Os inspetores do SEF acusados da morte de Ihor Homeniuk ainda não quebraram o silêncio sobre o caso. Mas os requerimentos feitos pelos seus advogados ao longo dos nove meses que se seguiram ao crime levantam o véu sobre as suas versões do que aconteceu: apontam o dedo aos vigilantes por não terem socorrido o cidadão ucraniano e indicam até uma testemunha, uma cidadã brasileira, que terá presenciado diversos episódios de violência entre Ihor Homeniuk e outras pessoas retidas no Centro de Instalação Temporária do aeroporto. Contam também que foram chamados por um superior hierárquico para algemar um passageiro violento e admitem que daí podem “eventualmente” ter resultado lesões no cidadão ucraniano — mas sem qualquer intenção de provocar a sua morte.
Logo depois de terem sido detidos, no final de março, os três inspetores do SEF foram a tribunal para que a juíza de instrução Cláudia Pina os pudesse ouvir e, depois, aplicar as medidas de coação — que acabou por ser de prisão domiciliária com pulseira eletrónica. Só que nenhum deles quis responder às perguntas da magistrada — um direito que todos os arguidos têm. A resposta de Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva foi igual: “Por indicação do meu advogado, não vou prestar declarações”.
Os três suspeitos apenas responderam às perguntas feitas logo de seguida pelos seus advogados — perguntas essas relacionadas com os seus rendimentos e com os familiares que tinham a seu cargo e que serviram, no fundo, para justificar a não aplicação de prisão preventiva. Sobre o caso, os inspetores disseram apenas que o mundo, para eles, tinha desabado e que queriam colaborar com a Justiça, sabe o Observador.
O inspetor Duarte Laja lembrou que “em 16 anos de atividade policial” nunca teve “um processo disciplinar, uma admoestação, uma reclamação” quer de passageiros, quer de colegas. Na mesma linha, o inspetor Luís Silva disse que não sabia “nada” sobre a situação que o tinha levado a tribunal e que é polícia há 17 anos sem ter tido “a mínima reclamação”. “Nenhum de nós teve”, completou o arguido Bruno Sousa. “Todos temos a folha limpa. Só queremos colaborar com a Justiça“, acrescentou ainda Bruno Sousa, falando pelos três, até porque são todos “do mesmo curso”. Para rematar, Duarte Laja disse à juíza que nenhum deles percebe “como é que chega a certas conclusões” que “realmente” os afetam “a nível profissional e a nível pessoal”. Depois disto, silêncio total.
Como a PJ reconstituiu o homicídio de Ihor a partir das imagens de videovigilância do SEF
Advogada de Luís Silva diz que vigilante que acusou inspetores devia responder pelo crime de omissão de auxílio
Foi em reação às declarações de uma das vigilantes do Centro de Instalação Temporária (CIT) do aeroporto de Lisboa que um dos inspetores apontou outro responsável pela morte de Ihor Homeniuk, que não ele. Ouvida pela PJ, essa vigilante afirmou que desconfiou logo dos três inspetores, apesar de não ter presenciado quaisquer agressões, porque “por vezes usam a força para tentar acalmar estas pessoas”. Mas o inspetor Luísa Silva considera que era ela quem devia ser constituída arguida.
Num requerimento apresentado pela sua advogada, Maria Manuel Candal, em reação às declarações da vigilante, o inspetor considerou que ela era suspeita de pelo menos um crime de omissão de auxílio. Isto porque, na sua tese, o cidadão ucraniano encontrava-se sob os cuidados e vigilância dos seguranças do CIT quando morreu. O inspetor sublinha que “o infeliz Ihor [Homeniuk] veio a falecer pelas 18h40 do dia 12 de março, cerca de 10 horas após a saída dos arguidos” da sala onde se encontrava.
Em resposta, o MP discordou de que houvesse suspeitas em relação à vigilante, uma vez que os seguranças do CIT apenas interagem com os passageiros para servir refeições e qualquer outro assunto, como uma má disposição que carecesse de cuidados médicos, é da responsabilidade do SEF. Aliás, o MP lembra que foram os vigilantes que alertaram o diretor de fronteiras de Lisboa quando, pela manhã do dia 12 de março e ainda antes das alegadas agressões, encontraram Ihor Homeniuk deitado num colchão, com as pernas amarradas e com a cara e o nariz inchados.
Mais tarde, depois das alegadas agressões que motivaram a sua morte, alguns vigilantes dizem que tentaram colocar Ihor Homeniuk em cima do colchão, mas ele começou a gemer e optaram por deixá-lo no chão, por receio de lhe causar mais dores, recorda o MP. Foi aliás a vigilante que prestou as declarações à PJ que motivaram esta reação da advogada quem deu água e comida ao cidadão ucraniano e que o foi visitar várias vezes por perceber que ele estava “em agonia”, aponta ainda o MP.
A vigilante acabou por não ser constituída arguida porque, segundo considerou o tribunal, o inspetor ou a sua advogada não têm “legitimidade para requerer a constituição de arguido”. A ser feito, seria durante a inquirição — o que não aconteceu.
Advogado de Duarte Laja indicou cidadã brasileira que terá assistido a agressões a Ihor com “intervenção de terceiros”
Também num requerimento, o advogado de Duarte Laja, Ricardo Serrano Vieira, afirmou que o inspetor sabia de uma cidadã brasileira que tinha estado no CIT quando Ihor Homeniuk morreu e que “presenciou diversos episódios de violência entre o falecido e outros cidadãos ali presentes assim”. Não refere que “cidadãos” são estes, mas garante que a mulher assistiu à “intervenção de terceiros que não o arguido”.
Neste sentido, o advogado Ricardo Serrano pediu ao SEF que indicasse a morada desta cidadã brasileira para que pudesse ser inquirida como testemunha. O SEF, sabe o Observador, já forneceu todos os dados em relação a esta mulher que chegou a Portugal a 20 de janeiro e que ficou no CIT até 19 de março, data em que foi emitido visto especial.
Como a autópsia e uma queixa anónima denunciaram o homicídio de Ihor Homeniuk no aeroporto de Lisboa
Inspetores dizem que um superior lhe pediu para algemar passageiro violento. Negam que marcas de botas no corpo tenham sido provocadas por eles
Ao longo deste novesmeses, em determinados momentos, os arguidos têm apresentado argumentos para negar a sua responsabilidade na morte de Ihor Homeniuk. Um deles diz respeito a uma ferida, detetada na autópsia, com uma marca muito semelhante à de uma bota habitualmente usada por militares. A advogada de um dos inspetores lembra que, pelo que é possível perceber pelas imagens recolhidas pelas câmaras de videovigilância, nenhum deles calçava botas tipo tropa, mas antes calçado desportivo.
Num requerimentos, é explicado ainda que os arguidos foram chamados por um superior hierárquico para algemarem “um passageiro que se apresentava particularmente violento”. “Fazem-no então, não por sua própria iniciativa, mas por terem recebido ordens”, indica a advogada.
Ainda assim, fizeram-no de acordo com “as normas orientadoras de tal procedimento” e com “os instrumentos necessários” para tal. Se desse ato “resultaram eventualmente lesões para o ofendido”, isso não prova “qualquer voluntariedade ou intencionalidade por parte dos arguidos” e que tivessem “em qualquer momento admitido que de tais lesões pudesse vir a decorrer a morte” de Ihor. Utilizaram, asseguram “apenas a força indispensável”.
A advogada também levanta a suspeita em relação aos vigilantes que ali se encontravam, lembrando que, já depois de os três inspetores terem deixado o CIT, foram “constantes” as “idas e vindas” deles para a sala onde estava Ihor Homeniuk. Não só dos vigilantes, mas também de uma outra inspetora do SEF.
O que viram (e contaram à PJ) os primeiros socorristas a chegar junto de Ihor Homeniuk
Todos estes elementos desenham um esboço daquela que será, provavelmente, a estratégia de defesa dos arguidos quando o caso chegar a tribunal. O julgamento começa já a 20 de janeiro.