Testar, testar, testar. O mantra popularizado por Tedros Adhanom Ghebreyesus, líder da Organização Mundial de Saúde (OMS), e ecoado pelas autoridades de saúde portuguesas quando a Covid-19 se tornou pandémica, entrou novamente na ordem do dia esta terça-feira. É, segundo o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, a única estratégia possível para desconfinar sem assistir a um disparo repentino no número de novos contágios.
Não é o único a defendê-la. Manuel Carmo Gomes é um dos dez portugueses entre 1.209 cientistas e peritos europeus signatários de uma lista de recomendações para dominar a epidemia de Covid-19 que devem ser aplicadas a nível europeu. O grupo chama-se “Contain Covid-19”, já publicou duas cartas na revista científica The Lancet e propõe um “plano de ação pan-europeu” de redução sustentada da incidência e de defesa contra as novas variantes.
Testagem em Portugal só é suficiente com 102 casos diários, dizem cientistas europeus
Logo na primeira, publicada a 18 de dezembro, o grupo sugere que, para manter uma incidência baixa, é preciso “tomar ações firmes” e impor “intervenções fortes” para reduzir o número de novos casos “rapidamente”, sob pena de condenar a economia nacional e a saúde mental dos habitantes. Uma das medidas é realizar pelo menos 300 testes por milhão de habitantes todos os dias — mas o ideal seria mesmo 5.000 — quando a incidência chegar a apenas 10 novos casos diários por milhão de habitantes.
Viola Priesemann, investigadora alemã do Instituto Max Planck de Dinâmica e Auto-Organização e líder do Contain Covid-19, explica porque é que essa é a incidência limite: a maior parte dos países consegue gerir uma epidemia com 10 novos casos diários por milhão de habitantes, mas perde rapidamente o controlo se ela ultrapassar os 50: “A taxa de positividade torna-se muito alta e o rastreamento de contactos deixa de ser suficientemente rápido”, concretiza.
O número foi calculado com recurso a uma fórmula matemática que relaciona o número básico de reprodução (R, que deve estar sempre abaixo de 1 para a epidemia não crescer) e o registo de novos casos de infeção. “Se o número de casos for baixo numa região vizinha à sua, o registo de novos casos nessa região será baixo e a sua própria região vai ganhar com isso, baixando também os números”, explica Viola Priesemann.
A importância de testar muito é que, mesmo com números baixos, deve continuar a ser possível registar um novo surto, se ele surgir. Giulia Giordano, engenheira italiana, autora de vários estudos sobre a modelação da epidemia, acrescentou mesmo que o número de testes deve subir tanto mais quanto mais acima se estiver de uma taxa de positividade superior a 5% — métrica usada pela OMS para avaliar se uma epidemia está ou não sob controlo.
Mas testar bem é igualmente fulcral. “O teste direcionado pode ser muito mais eficiente se for feito de maneira inteligente e no momento certo”, defendeu Mirjam Kretzschmar, infecciologista holandesa da Universidade de Medicina de Utrecht. A investigadora propõe uma testagem “em anel”, em que todas as pessoas em redor de um caso diagnosticado são testadas rapidamente para que as infeções assintomáticas sejam encontradas.
Ora, os dados reportados ao Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) e trabalhados pela plataforma Our World in Data mostram que a testagem em Portugal ronda precisamente os 5000 testes por milhão de habitantes. O problema é que a incidência está longe do aconselhado pelo grupo: está nos 4.338,3 novos casos por milhão de habitantes esta terça-feira — quase 434 vezes mais que o mínimo sugerido pelos especialistas.
Como é que se baixam os números, então? Na primeira carta do coletivo científico, a proposta inicial é delinear um objetivo, que, na opinião dos especialistas, para todos os países europeus, deve ser o de estar abaixo dos 10 novos casos por milhão de habitantes na primavera de 2021. No caso de Portugal, isso significa não ter mais do que 102 novos casos diários — uma ordem de grandeza que o país não regista desde 16 de março do ano passado.
Depois, é importante “tomar medidas firmes para reduzir o número de casos rapidamente” e escolher “fortes intervenções”. Essa foi a mensagem de Manuel Carmo Gomes quando desenhou uma cruz vermelha sobre a expressão “resposta gradual” e preferiu antes uma “resposta agressiva” aos indicadores epidémicos — o R, o número de novos casos e a taxa de positividade dos testes — “guiada por critérios objetivos”.
Na segunda carta, mais um pacote de conselhos foi publicado na revista The Lancet: “Agir cedo”, implementando medidas de mitigação antes de os números aumentarem em flecha (não depois), reduzir o número de contactos físicos entre as população e implementar regras de proteção individual, como a utilização de máscaras, o distanciamento social e a desinfeção regular das mãos. E a seguir é preciso “testar, rastrear e isolar”.
Confinamento só resulta se for acima de 90%
Confinar também é uma hipótese: já o tinha sido na peste negra do século XIV e na Gripe Espanhola; e também o é na pandemia da Covid-19, como ficou demonstrado na primeira onda da doença. Mas tem um calcanhar de Aquiles: “Os confinamentos comunitários só são eficazes se os contactos forem realmente totalmente fechados“, aponta Matjaž Perc, físico esloveno, diretor do Centro de Sistemas Complexos de Maribor, que participa no grupo Contain Covid-19.
Segundo o cientista, os confinamentos só resultam se 90% dos contactos forem extintos. E, mesmo assim, o impacto não é tão significativo quanto isso: o pico de novos casos só é achatado em 20% e ele é atrasado por pouco tempo. “O que realmente funciona, e ao que devemos aspirar, é o auto-isolamento e o distanciamento social. Não é tão fácil de controlar, mas são absolutamente cruciais para uma supressão eficiente de casos. Sem isto, medidas como fechar transportes públicos, escolas, restaurantes e fábricas estão fadadas ao fracasso”, opina o esloveno.
Meias medidas não servem: tal como tem sido apontado por vários especialistas portugueses, a alemã Viola Priesemann aponta que “um confinamento fraco deve durar cada vez mais tempo ou não é eficaz”, por isso o melhor é sincronizar o máximo de medidas possível de uma vez só para confinar e, a seguir, impor outras regras igualmente pesadas para se entrar em desconfinamento.
Sim a testar todos os contactos de alto risco. Não à testagem em massa
Além de Manuel Carmo Gomes, também a especialista em matemática aplicada Ana Nunes, o perito em modelação epidemiológica Ganna Rozhnova (todos da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa) e o virologista Paulo Paixão (Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa) foram dos signatários iniciais da carta publicada a 18 de dezembro pelo grupo Contain Covid-19, com sugestões sobre como reduzir os novos casos de infeção.
A eles juntaram-se depois o vice-reitor da Universidade do Minho, Eugénio Campos Ferreira, o médico e investigador Carlos Martins ( Faculdade de Medicina da Universidade do Porto), o médico de saúde pública Ricardo Mexia (Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa) e a socióloga e investigadora Susana Silva (Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto).
A segunda carta do grupo “Contain Covid-19”, publicada a 21 de janeiro, foi assinada inicialmente por Carlos Martins na qualidade de presidente da Rede Europeia de Prevenção e Promoção da Saúde em Medicina de Família e Clínica Geral; e por Helena Machado, presidente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Mais tarde, o documento também foi defendido por Eugénio Campos Ferreira e por Susana Silva.
Mas mesmo fora dos signatários das cartas, há mais especialistas que concordam que é preciso aumentar a capacidade de testagem em Portugal. Vasco Ricoca Peixoto, médico de saúde pública, investigador na Escola Nacional de Saúde Pública, diz até que os critérios para testagem deviam ser alargados para se considerar um caso suspeito aquele que reportar nariz entupido, dores de cabeça ou sintomas do foro gastrointestinal, por exemplo.
“Agora sabemos que estes sintomas não são apresentações raras da Covid-19, são apresentações frequentes. Podia admitir-se, a seguir ao primeiro confinamento, que não se fosse testado por causa destes sintomas porque a probabilidade de ser Covid-19 era baixa. Mas a partir do momento em que se tem a transmissão disseminada, com tantos casos assintomáticos e ligeiros entre os mais jovens, não há desculpa”, defende Vasco Ricoca Peixoto ao Observador.
Além disso, concorda que é importante delinear critérios de testagem menos fechados de modo a chegar não só aos casos suspeitos de Covid-19, mas também a todos os contactos de alto risco. A norma em vigor neste momento só exige que os contactos de alto risco fiquem em isolamento profilático e sob vigilância ativa durante duas semanas. Se fazem ou não um teste, isso dependerá da avaliação de risco pelas autoridades de saúde. Mas Vasco Ricoca Peixoto quer a eliminação dessa condicionante: todos os contactos de alto risco devem ser testados, defende.
O médico de saúde pública concorda que o alargamento dos critérios de testagem envolve um investimento na rede de laboratórios responsáveis por ela. Mas acredita haver espaço para aumentar a capacidade de testagem que já existe e, de qualquer modo, julga que qualquer investimento “compensa, porque melhora a probabilidade de alcançar os casos assintomáticos ou com sintomas ligeiros”, que perpetuam a epidemia. Por outro lado, não concorda com as estratégias de testagem em massa: “Ela deve ser direcionada e bem definida”.
É o mesmo que sugere Carlos Antunes, engenheiro da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que tem acompanhado a epidemia de Covid-19 em parceria com Manuel Carmo Gomes. Ao Observador, o especialista dá o exemplo do pico de testagem registado por altura do Natal, quando houve uma maior procura de quem pretendia participar em ajuntamentos durante a época festiva: “Não foi por se fazerem mais testes que se encontraram mais casos. Foram testes gastos para nada”, concluiu.
Segundo o perito, a prevalência sobre os casos suspeitos identificados a partir de inquéritos epidemiológicos é de 25% a 30% — ou seja, por cada 1000 testes de diagnósticos a casos suspeitos, 250 a 300 são positivos. Se a testagem for aleatória, a prevalência pode descer até 1%. “É um desperdício muito grande de testes”, considera o engenheiro.
Há longas semanas que Carlos Antunes defende que se “alargue a malha” e haja mais critérios para testar mais pessoas. Fazer mais testes significa que se vai aumentar a quantidade de infetados assintomáticos detetados — aqueles que mais escapam às autoridades de saúde e que são os verdadeiros motores da transmissão do coronavírus. “Isto permite ter um maior controlo da propagação do vírus”, conclui o especialista.
O bom exemplo da Dinamarca, que testa mais para ter menos casos
Tem sido essa a estratégia da Dinamarca, um exemplo de bom comportamento na testagem à população que Manuel Carmo Gomes apontou na última reunião do Infarmed em que participou. A 25 de dezembro, os dinamarqueses tinham 517,8 novos casos cumulativos ao longo das duas semanas anteriores, por milhão de habitantes, enquanto Portugal estava abaixo, com 406,6.
A partir daí, tudo mudou: os números na Dinamarca começaram a descer sustentadamente enquanto, em Portugal, aumentavam a pique, pelo menos até 28 de janeiro. Já esta terça-feira, as autoridades de saúde portuguesas registaram 253,3 novos casos cumulativos ao longo das duas semanas anteriores por milhão de habitantes, enquanto a Dinamarca continua a controlar ainda mais a epidemia, registando 63,2 casos.
O que fizeram os dinamarqueses e que está a escapar a Portugal? Precisamente, a testagem: aumentaram-na para diminuir os casos, enquanto por cá, mesmo com a testagem em níveis estáveis, o número de casos continuou a aumentar — um sinal de que havia muitos infetados a escapar às autoridades de saúde.
Enquanto o número de testes por milhão de habitantes efetuados em Portugal ronda os 5.000 — a 3 de fevereiro, data da última atualização enviada às instituições internacionais, era de 5208,3 —, lá o número era de 19.554,6 no mesmo dia. Desde o 1 de dezembro até essa data, o dia com maior testagem em Portugal foi o 22 de janeiro, com 7548 testes por milhão de habitantes. Na Dinamarca foi o dia anterior, com 28.745 testes.
A taxa de positividade denuncia as vantagens do aumento da testagem. Na Dinamarca, se a 25 de dezembro a taxa de positividade era de 2,8% (ou seja, por cada 1000 testes, 28 eram positivos para uma infeção pelo coronavírus), a 4 de fevereiro já estava nos 0,5% — uma performance muito positiva, segundo a OMS. Em Portugal, a taxa de positividade aumentou de 10,1% no dia de Natal para 18,1% na última quinta-feira; e chegou mesmo aos 20,5% a 1 de fevereiro.
Isto é o que Manuel Carmo Gomes, outros especialistas portugueses e mais de 2.000 cientistas europeus querem que aconteça em Portugal e em toda a Europa: seguir o exemplo da Dinamarca e aumentar a testagem para identificar mais casos, travar mais cadeias de transmissão e, com isso, ao fim de poucos dias, reduzir o número de novos casos.