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Texto e fotografias dos enviados especiais do Observador à Ucrânia, Cátia Bruno e João Porfírio
Há menos de uma semana, Iuliia Mendel estava a ser gozada nas redes sociais, acusada de histeria e de estar a promover o pânico. “No nosso programa de televisão, tivemos um momento em que disse que tinha uma mala de emergência pronta para sair e expliquei o que lá tinha dentro. Nas redes sociais gozaram connosco, fizeram todo o tipo de piadas sarcásticas… Acho que ontem e hoje já não acham piada.”
A jornalista ucraniana e antiga assessora de imprensa do Presidente Volodymyr Zelensky encontra a equipa do Observador em Lviv, 15 minutos depois de chegar à cidade. Veio com o namorado, Pasha Kukhta, num carro, seguidos de perto por Yevgeny Kiselyov — histórico jornalista russo galardoado com um International Press Freedom Award pelo seu trabalho crítico em televisão desde os anos 90 — e a sua mulher, que vinham noutro carro atrás deles. Saíram de Kiev há mais de 20 horas e vieram a conduzir pelas estradas entupidas, quase sem pausas.
A precipitação dos que estavam na capital para a zona ocidental do país em poucas horas explica-se pela fé que mantinham até ao fim de que a Rússia não levasse a cabo uma invasão desta dimensão. “A maioria dos ucranianos não acreditava numa guerra total de grande escala”, resume Iuliia. “E é compreensível — quem podia acreditar? É terrível pensar que a Rússia ia bombardear Kiev. Mas eu tenho alguns contactos no estrangeiro e deram-me informação que me fez acreditar nisso.”
Apesar disso, tentou manter-se na cidade até à última. Quando uma zona residencial perto do seu bairro foi bombardeada, Iuliia tomou a decisão de partir. “Acordei aos gritos com aquele som, em pânico. Não queria acreditar”, recorda agora, menos de 24 horas depois. Consigo, trouxe o seu gato, que espera no carro, e alguma bagagem. Mas trouxe também um grande sentimento de culpa por ter partido, ao contrário do seu Presidente, que tem anunciado que continuará junto da resistência popular na capital.
“Nós queríamos ficar, mas qual é o objetivo? Sermos mártires? Acho que sou mais útil aqui para dar conta do que está a acontecer na realidade”, justifica ao Observador a jornalista. Nas últimas horas, esteve em contacto com meios de comunicação de todo o mundo: alguns dos mais famosos, como o Washington Post, mas também jornalistas de locais tão distantes como Espanha, Austrália e até Índia. “Mas tenho receio. Acho que as pessoas não vão compreender, vão achar que fomos cobardes e que devíamos ter ficado”, acrescenta, antes de começar a chorar.
Virando-se de costas para o namorado Pasha — que se senta a seu lado enquanto tomam um café para continuar a conduzir —, Iuliia baixa a voz para ele não ouvir e confessa que têm estado em desacordo sobre o que fazer a seguir. Pasha quer regressar a Kiev e juntar-se à resistência de armas na mão. “Acho que estamos a aguentar-nos melhor do que a Rússia pensava, há esperança”, comenta Pasha com o Observador, pouco depois. “Como podem ver, ele é uma pessoa muito otimista…”, reage Iuliia, agora já sem lágrimas.
“Sukiny deti”. Os “filhos da mãe” dos compatriotas russos de Yevgeny, que se sente ucraniano
O grupo está numa pausa para descansar antes de seguir para outra cidade da zona ocidental da Ucrânia, cujo paradeiro preferem não revelar. “Yevgeny, veja isto”, diz Iuliia ao camarada de profissão russo, enquanto lhe passa para a mão o smartphone que mostra as imagens de destruição de um bairro residencial em Kiev. “Sukiny deti!”, responde, enquanto tira os óculos para ver melhor o vídeo ao perto. “Ou seja, filhos da mãe”, esclarece ao Observador, traduzindo do russo para inglês.
Este antigo apresentador da televisão russa abandonou o seu país em 2008. Antes disso, já se tinha despedido da NTV quando esta foi comprada pela Gazprom, a empresa estatal russa de gás. Tornou-se diretor da TV6, mas o regime de Putin recusou renovar-lhe a licença para emitir. Nessa altura, Yevgeny decidiu fazer as malas e partir para a Ucrânia, por considerar que já não era possível continuar a fazer jornalismo independente na Rússia. Agora, reserva as palavras mais duras para os seus próprios conterrâneos.
“Já não me sinto russo”, explica ao Observador, enquanto tenta beber todo o café que consegue. “Não sou cidadão ucraniano, mas é apenas uma questão burocrática, sinto-me ucraniano.” Por isso, foi com profunda tristeza que abandonou Kiev no dia anterior. Yevgeny, porém, considera que não tinha outra hipótese, já que, com o aproximar das tropas russas, crê que corria um risco de vida adicional.
“Sabe o que são os chamados ‘grupos de sabotagem’ russos?”, pergunta. “São uma espécie de unidades pequenas que fazem missões de reconhecimento infiltradas. Tentam destruir locais como pontes e abatem alvos específicos”. “Acha que pode ser um desses alvos?”, questionamos. Afinal, os serviços secretos norte-americanos deram conta há poucos dias de que a Rússia poderia ter uma espécie de kill list de pessoas específicas a abater em caso de invasão. “Eu não acho. Tenho a certeza de que estou numa dessas listas para ser removido.”, responde o jornalista com firmeza.
“Se eu fosse um sniper militar, um homem que sabe rebentar pontes, ficaria e teria muito prazer em limpar estes sacanas. Mas não sou…”, lamenta. Decidiu partir de Kiev quando percebeu que havia confrontos a duas ruas de distância do local onde fica o edifício da cadeia de televisão onde trabalha. “Acho que sou mais útil a contar o que se passa aqui. Estou à espera para entrar remotamente, continuarei a trabalhar, fazendo comentário como analista.”
“Putin quer colocar a bandeira do Império Russo no topo da câmara de Kiev, ao estilo do século XIX”
É precisamente com base na experiência de Yevgeny a acompanhar os movimentos do Kremlin há mais de 25 anos que lhe perguntamos o que acha que vai na cabeça de Vladimir Putin neste momento e como podem decorrer os próximos dias. Para já, acredita que o Presidente russo não tem particular interesse em tomar Lviv, mas sim garantir que manterá o controlo em toda a zona leste, sul e na capital Kiev. “Acho que, de certa forma, Putin fica satisfeito em deixar que a Ucrânia encolha para o tamanho da região de Lviv”, diz, reforçando como historicamente a cidade tem poucos laços à Rússia, tendo pertencido durante séculos ao Império Austro-Húngaro e à Polónia. Mais tarde, foi ocupada pela Alemanha Nazi e com o fim da II Guerra Mundial passou para o controlo soviético.
“Ignorar Lviv encaixa-se na retórica de Putin de que a Ucrânia é ‘uma estrutura artificial’, de que ‘não é sequer um país’. Ele ficaria feliz com isso, diria que é a prova de que Lviv não tem nada a ver com o resto da Ucrânia. ‘Eles que fiquem com aquele reino-anão”. O “grande prémio”, acredita, é Kiev. “Putin quer instalar um regime fantoche ali e vai exigir rendição total. Não quero soar demasiado cínico, mas ele tinha muitas outras formas de criar disrupção na Ucrânia: ataques cibernéticos, corte de eletricidade e gás, etc. E optou pela via militar.”
Uma escolha que para este homem, que teme ser assassinado pelo próprio Kremlin, assenta no facto de o líder russo ter uma visão do mundo totalmente diferente da dos líderes ocidentais e ucranianos. “Ele quer colocar a bandeira do Império Russo no topo da câmara de Kiev, ao estilo do século XIX”, afirma, com o objetivo de instalar um “regime-fantoche” no poder. E poderia isso funcionar perante uma população que esteve durante dias a combater nas ruas, de armas na mão, perante um exército russo hostil? Pode isso funcionar? “Não podemos compreender a lógica de um homem louco”, diz. “Louco não no sentido clínico, não creio que ele veja crocodilos a voar, mas Putin vive num mundo de ficção. Um mundo que não tem nada a ver com o mundo pós-industrializado do século XXI em que vivemos nesta região do mundo.”
Essa reação nas ruas e o facto de não se estar a registar uma deserção em massa dos soldados ucranianos “apanhou de surpresa” os líderes russos. Essa resistência continua em Kiev, a mesma cidade que Iuliia e Yevgeny tiveram agora de abandonar, derrotados. Nas ruas da capital, Volodymyr Zelensky continua, por enquanto, a lutar junto dos civis. A sua antiga assessora — a mesma que esteve com ele não há muito tempo nas negociações dos Acordos de Minsk — não têm dúvidas de que o Presidente ali continuará até ao fim. “Do que conheço dele, tenho a certeza absoluta que não vai abandonar Kiev. Quando a Covid começou, queriam retirá-lo da capital e ele recusou. ‘Quem foge são os ratos’, disse à altura. Agora fará o mesmo, não tenho dúvidas.”