu ramo. A forma como as grandes empresas matam startups não é por lhes roubarem ideias – tirando o Facebook, talvez, mas mesmo assim eles acabam por adquirir o teu concorrente e “aparafusá-lo”, porque sabem que não conseguem construir algo assim em tão pouco tempo. Ou o equivalente do Twitter.

As grandes empresas matam as startups acidentalmente porque não se apercebem de que são elefantes. O que vejo as startups fazerem com as empresas é afinarem um produto destinado a estas grandes empresas e, inevitavelmente, criam expectativas de que facilmente são destruídas, porque a pessoa que ficou de responder ao email foi de férias e a ideia cai. E de repente, aquele milhão de dólares que podia significar o mundo para a startup, e que para a grande empresa é só uma conta da luz, acaba por não chegar. É assim que eles matam startups, Mas, honestamente, acredito que a agilidade deixa as startups numa ótima posição neste mundo pós-pandemia. É uma ótima altura. Nascer numa altura de escassez faz com que seja mais eficiente. No entanto, há que ter cuidado com outra coisa que também pode destruir uma startup, que é receber um investimento avultado demasiado rápido e investi-lo mal. Subitamente compram um escritório maior, t-shirts estúpidas e queimam dinheiro assim.

"A maior parte das pessoas na América e no mundo são escravas de um salário, estão presas neste circuito económico em que não têm liberdade individual, têm de aparecer e trabalhar todos os dias. Nos Estados Unidos há duas formas para que uma pessoa de classe baixa possa ganhar alavancagem: uma é através da compra de imobiliário, a outra é o capital de risco. Mais nada"

As grandes empresas podem aprender alguma coisa com as startups?
Acredito que é por isso que, em comunidades bem sucedidas de startups, há boas relações entre as empresas e as startups. Essas empresas põem de parte dinheiro e recursos, têm diretores executivos de inovação que devem manter uma interação contínua com startups. Isto porque há um ciclo de vida: como fundador, construo para seis ou doze meses, consigo algum capital mas não encontro um encaixe de mercado e fico sem dinheiro. Nessa altura vou estar exausto. Sabes o que é uma ótima solução? Vai, engorda com o dinheiro das empresas, recebe um ordenado de empresa, e a empresa beneficia disto, porque tu trazes um conhecimento de mercado, tu vês o futuro desse ramo e vais torná-los consideravelmente mais rápidos como empresa na capacidade de lançar um produto. Fazes o teu dinheiro, aprendes o b2b e há um problema que vais sempre querer resolver. Depois pensas “e se criasse uma empresa para resolver isto?”. Crias uma spin-off e voltas a fazê-lo. Este ciclo de fundadores que transmitirem conhecimentos às empresas, tornando-as mais ágeis, e as empresas, que têm mais dinheiro, pagam às pessoas um valor acima do mercado, que permite juntar dinheiro para poderem sair com a expertise e a conta recheada e depois tentarem de novo é o caminho.

E o contrário, vermos pessoas a sair de grandes empresas para fundar startups?
Elas saem com todo o conhecimento necessário, não é? Há muitas startups que saem de empresas porque nunca conseguiriam o financiamento dentro dessa empresa para solucionar um problema que eles viam todos os dias. “E se criássemos isto para resolver aquele problema de A e B?” Falam com os colegas, os colegas alinham, constrói-se e, de repente, cria-se uma startup de 50 milhões de dólares, que é comprada pela empresa da qual saíste. Pessoalmente conheço três ou quatro pessoas que lutaram internamente para construir um produto dentro de uma empresa, não conseguiram autorização, então saíram, construíram e venderam-no de volta quatro ou cinco anos depois por milhões de dólares. As grandes empresas não estão pensadas para criar produtos e inovar: todo o mecanismo de crescimento é conglomeração. Portanto, não havia qualquer chance, dentro de uma empresa, de construir aquele produto. Há demasiadas camadas de burocracia. E além disto, a verdade é que um empregado não se esforçaria assim tanto porque não tem um incentivo monetário mas, ao sair, é “vai ou racha”; ou consegues ou vais procurar outro trabalho.

Como é que conseguimos emancipar-nos a esse ponto?
A razão pela qual estou em startups de elevado crescimento é porque cresci numa família de classe média baixa, havia campos de milho ao pé da escola e os computadores deram-me acesso ao mundo. Nos Estados Unidos tivemos escravatura durante muito tempo e eu vivia no norte, onde havia uma organização chamada Underground Railroad, que servia para encaminhar escravos para o Canadá de maneira a serem libertados. Acredito que os negócios com base em investimentos de risco são isso. A maior parte das pessoas na América e no mundo são escravas de um salário, estão presas neste circuito económico em que não têm liberdade individual, têm de aparecer e trabalhar todos os dias. Nos Estados Unidos há duas formas para que uma pessoa de classe baixa possa ganhar alavancagem: uma é através da compra de imobiliário, a outra é o capital de risco. Mais nada. Para tudo o resto é necessária uma garantia pessoal e não vai ter acesso a financiamento, porque não tem dinheiro mas, se tiver uma boa ideia, conseguir tração e fizer isto com um computador barato e crédito Amazon ilimitado, é muito poderoso. Isso permite às pessoas independência financeira e crescimento. Eu não me considero um bom fundador, mas sou um bom educador sobre startups. É como o ditado “quem não sabe fazer, ensina”.

O sistema financeiro e político dos Estados Unidos está bem estruturado para que as pessoas sejam bem sucedidas? Ou devia haver uma contribuição mais direta do Estado?
O sistema americano está desenhado para apoiar o incumbente porque existem os lóbis. Há o exemplo da Uber, que foi muito bem sucedida mas que teve de lutar legalmente com tudo o que tinha contra os lobistas dos táxis porque os ricos, especialmente em Nova Iorque, detinham o serviço. Há inovação e pesquisa mas, a menos que tenhas uma empresa do ramo da defesa – no qual o Estado americano investe grande parte do orçamento –, são gráficos muito diferentes. Acho que é uma coisa mais cultural do que governamental, que empurra a inovação nos Estados Unidos. Existe este ideal cultural que, por muita treta que tenha, a propaganda foi instituída na educação das pessoas há tanto tempo e é tão boa que toda a gente acredita que os Estados Unidos são uma meritocracia, no excecionalismo americano e nunca ninguém comparou o país com o resto do mundo. Mas porque existe esta mentalidade, toda a gente pensa “isto é o melhor sítio do mundo”. Eu falei de otimismo militante, é preciso acreditar com toda a convicção que vais ter sucesso e que o mundo precisa do teu produto e faz a vida das pessoas melhor. Porque se não acreditares nisso, perdes a fé e questionas o valor. Talvez seja essa a vantagem competitiva dos americanos, porque foram levados a acreditar nisso desde cedo.

"Perguntaste-me o que estava errado com Portugal e desviei-me porque não é um problema de enquadramento, é cultural. E não te posso dizer isso porque não conheci 50 fundadores na comunidade mas, em Taiwan, o problema era uma base cultura de permissão em que toda a gente estava dependente da aprovação de alguém mais velho"

Então o sonho americano é pura propaganda?
Totalmente não, porque acontece, mas é como a galinha e o ovo: acontece porque a história é contada ou é porque a história é contada que acontece? Não sei mas também não interessa porque, no final do dia, a América lidera muita tecnologia no mundo dos negócios. Por outro lado, sempre que fazemos desenvolvimento de ecossistemas noutro país, há sempre uma barreira cultural. Perguntaste-me o que estava errado com Portugal e desviei-me porque não é um problema de enquadramento, é cultural. E não te posso dizer isso porque não conheci 50 fundadores na comunidade mas, em Taiwan, o problema era uma base cultura de permissão em que toda a gente estava dependente da aprovação de alguém mais velho. O conceito do qual te falei, o Give First, esta abordagem altruísta, não existia na comunidade até o termos introduzido e reforçado, era tudo muito transacional: “Eu ajudo-te em troca de x dólares”. Todas as comunidades têm estas coisas culturais que não se alinham com a forma de uma comunidade bem sucedida. Portanto vais, mapeias a comunidade, mapeias os valores sociais e comparas com comunidades bem sucedidas. Aí percebes o que tens a fazer. Não podes mudar a cidade toda, mas podes mudar a comunidade, e aí, com base no sucesso deste valor, aumentas o sucesso da adoção do valor, e provas que resulta.

Quais as lições que as startups levam com a pandemia?
Pensar globalmente. A pandemia espalmou o mundo. Eu sou um organizador de comunidade aqui há uma década, nunca tinha tido oradores internacionais. De repente, todos os nossos eventos têm um. Pensar globalmente não apenas no mercado em que estás, mas também no acesso a recursos. Descobre a melhor pessoa da tua indústria e marca uma call no Zoom porque, em 15 minutos, aprendes mais sobre a tua empresa do que aprendeste nos últimos meses. A seguir é este movimento na direção do trabalho remoto, mais uma vez sobre a questão da globalização, a ideia de que não precisas de trabalhar com as quatro melhores pessoas da tua cidade mas que, ao invés disso, podes trabalhar com as quatro melhores do mundo. Mudar essa mentalidade e construir a empresa para operar virtualmente cria uma agilidade que não existia. Claro que há vantagens em estar presencialmente, mas preferia trabalhar com a melhor pessoa do mundo ao invés da agilidade. Por último, a pandemia trouxe o otimismo militante, em que as pessoas percebem que fazem parte da história, porque sobreviveram e isso dá-te força.

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