Não fossem as coisas como elas são, não restariam dúvidas de que aqueles risos eram de puro nervosismo. Afinal de contas, Mike Pence dizia ali o indizível, mas também o óbvio aos olhos de todos, sobre a sua parceria com Donald Trump. “Nós chegámos até aqui por caminhos muito diferentes”, disse o vice-Presidente no discurso que marcou a terceira noite da Convenção do Partido Republicano.
“Muito diferentes” é por si só uma expressão vincada, mas neste caso até pode ser considerada um eufemismo.
Donald Trump chegou à política em 2015, vindo de uma vida que começou no imobiliário mas que ganhou destaque nos casinos e nos reality-shows em que este homem de três casamentos e libertino público e assumido figurava — por vezes com um discurso difícil de entender, perante os vários “piiii” que lhe cortavam a fala. Mike Pence tem um caminho diferente: a sua voz grave e bem colocada ouviu-se durante anos a fio num programa de rádio assumidamente conservador, feito a partir do estado do Indiana, do qual viria a ser congressista e mais tarde governador — todo um percurso feito sempre com uma Bíblia na mão e com a mesma aliança no dedo.
Não foram risos de nervosismo nem quando o prudente Mike Pence referiu a personalidade do Presidente dos EUA, várias vezes intempestivo. “Ele faz as coisas à sua maneira, nos seus próprios termos. Não deixa passar quase nada. E quando tem uma opinião o mais certo é que a expresse”, disse, arrancando risos à plateia. “Sem dúvida que ele tem feito as coisas de forma interessante!”
Mas por que razão não eram aqueles risos expressões de nervosismo quando o número dois admitia, com uma ponta de humor, o contraste que é o seu percurso com o do seu número um, homem de personalidade peculiar? Porque as coisas são como são. E elas são assim: dificilmente este número um arranjaria um número dois tão leal quanto Mike Pence. “Os vice-Presidentes são por norma leais, mas não me recordo de nenhum vice-Presidente em toda a minha vida que tenha ido ao ponto a que Mike Pence chegou”, disse Joel Goldstein, especialista no estudo da vice-Presidência dos EUA, numa entrevista ao Observador no início de agosto.
Isso viu-se ao longo dos últimos quatro anos em que o vice-Presidente acompanhou Donald Trump e ficou mais do que provado no discurso que encerrou a terceira e penúltima noite da Convenção do Partido Republicano, em que o vice-Presidente fez uma defesa inequívoca do Presidente — atribuindo-lhe todos os louros num discurso em que, sem rejeitar o tom anti-globalista, Mike Pence puxou dos seus galões de conservador da escola de Ronald Reagan.
“Nos últimos quatro anos tenho visto como este Presidente, que sofreu ataques incessantes, se levanta a cada dia para lutar pelas promessas que fez ao povo americano”, disse Mike Pence. “O Presidente Donald Trump cumpriu a sua palavra junto do povo americano. Numa cidade conhecida por aqueles que falam, o Presidente Trump é um fazedor.”
Um por um, Mike Pence abordou todos os temas quentes da atualidade norte-americana — provando estar ao lado do Presidente em cada um deles. Entre os destaques do discurso do antigo governador do Indiana está a política internacional. Fugindo de temas mais controversos ou inacabados, como as negociações infrutíferas e inconclusivas com a Coreia do Norte ou a erosão da relação dos EUA com os seus aliados da NATO, Mike Pence focou-se sobretudo no Médio Oriente.
“Sob a orientação deste comandante-em-chefe, levámos a luta contra o terrorismo islamista radical nos nossos termos ao território deles”, disse, referindo a derrota militar do autoproclamado Estado Islâmico no Iraque e na Síria e da morte do seu fundador, Abu Bakr al-Baghdadi, além da decisão de atacar fatalmente Qasem Soleimani, major-general da Guarda Revolucionária Islâmica e por isso importante autoridade militar do Irão, nos primeiros dias de 2020.
“Eu estava lá quando o Presidente Trump deu a ordem de abater o terrorista mais perigoso do mundo”, disse. “O principal general do Irão já não vai fazer mal a nenhum americano porque Qasem Soleimani desapareceu.”
Ainda na política internacional, Mike Pence atirou contra um dos alvos declarados desta terceira noite da Convenção do Partido Republicano: a China e o Partido Comunista Chinês (PCC). E, nessa senda, juntou um terceiro: Joe Biden. “Ao mesmo tempo nós lutámos por um comércio livre e justo, com este Presidente a impor-se perante a China e a pôr um fim à era da rendição económica, Joe Biden tem sido o cheerleader da China comunista”, atirou Mike Pence. “Ele quer retirar todas as tarifas que estão a equilibrar o campo do jogo para os trabalhadores americanos.”
Um duelo Trump vs. Biden, narrado pela voz radiofónica de Pence
Ao longo dos 37 minutos do seu discurso (o mais longo desta convenção e cuja duração deverá ser, expectavelmente, excedida apenas por Donald Trump esta quinta-feira), Mike Pence transitou habilmente entre o elogio militante a Donald Trump e as críticas afiadas a Mike Pence. Muitas vezes, acabou por compará-los perante vários temas.
Na economia, Mike Pence propôs aos norte-americanos que pensassem: “Em quem é que confiam para reconstruir a economia? Num político de carreira que presidiu à recuperação económica mais lenta desde a Grande Depressão ou num líder com provas dadas que criou a melhor economia do mundo?”. A resposta nem era necessária, pois já se fazia adivinhar, mas Mike Pence deu-a na mesma: “A escolha é clara. Para trazer a América de novo para cima precisamos de mais quatro anos de Donald Trump na Casa Branca”.
Repare-se que Mike Pence disse “trazer a América de novo para cima” — sinal de que ele próprio reconhece que a crise pandémica não só atrasou como reverteu o crescimento económico dos últimos anos. Mas esse reconhecimento não chegou a um mea culpa pela estratégia dos EUA para combater a Covid-19 (tarefa que lhe foi oficialmente atribuída, algo a que o próprio não fez menção no discurso), que já infetou mais de 6 milhões de pessoas no país, dos quais 183.653 morreram.
Em vez disso, Mike Pence referiu como “o Presidente tomou a medida sem precedentes de suspender todo o tipo de viagens da China” — uma medida que, na verdade, foi adotada por 38 países antes dos EUA. E também aqui atirou contra Joe Biden, que no seu discurso da Convenção do Partido Democrata disse que não “não há nenhum milagre a caminho” no que toca à pandemia. “O que o Joe parece não compreender é que a América é uma nação de milagres”, atirou o vice-Presidente, dizendo que os EUA estão “no caminho” para ter a primeira vacina para a Covid-19 “no final do ano”.
Outro tema que voltou a merecer comparações entre Donald Trump e Joe Biden foi o das tensões raciais e da violência policial junto das minorias étnicas dos EUA. Enquanto Mike Pence discursava, pela terceira noite consecutiva a cidade de Kenosha, no Wisconsin, foi palco de manifestações e também de motins na sequência da morte de Jacob Blake — um afro-americano atingido por sete tiros nas costas por dois polícias durante uma detenção no momento em que voltava para o carro durante uma detenção. Foram registadas outras duas vítimas mortais, na sequência de um tiroteio do qual o único suspeito é um menor de 17 anos que, com uma metralhadora de grande capacidade, se deslocou desde o estado do Illinois até Kenosha para se opor às manifestações e aos motins.
“O Presidente Trump sempre apoiou o direito dos americanos a protestarem pacificamente. Mas motins e saques não são manifestações pacíficas. Derrubar estátuas não é liberdade de expressão”, disse, para depois atirar contra o candidato democrata. “Na semana passada, Joe Biden não disse uma única palavra sobre a violência e o caos que está a tomar as cidades deste país. Por isso, permitam-me que seja claro: a violência tem de parar, seja em Minneapolis, em Portland ou em Kenosha. Foram demasiados os americanos que morreram a defender a nossa liberdade para que agora outros americanos se atinjam uns aos outros. Vamos ter lei e ordem nas ruas deste país para cada americano, de cada raça, religião e cor.”
Mike Pence acusou ainda Joe Biden de querer cortar o financiamento da polícia — uma acusação falsa segundo o Politifact, uma vez que aquilo que o democrata defendeu foi a transferência de funções que não são estritamente policiais, como as campanhas contra o uso de drogas e outros serviços sociais. “Joe Biden está pronto para apostar nas mesmíssimas medidas que têm levado à divisão nas cidades americanas”, disse. “A verdade nua e crua é esta: vocês não estarão seguros na América de Joe Biden. E, com o Presidente Trump, vamos estar sempre ao lado do lado azul e não vamos tirar fundos à polícia. Nem agora, nem nunca.”
No final do discurso — que decorreu no Forte McHenry, em Baltimore, local emblemático da Guerra Anglo-Americana de 1812 e que inspirou a letra do hino dos EUA —, Donald Trump juntou-se ao seu número dois e, diante dele, bateu-lhe palmas de pé. “Obrigado”, disse-lhe. Leal como sempre, Pence respondeu-lhe: “Obrigado eu”.