Há uns anos, em Viana do Castelo, um grande fogo em Santa Luzia fez o autarca local avançar com uma medida: indemnizar quem tivesse visto os seus terrenos dizimados pelo fogo. Resultado? Várias pessoas atualizaram registos para poderem ser indemnizadas. Foi uma forma de contornar — pelo menos naquela região — um dos problemas centrais na questão do território em Portugal: a falta de registo das propriedades rústicas (as que são fora dos aglomerados urbanos e não identificados como terrenos para construir). Esta é uma questão central para os problemas do território, mas também para a prevenção de incêndios, já que sem donos identificados, as autoridades não têm a quem exigir a limpeza de matas e florestas. O cadastro é um dos eixos da reforma florestal que o Governo está a levar a cabo, mas está longe de ser a primeira vez que um Executivo tenta controlar o que os especialistas em território consideram uma verdadeira chaga.
Terra incognita era o termo latim usado para a terra desconhecida ou por explorar, nos mapas medievais aparecia um dragão nos locais não explorados ou considerados perigosos: “Hic sunt dracones“ (“Aqui há dragões”). Agora, mesmo estando todo o território cartografado, muitas parcelas têm donos desconhecidos, o que não as torna menos perigosas.
Quem mais dados tem sobre os proprietários das terras são mesmo os autarcas, mais do que a administração central que, nesta matéria, está mais às escuras. Numa entrevista ao Observador, o investigador José Miguel Cardoso Pereira, conta a história de um autarca que “quando não se sabe de quem é uma terra, ele vai lá, põe uma placa a dizer ‘vende-se’ e coloca o seu número de telefone. E diz que dois ou três dias, aparece o proprietário furioso a perguntar: ‘Seu desgraçado, quem é você que está a tentar vender a minha terra?'”. Mais uma forma de contornar a questão.
Qual a dimensão do problema?
É complicado responder. Não existem dados atualizados, precisamente porque não há cadastro. Entre ministérios do Ambiente e da Agricultura e os vários organismos e especialistas contactados pelo Observador, a resposta foi sempre esta: “O problema é que não existe um cadastro. O problema é precisamente esse”. “Os registos são ultradesactualizados”. Quando apresentou a reforma florestal — que vai estar neste momento em discussão no Parlamento — o ministro da Agricultura, Capoulas Santos, disse que estimava existirem mais de um milhão de prédios rústicos em Portugal sem dono conhecido, embora logo a seguir afirmasse que “ninguém neste momento pode dizer que este número está certo ou errado”.
Investigador. “O Estado recuou demais, debilitou-se, na sua função de gerir a floresta”
O estudo “O cadastro e a propriedade rústica” de Rodrigo Sarmento de Beires, engenheiro e especialista em desenvolvimento florestal, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos em 2013, estima que as terras sem dono ou sem dono conhecido em Portugal signifiquem 10% do território, ou seja, “algo entre os 500 mil e um milhão de hectares de terras passíveis de serem mobilizadas e tornadas disponíveis, muitas delas para fins essencialmente silvopastoris”.
E isto tem não só implicações ao nível da limpeza das propriedades e da prevenção de incêndios, como o debate que o devastador fogo de Pedrógão Grande veio avivar: tem também implicações ao nível da dinamização da atividade económica e da receita fiscal. Sem donos identificados, o Fisco não tem como ser eficaz na cobrança do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), por exemplo. O estudo de Rodrigo Sarmento de Beires calcula que a “componente rústica do IMI” possa render “apenas 8 milhões de euros, num montante global de 1.065 milhões de euros de IMI coletados sobre prédios urbanos, ou seja, não chega a 1% do IMI todo”, refere.
Segundo dados mais atuais, de 2016, relativos à cobrança de 2015, estavam registados nas Finanças cerca de 11,6 milhões de prédios rústicos que tinham um valor patrimonial para efeitos de imposto de cerca de 1,3 mil milhões de euros. Destes imóveis, três milhões estavam isentos e cerca de 8,5 milhões pagaram IMI, mas a receita foi apenas de 7,5 milhões de euros, continua a ser a mesma gota de água num valor global arrecadado de 1.500 milhões em 2016.
Os dados de 2015, relativos a 2014, acrescentam um outro dado: para efeitos fiscais, estavam registados quase três milhões de contribuintes com propriedades rurais, independentemente do número de imóveis que estavam em seu nome. O Governo está neste momento a preparar uma reavaliação do valor tributário da propriedade rústica.
Já que no diz respeito às características, a maior parte destas terras de ninguém são florestas, não fosse essa a ocupação maioritária do solo nacional: cerca de 40% de Portugal, “o que equivale a quase três milhões e 500 mil hectares. A floresta é a classe com maior expressão territorial e ocupa mais um milhão de hectares do que a Agricultura”, de acordo com a Carta de Uso e Ocupação do Solo da Direção Geral do Território. Pinheiros bravos e Eucaliptos dominam, mas essa é outra questão do debate dos últimos dias.
Curioso é que o Estado aponta o dedo aos privados em matéria de cadastro, mas o estudo de Sarmento Beires mostra que a questão do cadastro ” não trará grandes novidades” para “boa parte dos proprietários”. E isto porque esses “sabem, quase sem exceção e com bastante exatidão, quais são os seus prédios e a sua delimitação (salvo alguns casos mais recônditos)”. O verdadeiro problema, na ótica do estudo já citado, é haver quem não saiba “onde estão e quais são os limites da maior parte das terras que lhe pertencem” ou quais devem ser geridas pelo Estado.
O que já foi feito ou está na calha para resolver a questão
O desconhecimento de proprietários traz problemas para a gestão da florestas, mas o Estado também é sensível ao fator fiscal e económico. Há mais imposto que podia ser arrecadado, quer sobre o património, quer através de receita fiscal vinda da atividade económica dinamizada, por particulares ou empresas, naquelas áreas deixadas ao abandono e sem registo. Foi muito por causa disto que o anterior Governo criou a Bolsa Nacional de Terras que visava “facilitar o acesso à terra através da disponibilização de terras, designadamente quando as mesmas não sejam utilizadas”.
O objetivo era que as terras sem uso e sem dono pudesse ser reintegradas no mercado florestal. Os proprietários têm de registar a propriedade, se quiserem integrá-la na Bolsa que depois negoceia o terreno: vende, arrenda ou permuta. Quem o fizer, tem descontos na atualização da caderneta predial, com os custos dos registos a terem reduções na ordem dos 75%, explica ao Observador o ex-coordenador da Bolsa, Nuno Russo.
De acordo com os dados mais atuais da Bolsa Nacional, até ao final de maio deste ano foram disponibilizados quase 17 mil hectares de área, com uma oferta total de 685 prédio ou parcelas para arrendamento e venda. No período de funcionamento da Bolsa, houve apenas dois concursos com terrenos do Estado, mas geraram receitas de 2 milhões de euros, conta ainda o ex-coordenador.
A ideia do atual Governo é substancialmente diferente, começando logo por forçar o registo. Em vez de esperar que os proprietários não registados avancem por iniciativa própria, o Governo dá dois anos para que os proprietários regularizem a sua situação. As terras que depois disso permanecerem sem dono, integram o Banco Nacional de Terras.
A Bolsa não deixará de existir e passa a ter apenas propriedades de privados, que as coloquem lá de forma voluntárias, do sector empresarial do Estado e dos municípios. Tudo o resto vai para o Banco: terrenos do Estado e terras não reclamadas. Com isto, o Governo diz ter essencialmente dois objetivos, na proposta que apresentou ao Parlamento e que irá a votos a 19 de julho:
- Facilitar o acesso à terra através da disponibilização de prédios exclusivamente ou predominantemente rústicos, quando estes tenham aptidão agrícola, silvopastoril ou florestal. Tem como fim promover a viabilidade económica da terra.
- E quanto às propriedades exclusivamente ou predominantemente rústicas com utilização florestal, facilita o acesso à terra para permitir uma gestão florestal profissional e sustentável.
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A medida do Governo pretende identificar proprietários, mas existe outra proposta para complementar estar alteração: a criação de um Sistema de Informação Cadastral Simplificada. Está longe de ser a primeira vez que é tentado o registo do cadastro dos terrenos.
Em 1995, foi aprovado pelo Governo de Cavaco Silva o Regulamento do Cadastro Predial, que visava caracterizar os prédios (terras ou parcelas de terra) rústicos e urbanos existentes no território nacional. Antes dele existia o Cadastro Geométrico da Propriedade Rústica, que foi feito essencialmente na parte sul do país — onde as propriedades são maiores — e sobretudo para efeitos fiscais.
O Cadastro Predial pretendia ser um registo oficial único de todos os prédios rústicos e urbanos existentes em Portugal, mas a sua concretização ficou bem aquém dos objetivos. Ficaria registada a localização geográfica, bem como os limites de cada uma das propriedades. Os custos iniciais estimados ultrapassavam os 600 milhões de euros e a implementação demorou. Só em 2006 foi criado o Sistema Nacional de Exploração e Gestão de Informação Cadastral, para executar e fazer a manutenção da informação cadastral. O anterior Governo decidiu, em 2012, que o modelo tinha de ser revisto, depois da experiência-piloto em sete concelhos do país — que foi muito criticado pelo PCP, por exemplo.
O registo de propriedades provenientes de herança não é obrigatório, o que faz que grande parte das terras em Portugal não tenham um dono identificado. O registo está desatualizado e os proprietários não têm grande incentivo a procederem à sua atualização porque, muitas vezes, os custos desse processo são superiores ao valor do terreno. De acordo com fonte do Ministério da Agricultura, é a Norte que existem mais propriedades com donos desconhecidos, porque é aí que estão os terrenos mais pequenos e, por isso mesmo, com valor patrimonial bastante mais baixo. É uma espécie de ciclo vicioso do proprietário desconhecido: a terra (muitas vezes herdada) é pequena, o seu valor é baixo, o custo de assumir a sua propriedade é grande.
O atual executivo avança agora com uma proposta para a criação de um sistema de informação cadastral simplificada, não só para identificar as terras, como também “a titularidade dos prédios rústicos e mistos”, determina a proposta de lei que está no Parlamento a aguardar aprovação. O sistema irá estar em vigor durante 30 meses vai incluir um regime de isenção de custos para quem decidir registar, durante este período, as propriedades que tem na sua posse com registo desatualizado.
Os prédios que não forem identificados neste período passam para o Banco de Terras, mas o Estado não pode ceder ou vender de forma definitiva os terrenos que vier e a integrar na sequência deste registo. Isto por um período de 15 anos, que é o espaço de tempo em que os proprietários podem reclamar a posse dessas terras. No Conselho de Ministros da passada quinta-feira, o primeiro-ministro avisou que a reforma da floresta não é um processo “imediato”. Os prazos definidos nesta proposta acabam por explicar o alerta de António Costa, também repetido pelo ministro da Agricultura, Capoulas Santos.
Mas a proposta não é única, também o PSD e o CDS avançam com um projeto para o problema do cadastro, através do Sistema Nacional de Informação Cadastral. A medida é apresentada como essencial “na articulação do cadastro predial com a matriz, com o registo predial e com os atos notariais, processuais ou outros, relativos a prédios cadastrados”. No fundo, trata-se de agregar informação até agora dispersa. O tema da gestão florestal ganhou urgência na última semana, depois do incêndio trágico de Pedrógão Grande, com o Governo a garantir que tinha trabalhos em marcha e o Parlamento a acelerar a aprovação das partes da reforma que estão na Assembleia da República. O Banco de Terras e o Regime de Cadastro são duas delas e aguardam consenso dos partidos até 19 de julho.