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O Papa Francisco na chegada ao bairro da Serafina, sob um forte dispositivo de segurança
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O Papa Francisco na chegada ao bairro da Serafina, sob um forte dispositivo de segurança

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O Papa Francisco na chegada ao bairro da Serafina, sob um forte dispositivo de segurança

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

"Tenho nojo da pobreza?" Num dos bairros mais pobres de Lisboa, Francisco lembrou que o bem se faz no mundo real

Num discurso que teve de ser interrompido pelas dificuldades de leitura, Francisco fez uma catequese sobre a presença da Igreja junto dos pobres, recorrendo ao exemplo do alentejano São João de Deus.

O auditório estava apinhado — não apenas de bispos e cardeais, mas sobretudo de trabalhadores e utentes de várias associações de assistência sociocaritativa da Igreja Católica em Portugal. No bairro da Serafina, um dos lugares mais empobrecidos da cidade de Lisboa, marcado pelo problema da droga e por vezes apelidado de favela, destaca-se a igreja dedicada a São Vicente de Paulo e o centro paroquial ao lado — uma obra encabeçada pelo padre Francisco Crespo, 82 anos, responsável por resgatar da pobreza centenas de pessoas que viviam no bairro onde, como disse o próprio recentemente à Renascença, “nem os polícias entravam”.

Esta sexta-feira, o bairro vestiu-se a rigor para receber o Papa Francisco. Em Portugal a participar na JMJ, o Papa visitou o centro paroquial para contactar com trabalhadores e utentes não só daquela instituição, mas também da Ajuda de Berço e da Associação Acreditar, numa visita concentrada que serviu para reduzir as deslocações do Papa ao mínimo indispensável na cidade.

O auditório foi minúsculo para acolher a visita do Papa: algumas dezenas de pessoas puderam entrar, mas largas centenas ficaram na rua, apenas para ver, nas estradas, nas janelas e nos pátios, a chegada do carro de Francisco. Dentro do auditório, depois de ouvir o padre Crespo falar-lhe dos perto de 800 utentes e dos mais de 170 funcionários que permitem pôr de pé um berçário, uma creche, um centro juvenil, um lar de idosos e um serviço de apoio a famílias carenciadas, o Papa Francisco tomou a palavra para um discurso com uma mensagem central, em linha com o seu posicionamento habitual sobre a busca das periferias: um cristão não pode ter “nojo da pobreza” nem medo de sujar as mãos. Porque o bem não é para ser feito apenas nas ideias, mas no mundo real e concreto — como, de resto, Francisco tem vincado fortemente em múltiplas intervenções ao longo do seu pontificado e também na JMJ de Lisboa.

O padre Francisco Crespo e Marcelo Rebelo de Sousa à espera do Papa no bairro da Serafina

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

“A caridade é a origem e a meta do caminho cristão, e a vossa presença, realidade concreta de ‘amor em ação’, ajuda-nos a não esquecer a rota, o sentido daquilo que fazemos”, destacou o Papa Francisco, salientando três aspetos fundamentais sobre o lugar da caridade na vida dos católicos, para que a ação sociocaritativa, no contexto da Igreja, não perca o seu significado cristão para transformar a fé numa ONG: “Fazer juntos o bem, agir no concreto — não só com ideias, mas concretamente — e estar próximo dos mais frágeis.”

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Elaborando sobre a primeira ideia, o Papa Francisco destacou a importância de “amar juntos”. Por exemplo, no cuidado dos doentes, é fundamental não deixar que ninguém se defina pela doença. “Não somos uma doença nem um problema”, sustentou. “Cada um de nós é um dom, um dom único com os seus limites, um dom precioso e sagrado para Deus, para a comunidade cristã e para a comunidade humana. E, assim como somos, enriquecemos o conjunto e deixamo-nos enriquecer pelo conjunto.”

Foi sobre o segundo ponto que o Papa Francisco se deteve mais longamente. “A Igreja não é um museu de arqueologia, mas – como nos recordava o padre Francisco, inspirando-se em São João XXIII – é ‘o antigo fontanário da aldeia que dá água às gerações de hoje, como a deu às do passado’”, disse o Papa, numa frase que não deixa de ter como destinatários muitos dos que preferem olhar para Igreja pelas lentes do passado (falando aos convertidos e tornando-a numa instituição estéril) em vez de compreender como pode a Igreja falar para o mundo concreto em que existe hoje. “O fontanário serve para matar a sede dos caminhantes que chegam, carregando o peso real e as canseiras concretas do seu caminho! Por conseguinte é necessária concretização, atenção ao ‘aqui e agora’, como aliás já fazeis com o cuidado dos pormenores e sentido prático, belas virtudes típicas do povo português.”

Apenas ao fim de três parágrafos de discurso, o Papa Francisco viu-se forçado a interromper a sua intervenção. “São muitas as coisas que vos queria dizer agora, mas acontece que não me funcionam os óculos”, disse, apontando para o rosto e aparentemente queixando-se do reflexo dos fortíssimos holofotes que iluminavam o palco. “Não consigo ler bem, por isso vou entregar o texto para que o tornem público depois, e não forçar a vista nem ler mal.”

Largando as folhas que trouxera, o Papa começou a improvisar. “Apenas gostaria de dizer algo que não está aqui escrito, mas está no espírito. O concreto. Não existe amor abstrato, só amor concreto. O amor platónico está em órbita, não na realidade”, disse, para depois recuperar uma ideia que tinha vincado na cerimónia de abertura, a necessidade de sujar as mãos, denunciando a hipocrisia de quem prega a caridade nas ideias sem a praticar no mundo real. “O amor concreto é aquele que suja as mãos. E podemos perguntar-nos: e o amor que eu sinto por todos? É concreto ou abstrato? Quando dou a mão a um necessitado, a um doente, a um marginal, depois faço assim, de seguida [enquanto esfrega a mão na batina, simulando a limpeza da mão], para que não me contagie? Tenho nojo da pobreza? Da pobreza dos outros? Estou sempre a procurar uma vida destilada, essa que existe na minha fantasia, mas que não é real? Quantas vidas destiladas e inúteis que vivem sem deixar marca porque a vida destilada não tem peso?”

“E aqui temos uma realidade que deixa marca, uma realidade de muitos anos que está a deixar uma marca que inspira os outros. Não poderia existir uma JMJ se não tivéssemos em conta esta realidade, porque isto também é juventude”, acrescentou ainda. “Vós gerais vida continuamente e isso é feito com o vosso compromisso, com o facto de sujarem as mãos e de gerar vida. Agradeço-vos de todo coração por isso. Continuem, não desanimem. E, se desanimarem, bebam um copo de água e continuem.”

Dali, o Papa Francisco seguiu para o edifício do lado — a igreja paroquial —, que inicialmente nem estaria nos planos da visita. Terá sido a insistência do padre Crespo, que queria que o Papa visse a igreja onde se reúne a comunidade da Serafina, que levou à colocação do templo nos planos: lá dentro, estavam largas dezenas de pessoas da comunidade paroquial, incluindo jovens escuteiros, idosos do lar e vários paroquianos, todos gritando “esta é a juventude do Papa”. Depois da curta visita, o Papa voltou de novo para o carro e foi transportado para a nunciatura apostólica, onde está a residir durante esta semana.

Muitos habitantes do bairro da Serafina saudaram o Papa Francisco à chegada

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Poucas horas depois da visita, o Vaticano divulgou a totalidade do discurso programado — incluindo a parte que, apesar de não ter sido lida, integrará igualmente a coleção oficial dos pronunciamentos do Papa. Nesse discurso, o Papa Francisco sublinha a importância de não perder tempo “a lamentar-se da realidade”, pedindo, pelo contrário, aos católicos que tenham “a preocupação de ir ao encontro das carências concretas”.

“Assim o testemunha a vossa história”, afirma, voltando-se para os representantes das três associações ali representadas: Centro Paroquial da Serafina, Ajuda de Berço e Acreditar. “Do encontro com o olhar de um idoso na rua, nasce um centro de caridade ‘de todo o respeito’, como este em que nos encontramos; de um desafio moral e social qual é a ‘campanha pela vida’, nasce uma associação que ajuda grávidas e sua família, crianças, adolescentes e jovens em dificuldade, para encontrarem um projeto de vida seguro (…); da experiência da doença nasce uma comunidade de apoio a quem luta contra o cancro, especialmente crianças, de modo que ‘os progressos no tratamento e a melhor qualidade de vida se tornem realidade para eles’.”

Os descartados são “os preferidos de Deus”

Numa mensagem tipicamente bergogliana, Francisco refere-se aos “frágeis e necessitados” como “os preferidos de Deus” e o “tesouro da Igreja”. A mensagem de Jesus Cristo, salienta Francisco, “leva-nos a servir os pobres, os prediletos de Deus que Se fez pobre por nós: os excluídos, os marginalizados, os descartados, os humildes, os indefesos. São eles o tesouro da Igreja, são os preferidos de Deus”.

O discurso ressoa especialmente quando se tem em conta como o Papa Francisco tem condenado duramente a tentação da Igreja de se fechar sobre si própria, criando uma espécie de sociedade perfeita que exclui quem é diferente, em vez de incluir. “Para um cristão, não há preferências face a quem, necessitado, bate à nossa porta: compatriotas ou estrangeiros, pertencentes a este ou àquele grupo, jovens ou idosos, simpáticos ou antipáticos”, sublinha o Papa — um dia depois de ter convidado os jovens a gritar, no Parque Eduardo VII, que a Igreja é para “todos, todos, todos” (enquanto, em contraste com as palavras do Papa, um conjunto de católicos fanáticos invadia uma igreja onde um grupo de católicos LGBT celebrava uma missa).

Um discurso que foi um recado a quem quer uma Igreja fechada à diferença. As entrelinhas do Papa na cerimónia de acolhimento

Se, noutros discursos em Lisboa, o Papa Francisco fez referências a autores portugueses, nesta intervenção o pontífice incluiu uma referência a um santo português: João Cidade, o alentejano do século XVI que fundou a Ordem dos Irmãos Hospitaleiros e que hoje é evocado pela Igreja como São João de Deus.

“A propósito de caridade, quero agora contar-vos uma história, especialmente a vós, crianças, que talvez não conheçais. É a história real dum jovem português que viveu há muito tempo. Chamava-se João Cidade e habitava em Montemor-o-Novo. Sonhava com uma vida aventureira; por isso, adolescente ainda, partiu de casa à procura da felicidade”, escreveu o Papa. “Achou-a depois de vários anos e muitas aventuras, quando encontrou Jesus. E ficou tão contente com a descoberta que até decidiu mudar o nome, chamando-se a partir de então, não João Cidade, mas João de Deus. E fez uma coisa ousada: foi pela cidade e começou a pedir esmola pelas ruas, dizendo às pessoas: ‘Fazei bem, irmãos, a vós mesmos!’ Compreendeis? Pedia a esmola, mas dizia a quantos lha davam que, ajudando-o a ele, na realidade estavam a ajudar antes de mais nada a si próprios!”

"Tenho nojo da pobreza? Da pobreza dos outros? Estou sempre a procurar uma vida destilada, essa que existe na minha fantasia, mas que não é real? Quantas vidas destiladas e inúteis que vivem sem deixar marca porque a vida destilada não tem peso?"
Papa Francisco

A partir do exemplo de São João de Deus, o Papa Francisco sustenta que “os gestos de amor são um dom primariamente para quem os cumpre, antes mesmo de o serem para quem os recebe” — já que “tudo o que se acumula para si mesmo perder-se-á, enquanto aquilo que se dá por amor nunca se desperdiça”.

“Se queremos ser verdadeiramente felizes, aprendamos a transformar tudo em amor, oferecendo aos outros o nosso trabalho e o nosso tempo, dizendo palavras edificantes e realizando boas ações, mesmo com um sorriso, com um abraço, com a escuta, com o olhar”, sintetiza o Papa Francisco, para depois contar o final da história: “Sabeis o que aconteceu depois a João? Não o entenderam! Pensavam que estava maluco e fecharam-no num manicómio. Mas ele não se desmoralizou, porque o amor não se arrende e quem segue Jesus não perde a paz nem se põe a lamentar a sua sorte. E foi precisamente lá, no manicómio, carregando a cruz, que chegou a inspiração de Deus. João deu-se conta de quanto aqueles doentes precisavam de ajuda e, quando finalmente o deixaram sair, depois de alguns meses, começou a cuidar deles com outros companheiros, fundando uma Ordem Religiosa: os Irmãos Hospitaleiros.”

A visita ao bairro da Serafina aconteceu depois de o Papa Francisco ter passado pelo Parque do Perdão, nos jardins de Belém — onde os jovens têm, ao longo da semana, tido a possibilidade de se confessar em várias línguas —, para também ele se dirigir a um confessionário e ouvir a confissão de três jovens: um italiano, um espanhol e uma guatemalteca. O Papa passou a hora de almoço e o início da tarde, onde, além de almoçar com um grupo de jovens de todo o mundo, teve encontros com líderes e representantes de várias confissões religiosas. O fim da tarde desta sexta-feira ficará marcado pela celebração da Via Sacra no Parque Eduardo VII. Será a última grande celebração neste recinto: no sábado, depois da visita a Fátima, durante a manhã, os peregrinos vão rumar ao Parque Tejo-Trancão para as celebrações finais da JMJ.

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