Numa palestra dada pela escritora Lydia Davis ouviu que todos os autores que submetiam constantemente os seus trabalhos ao escrutínio de agentes ou editores deviam manter um projeto secreto, uma espécie de escape que não fosse condicionado por opiniões externas. Foi isso que O Contrário de Nada começou por ser para Tess Gunty. Passados cinco anos, quando o terminou, já tinha acumulado tantas rejeições dos outros manuscritos, que só queria imprimir mais este, guardá-lo na estante e esquecer-se dele.
Seguiu-se um golpe de sorte escrito em dois capítulos: a insistência de uma amiga para que o enviasse a agentes e o telefonema de um escritor com quem já tinha trabalhado que chamou a atenção para o manuscrito às pessoas certas. O Contrário de Nada acabaria por ser o primeiro romance publicado e, mais do que isso, tem vindo a conquistar vários prémios, incluindo o prestigiado National Book Award, fazendo da autora de 31 anos a mais jovem vencedora desde Philip Roth, em 1960.
O Contrário de Nada — que foi ainda considerado Melhor Livro do Ano por publicações como The New York Times, TIME, Chicago Tribune ou Oprah Daily — segue os residentes de um prédio de habitações de baixo rendimento numa cidade fictícia do Indiana, Vacca Vale. Pessoas banais e outras com hábitos estranhos vão-se juntando num puzzle diversificado e complexo que culmina num ato de violência bizarro. No centro de tudo está Blandine, uma jovem a quem a vida não fez favores, incapaz de se encaixar no mundo à volta e obcecada com a libertação da alma.
Tess Gunty baseou-se na cidade onde cresceu, no Indiana, para escrever uma história sobre uma região abandonada, três décadas depois de ter sido um exemplo de prosperidade industrial. Conseguiu dar voz a uma realidade geralmente esquecida com um estilo de escrita livre, em que até a personagem mais secundária parece ter uma vida rica em vivências.
Falámos com a autora na passagem por Lisboa, poucos dias após os direitos do livro serem pré-adquiridos para uma adaptação em Hollywood.
Comecemos pelas notícias mais recentes: os direitos foram pré-adquiridos pela Fremantle e o Richard Brown [produtor de True Detective]. O que é que isto significa?
Apenas 1% ou menos dos livros cujos direitos são pré-adquiridos são realmente adaptados. Portanto, não sei bem o que vai acontecer, apesar de parecer tudo bem encaminhado. Há um realizador, um argumentista — a dada altura perguntaram-me se queria ser eu, mas decidi que não. Adorava escrever um filme um dia, mas não queria fazer experiências com o meu livro.
Porque esse capítulo está fechado?
Sim, por isso, e também porque estou empolgada para ver o que outra pessoa pode fazer com o material. Quero ver a reinterpretação porque, obviamente, não foi escrito para o ecrã e deve ser interessante ver como alguém pode alterá-lo para que se encaixe aí. Confio muito no Richard Brown e o realizador é o Todd Field, que dirigiu o Tár e que eu admiro muito.
Já consegue visualizar uma atriz no papel de Blandine, a protagonista?
Não tenho ninguém em mente, mas adorava que fosse uma atriz que ainda não tenha feito grandes papéis, que fosse uma descoberta.
A Tess vai ser produtora executiva?
Sim, o Richard Brown está a coordenar tudo e quer que eu esteja envolvida. Temos feito reuniões por Zoom, ele atualiza-me e ouve as minhas ideias. Portanto, sou uma espécie de consultora.
O Contrário de Nada desenrola-se numa cidade fictícia, que é baseada na sua cidade natal, South Bend. Quais são as recordações mais vívidas que tem da infância?
Nunca me perguntaram isso, interessante. Vivi em dois bairros, ambos de trabalhadores fabris. Durante cerca de 100 anos existiu uma fábrica de automóveis na cidade chamada Studebaker — e a Zorn, fábrica de automóveis que aparece no livro, baseia-se nela. Tinha uma gama de carros luxuosos, que os presidentes e as celebridades adoravam, mas fechou abruptamente nos anos 60 e muitas pessoas perderam o emprego. A minha cidade recuperou porque tinha uma universidade que era bastante bem sucedida e era a principal empregadora, mas em muitas outras cidades da região não havia outra fonte de emprego ou prosperidade económica para absorver o choque de um declínio desse género. Lembro-me de ter um sonho recorrente quando tinha quatro ou cinco anos. Ia à cave da minha casa, à lavandaria, que era uma divisão atafulhada e por acabar, e encontrava uma porta escondida muito pequena. Ela levava-me a uma divisão de luz intensa onde não existia gravidade e eu flutuava ali, muito longe da realidade das casas à minha volta. Cada vez que acordava deste sonho, corria até lá abaixo e procurava a tal porta. Estava mesmo convencida de que tinha de existir. Era aquela fase da infância em que tudo é mágico e uma das coisas que me atraiu na escrita é o facto de, quando as coisas estão a correr mesmo bem, sentir o mesmo que sentia na divisão do sonho. Não há peso, há espaço infinito e uma imensidão de luz. Penso que escrevo desde muito pequena para perseguir essa sensação. Outra memória que me vem à cabeça é de uma professora de religião que tinha numa escola católica e que era muito excêntrica. Devia ter uns 60 anos, falava demasiado sobre como achava o marido sexy e introduziu-nos o conceito de purgatório. Descrevia-o como um sítio de desejo eterno e sede insaciável, onde estávamos apenas à espera. Era como uma sala de espera, mas não tínhamos a certeza de alguma vez sermos chamados. Mesmo sendo criança, eu pensava: “Isto soa familiar. Eu conheço este lugar, é como se já vivêssemos lá”. Quando estava a preparar a publicação do livro ocorreu-me que ele era como uma oração secular para as pessoas presas no purgatório terrestre. O livro seria uma tentativa de libertar as minhas personagens, libertar-me a mim e espero que outras pessoas para um reino melhor.
Tem muitas personagens neste livro. Algumas parecem ter um papel pequeno, mas nota-se que têm muito historial. Como é que ganham vida?
É um processo misterioso. Sempre fui mais observadora do que participante. Sou a mais nova da minha família, tenho três irmãos mais velhos e muitas vezes, à mesa, eles estavam a debater qualquer coisa uns com os outros ferozmente e eu observava. Era também muito tímida. No caso destas personagens, elas apareceram-me muitas vezes no formato “e se?”. E se houvesse um homem que se cobrisse com líquido e bastões fluorescentes e aterrorizasse os inimigos? E se houvesse três rapazes que sacrificassem animais para provar a devoção a esta rapariga? E se houvesse uma rapariga que não quisesse ser religiosa, mas quisesse ser mística [alguém que tem contacto com alguma divindade através de uma experiência direta ou intuição]? Essas experiências chegaram do nada, não sei de onde, mas a minha tarefa seguinte era criar uma personagem que fosse, não só credível, mas cujo comportamento fosse inevitável. Queria que este livro tivesse uma espécie de instabilidade de outro mundo, mas que também tivesse realismo e os pés assentes na terra. Portanto, tenho uma data de personagens excêntricas a fazerem coisas que normalmente não se fazem, mas gostei de explorar que tipo de forças motivariam os seus comportamentos.
No início da história, num dos cartazes da cidade pode ler-se “Indiana: onde todas as contradições da América estão vivas”. Quais são essas contradições que quer expor no livro?
É uma boa pergunta e podíamos estar aqui a falar dela durante horas, mas uma das facetas dessa frase é política. Durante muito tempo, o Indiana foi um swing state [estados onde, durante as sondagens, nenhum partido possui maioria absoluta, qualquer um pode vencer] — tecnicamente ainda é, mas está cada vez mais vermelho, o que significa que há muita gente a votar nos republicanos. Durante a Guerra Civil, era um estado da União, lutava pelo Norte. Mas quando as pessoas foram libertadas da escravidão, o Indiana tinha leis extremamente racistas, a vida era muito difícil para as pessoas negras ali. Nos anos 1920, o Ku Klux Klan teve um resurgimento e o epicentro foi o Indiana. Havia muita gente na fronteira com o Michigan a lutar pelos direitos civis e depois havia muita gente no Sul, especialmente junto ao Kentucky, que era completamente dedicada à supremacia branca. Penso que um em três homens nascidos no Indiana pertencia ao Ku Klux Klan. A ideia de tensões políticas sempre esteve ali. Outra contradição é uma ilusão, da qual acho que o capitalismo depende, de que qualquer pessoa pode ser um futuro milionário. Se trabalharmos muito, temos tanta hipótese de sermos milionários como qualquer outra pessoa. Claro que isso não é verdade. O contexto em que nascemos faz toda a diferença, mas no Indiana esse mito sobre prosperidade persiste. Por isso encontramos pessoas que muitas vezes vivem em pobreza extrema no Indiana, especialmente classes operárias brancas, a gravitarem na direção de candidatos como Donald Trump, que representam riqueza extrema e poder, apesar de as suas políticas serem bastante duras para pessoas que vivem na pobreza.
2024 vai ser um ano crítico.
Sim e, nesta fase, se tivesse de adivinhar, diria que o Trump vai ganhar.
Está neste momento a mudar-se para Nova Iorque, cidade onde estudou. Vinda do Indiana, sentia-se deslocada ou, pelo contrário, por haver tanta gente diferente, era ali que se sentia em casa?
Vivi lá cinco anos, depois fui para Los Angeles outros cinco e acabei de me mudar de volta há uns dias. Penso que me sentia mais confortável em Nova Iorque do que em casa porque ali estava numa comunidade de escritores. Portanto, finalmente tive um grupo de pessoas com as quais me conectei instantaneamente. Ainda assim, fiquei surpreendida por encontrar snobismo e condescendência em relação ao Midwest [região centro-oeste]. Tinha ouvido que existia, mas não acreditava realmente. Lembro-me de ir a uma atuação da Filarmónica de Nova Iorque e de ter ao meu lado uma mulher nascida e criada em Manhattan. Usava peles, era claramente muito rica e perguntou-me de onde eu era. Quando respondi Indiana, ela suspirou e disse: “Não sabia que existia alguém realmente de lá, mas você não parece nada. Apagou as luzes quando veio embora”? Lembro-me também de, na manhã seguinte à eleição do Trump, ter ido a uma padaria. A rapariga ao balcão viu a minha identificação e disse: “Oh, é do Indiana? Votaram Trump” e atirou-me a carteira como se fosse culpa minha. Mas, regra geral, sinto-me em casa em Nova Iorque porque quase toda a gente é de outros sítios, há pessoas muito diferentes.
No livro também tem personagens muito diferentes. Foram elas as primeiras ideias para o livro, ou foi a sua cidade?
Comecei a escrevê-lo aos 23 anos, agora tenho 31, e trabalhei nele sozinha durante cinco anos antes de o apresentar a alguém. Mas foi definitivamente o cenário, sabia que queria escrever algo ficcional sobre o Midwest pós-industrial. Queria algo com qualidade tradicional, mas enraizado no que me era familiar. A primeira personagem em que pensei foi a Joan. Tinha acabado de ouvir uma entrevista com alguém que moderava comentários num site de obituários e achei que isso era uma forma fascinante de passar o tempo.
Nem sabia que isso era um emprego.
Nem eu. E agora na tournée uma pessoa veio ter comigo a dizer que fazia isso, foi muito giro. A Joan foi a primeira personagem e depois foi-me conduzindo às outras.
Até chegar à Blandine, a protagonista, que não aceita o que a vida ou a sociedade tem guardado para ela. É uma jovem que faz o que quer, pensa o que quer, mas é feliz?
Não sei, penso que há certas pessoas que nascem com uma predisposição que faz com que a felicidade diária seja muito difícil de atingir.
Ela tem um fardo desde o início do qual nunca se libertará?
Sim, não apenas pelo contexto dela, mas também pela predisposição. Acho que há pessoas que nascem nas condições mais difíceis e arranjam forma de encontrar felicidade no dia a dia. Mas o temperamento dela é mais de extremos. Penso que um dos motivos pelos quais se sente atraída pelas místicas é porque elas conseguem alcançar uma forma de êxtase extremo, uma euforia que vai além da linguagem. Penso que se sente atraída por isso porque a felicidade do dia a dia, hora a hora, simplesmente não está disponível para ela.
Essa obsessão que ela tem pelas místicas é a forma de fugir da realidade?
Sim, talvez ela veja que esta forma de escape não precisa de recursos, basta recolher-se mentalmente. E, se tivermos tempo e sossego, é possível atingir esse tipo de escape, o que é muito apelativo para alguém que não tem recursos materiais.
Há pouco falou da Joan, agora da Blandine, também tem a Hope, outra personagem que é secundária mas que, ao mesmo tempo, tem tanto sumo que podia ser a protagonista de outra história. Pensa nessa possibilidade?
Não sei se viu o filme Lady Bird. Lembro-me de ouvir uma entrevista com a realizadora, a Greta Gerwig, em que ela dizia que queria que os espectadores sentissem que cada uma das personagens podia sair dali e ter o próprio filme. Sinto-me muito atraída por essa forma de trabalhar, em que até as personagens menores parecem pessoas totalmente realizadas, com histórias totalmente realizadas. Funcionam como pequenos ecossistemas que são essenciais para o funcionamento de toda a biosfera. Aqui temos múltiplos arcos narrativos a interagirem, como pequenas janelas para as vidas das pessoas que são fulcrais para que o mecanismo total funcione.
É um puzzle complexo?
É exatamente isso. Para a maioria das personagens, acabei a escrever histórias de fundo muito extensas que não foram parar à versão final. Mas ajudaram, porque é a realidade subterrânea do livro. Ajuda o escritor a criar uma personagem tridimensional.
A coelheira é o prédio onde estas personagens se cruzam, mas ninguém conhece realmente o vizinho ou sabe o que se passa dentro de cada apartamento. É um paralelismo com as dificuldades que cada um passa em silêncio, que a pessoa do lado desconhece? Além disso, o livro parece construído em jeito de Matrioska, revelando mais e mais histórias e detalhes à medida que avançamos. Era essa a sua ambição?
Gosto dessa leitura e foi certamente o que tentei alcançar. Um dos meus irmãos costuma dizer a brincar que o vilão deste livro é um modelo de capitalismo não regulado. E acho que esse modelo, especialmente na América, está a ser exportado para outras partes do mundo, encoraja um pensamento extremamente individualista e posiciona a acumulação material como objetivo de vida. Quando estava a escrever tentei pensar em como seria construir uma sociedade que é remediada e onde o destino de todos é mutuamente partilhado. É difícil imaginar uma utopia no nosso mundo mas, quando a imagino, penso que tem de começar por resistir à mentalidade individualista que trata tudo e todos à volta como um recurso que temos o direito de explorar. Isso empurrou-me para um modelo mais coletivo no livro. Uma coisa consistente entre as descrições destas experiências estáticas, sejam elas religiosas ou seculares, induzidas por drogas ou meditação ou o que quer que seja, é que todas elas descrevem uma espécie de morte do ego. É uma experiência muito comum com as drogas psicadélicas descrita como um sentido de união que junta tudo e todos no passado, presente e futuro. E isso pareceu-me instrutivo, como talvez o início de um modelo alternativo. Isso poderia talvez um dia levar a um mundo mais utópico.
De onde vêm os coelhos [a versão original chama-se The Rabbit Hutch, ou seja, a coelheira] presentes em vários detalhes do livro?
Há dois motivos. Primeiro, apareciam constantemente no primeiro rascunho, sem eu saber realmente porquê. Senti-me atraída por eles por evocarem associações distintas, estão entre a inocência e a corrupção, há associações a Donnie Darko, as coelhinhas da Playboy, o coelho da Páscoa, o coelho branco da Alice no País das Maravilhas, que foi o coelho que me guiou. Gosto do facto de ser uma espécie de símbolo do caos. Tanto são alimento, como são animais de estimação. Enquanto escrevia, os coelhos iam aparecendo e tentei não analisar muito, mas depois vi um documentário do Michael Moore chamado Roger e Eu sobre a terra natal dele, Flint, no Michigan. É parecida com a minha: havia uma fábrica de automóveis que fechou, muitas pessoas ficaram desesperadas financeiramente, tem uma poluição elevada, houve uma crise sanitária porque a água estava poluída, etc. Resumindo, o Michael Moore regressa à cidade e há uma parte em que ele vê uma placa à beira da estrada que diz: “Coelhos, animais de estimação ou carne” e ele vai investigar. Encontra então uma mulher que tinha perdido o emprego, começou a fazer criação de coelhos para subsistir e vendia alguns como carne. Ela dizia uma coisa que acaba por ser a epígrafe do livro, que é sobre termos de matar os machos quando chegam a uma certa idade, se não começam a atacar-se uns aos outros por não conseguirem conviver num espaço fechado. Pareceu-me uma parábola para a violência horizontal, um termo que servia para descrever a raiva que um grupo oprimido dirige ao opressor. Mas, como o opressor geralmente os manipula com proteção e poder privilegiado, a raiva acaba por nunca atingir o alvo e faz ricochete. A mim, parece-me que engloba os tipos de violência e negligência que vi no meu bairro numa escala pequena. Parecem fruto de pessoas encurraladas numa gaiola, sem recursos.
Há pouco mencionou um dos seus irmãos. O seu irmão Nicholas fez os desenhos que ocupam um capítulo do livro. É o seu primeiro romance, como foi essa decisão de fazer uma coisa tão fora da caixa?
Os desenhos foram a solução para um problema porque tentava vezes sem conta escrever esta cena em que as personagens colidem e era tudo caótico. Sempre que tentava por palavras, era tudo muito melodramático ou lírico. Continuava a ver aquela cena como se fossem tiras de banda desenhada. Muito cedo na história tinha mencionado ao meu irmão, que é um artista incrível, e o Nick tentou passar o momento para ilustrações, como se fossem as ilustrações do Todd, que é uma personagem que faz ilustrações. Também pensámos fazer um vídeo para o YouTube, como na história, colocá-lo online e depois retirá-lo, mas desistimos da ideia. Durante quatro anos, tinha apenas escrito “banda desenhada a caminho” naquelas páginas. Quando o meu editor leu e quis avançar com a publicação, disse-me que devia colocar a ilustração, portanto também foi muito recetivo à ideia. O estilo do Nick não tem nada a ver com o que está no livro, acho que ele foi muito bom a adaptar-se à personagem e ajudou-me até a perceber melhor o Todd. Deu-me uma perspetiva tão diferente do Todd que me fez pensar se ele se sentia ameaçado naquela cena em que [spoiler alert] está a ser asfixiado, em que pode morrer. Os desenhos são a confissão dele, mas também um retrato de auto-defesa.
O seu editor incentivou a que este livro fosse diferente e livre criativamente?
Uma coisa que ajudou a que este livro fosse tão livre foi o facto de ter sido um projeto secreto. Uma vez assisti a uma palestra da escritora Lydia Davis e um dos conselhos dela era ter sempre algo guardado só para nós, se estamos num contexto em que partilhamos constantemente o nosso trabalho com um editor ou num curso de escrita. Era o meu caso, estava a escrever outros manuscritos para submeter a editores. Portanto, este era o meu projeto secreto e senti-me muito mais livre nele do que em qualquer outro. Cinco anos mais tarde, estava tão destroçada por todas as rejeições acumuladas nos outros projetos, que nunca pensei que este fosse publicado. A minha ideia era só imprimi-lo, colocá-lo na minha estante e seguir em frente. Tinha-o submetido a concursos pequenos e a imprensa universitária, mas nem sequer era selecionado. Tudo isto para dizer que, quando uma amiga finalmente me convenceu a enviar a agentes, já tinha sido todo desenvolvido e terminado sem ninguém o ter lido ou dado opiniões.
Há pouco disse que foi uma amiga que a convenceu a mandar o manuscrito para agentes quando já tinha desistido dele. Como é que as coisas se desenrolaram depois?
Devo tudo à minha amiga Kate Doyle, que também é escritora. O feedback que tinha tido em projetos anteriores não era bom. Diziam-me: “Gostamos da tua linguagem e do teu estilo, mas não vai encaixar-se num grupo de leitores porque é demasiado estranho”. Tinha então decidido imprimir O Contrário de Nada e guardá-lo na estante. Entretanto, estava a trabalhar noutra coisa, mas passaram-se meses e não conseguia que aquilo avançasse. Queixei-me à minha amiga Kate, que me disse que achava que eu tinha sido induzida em erro, que bastava uma única pessoa, a pessoa certa, gostar da minha história. Enviou-me uma lista de agentes que ela achava que fariam sentido. Enviei para umas cinco pessoas e durante semanas não tive notícias de ninguém. Os sites das editoras costumam dizer que se não tivermos notícias durante X tempo é porque não quiseram avançar. Depois aconteceu o outro golpe de sorte: um dia, um dos meus mentores, o escritor Jonathan Safran Foer, ligou-me. Eu tinha feito pesquisa para um livro dele de não-ficção e ele precisava de alguém que fizesse o mesmo para um novo livro. Falámos também de trivialidades, eu contei que tinha enviado os manuscritos mas que ninguém tinha respondido, provavelmente porque não tinham gostado. Ele perguntou: “Porque não me disseste? Aposto que ninguém leu. Deixa-me mandar uns emails”. Pouco depois, comecei a receber respostas a dizer que estavam a ler naquele momento e, de repente, recebi uma data de ofertas. A intervenção destas duas pessoas foi milagrosa, sem elas acho que não teria um livro publicado. Por outro lado, é dececionante perceber que não basta sermos um bom escritor para nos darem uma oportunidade. É preciso sorte e o tempo certo.
Antes de publicar O Contrário de Nada, tinha um plano B para o caso da escrita não vir a ser a sua profissão?
Eu acumulava uma data de trabalhos estranhos, escrevia conteúdo científico para um museu, era fact checker, assistente de pesquisa, fazia babysitting. Fazia qualquer coisa que não fosse um emprego a tempo inteiro porque sabia que, se fosse por esse caminho, seria muito difícil concentrar-me na escrita. Precisava de não ter uma rede de segurança, para mim funcionou assim, mas não recomendo a ninguém. Mesmo com obra publicada, há muitos autores que não conseguem viver só da escrita e a dada altura ocorreu-me que podia migrar para algo como jornalismo ou trabalhar em edição. Depois percebi que tinham passado demasiados anos e eu pareceria uma candidata estranha em qualquer uma dessas áreas, só tinha acumulado coisas esquisitas e temporárias.
Agora consegue viver só da escrita?
Sim, tive sorte. Também vou começar a dar aulas de escrita criativa na Universidade de Nova Iorque, mas porque é uma coisa que quero muito.
É a mais jovem vencedora do National Book Award desde Philip Roth. O que é que isso significa?
Faz-me lembrar a escrita medieval das mulheres da Igreja Católica que tentavam descrevem as experiências místicas. Diziam que é uma tarefa condenada tentar sequer descrever com linguagem. Sinto o mesmo neste caso, porque é tão enorme e inesperado que não consigo descrever. Claro que teve implicações práticas, como ganhar mais leitores, mas em termos psicológicos não consigo explicar, talvez daqui a dez anos consiga começar a perceber melhor.
Muitos autores que têm sucesso com o primeiro livro dizem que o segundo é o mais difícil de escrever. Sente isso?
Quando assinei com a editora, foi um contrato para dois livros, já tinha 100 páginas escritas de um segundo livro. Supostamente, devia estar nas livrarias em outubro, mas acho que terei de adiar porque sinto que está amaldiçoado. Parece que não interessa se o primeiro é bem sucedido ou não, o segundo está sempre amaldiçoado. Se o primeiro corre bem, a pressão para fazer o segundo é enorme. Se o primeiro corre mal, temos de nos redimir com o segundo. Comecei a escrever uma espécie de nota mental no meu documento, em itálico, que diz “este livro está amaldiçoado”. Começo a pensar que tenho de colaborar com esta maldição. Nunca experimentei drogas psicadélicas porque tenho demasiado medo, mas há um conselho famoso, acho que de um dos Beatles, sobre trips de ácidos que diz qualquer coisa do género: “Se vires uma escada, sobe. Se vires uma porta, atravessa-a. Se vires um monstro, fala com ele”. Basicamente, se estivermos no meio desta experiência e tentarmos fugir de algo, será assustador, mas se confrontarmos esse medo, seremos recompensados. Acho que tenho de experimentar algo do género neste livro.
Estas são pessoas abandonadas numa cidade, também ela, abandonada. Escrever o livro foi uma forma de dar voz às personagens de Vacca Vale, da sua cidade natal e de outras semelhantes?
Foi definitivamente o que me guiou quando estava a escrever. Na minha escrita sou atraída para pessoas que parecem secundárias, pessoas invisíveis no quotidiano.
Não são vilões nem heróis?
Sim, são apenas pessoas banais. É engraçado porque tenho ouvido pessoas, não só nos EUA, dizerem-me: “Eu conheço este sítio [Vacca Vale], eu sou daí”. Portanto, só prova que este contexto existe mesmo em muitos sítios. Quando fui fazer alguns eventos na minha cidade, estava muito nervosa com a receção que teria, frisei que a cidade do livro não era aquela. Mas as pessoas disseram-me: “É a nossa cidade, sim” e repararam em pormenores que já nem me lembrava que tinha incluído, deram-me muito apoio. Fiz a apresentação na biblioteca que frequentava todas as semanas quando era pequena e estava a abarrotar com pessoas de todos os momentos da minha vida. Foi avassalador e, provavelmente, o mais significativo nesta jornada, mais do que vencer o National Book Award. Honestamente, isto, pelo menos, é uma coisa que consigo entender.