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Tiago Correia é professor e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Tiago Correia é professor e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Tiago Correia. Com os prioritários vacinados, "o confinamento deixa de fazer sentido"

Em entrevista, o investigador defende que é preciso discutir se as restrições fazem sentido quando os mais velhos e os doentes estiverem vacinados. Governo devia pedir parecer à Ordem dos Médicos.

O argumento de Tiago Correia é simples. Os confinamentos — em março do ano passado e agora em janeiro — foram aplicados para proteger a população mais vulnerável à Covid-19 (os mais velhos e os que têm determinadas doenças associadas) e para diminuir a pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde, garantindo que não colapsava. Quando essa mesma população estiver vacinada, sabendo-se que isso faz com que, mesmo que sejam infetados, não tenham uma forma grave da doença, “o pressuposto do confinamento deixa de existir”.

Na opinião do professor e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, quando estiver concluída a primeira fase da vacinação e todos os prioritários estiverem protegidos — o que deverá acontecer já a meio de abril —, pode não fazer sentido continuar a limitar a mobilidade das pessoas e a restringir os seus contactos sociais.

Em entrevista ao programa “Saúde no Limite” da Rádio Observador, Tiago Correia diz que essa discussão vai colocar-se, mais cedo ou mais tarde, em Portugal. Por isso, se fizesse parte da decisão política, estaria já a pedir um parecer à Ordem dos Médicos sobre os riscos da Covid-19 na população saudável, para poder decidir depois as medidas mais adequadas.

[Ouça aqui o podcast “Sáude no Limite”, com Tiago Correia]

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Faz sentido confinar com prioritários vacinados?

Quanto ao futuro, o também membro do Centro Colaborador da OMS para as Políticas e Planeamento da Força de Trabalho em Saúde diz que pode ser útil olhar para fora e procurar, por exemplo, a estratégia dos países da Oceânia, que optaram por restabelecer, primeiro, a normalidade na vida interna, antes de pensarem na mobilidade internacional. Isto mesmo tendo em conta que o tema é mais sensível para os países da União Europeia, por causa do princípio da livre circulação de pessoas e mercadorias.

A entrevista foi feita no dia em que a Alemanha voltou a decidir limitar a utilização da vacina da AstraZeneca. Tiago Correia classifica de “muito estranho” tudo que tem rodeado esta vacina e critica a “precipitação” portuguesa na suspensão de três dias que chegou a ser decidida. A esse propósito, garante que Portugal tem bons cientistas e especialistas, que “têm conhecimento e certezas que os nossos decisores políticos acabam por não captar” e que deveriam ser mais ouvidos.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Antes de o plano de desconfinamento ter sido anunciado, sublinhou que era essencial garantir uma maior capacidade de testagem e uma maior capacidade de rastreio — inquéritos epidemiológicos bem feitos e em 48 horas. Está mais tranquilo em relação a isto?
Nesta fase, só quem está no terreno pode responder com clareza a essa pergunta. Da posição onde me encontro — eu não tenho qualquer participação no desenho das políticas, nem na sua implementação e consequente fiscalização —, só me é possível interpretar os sinais. E, nesta fase, em relação à política de testagem, vemos finalmente que há uma movimentação muito mais consistente, um desenho de uma política abrangente de testes, temos uma task force que foi finalmente empossada e que está a realizar os seus primeiros passos. Em relação aos inquéritos epidemiológicos, só vamos ter a verdadeira prova dos nove no momento em que volte a haver um aumento dos contágios e em que percebamos até que ponto é que, efetivamente, as equipas de saúde pública, constituídas por médicos de saúde pública e por outras áreas de conhecimento, conseguem ou não preencher inquéritos epidemiológicos de forma completa num curto espaço de tempo. Os inquérito epidemiológicos só são eficazes se forem realizados rapidamente, caso contrário não só a acuidade da memória das pessoas diminui, como a eficácia de tentar identificar cadeias de transmissão para quebrá-las também se perde.

Na quarta-feira, dia em que fazemos esta entrevista, arrancou uma campanha de testagem gratuita nas farmácias, também já há auto-testes disponíveis. Isto responde ao alargamento da política de testagem de que fala há muito tempo ou há o risco de criar alguma confusão?
Penso que pode haver risco de criar alguma confusão, mas, mesmo assim, acho que é um caminho que é necessário percorrer. Sempre disse que, mais do que fazer muitos testes, é importante ter uma boa política de testagem. O que interessa sempre na questão dos testes é que todos os casos de um contacto positivo sejam testados, este é o princípio essencial. Se, além disso, houver uma capacidade de as pessoas irem fazendo auto-testes, não acho que o combate da pandemia passe por aí, mas, em todo o caso, também não vejo mal nenhum se houver a disponibilidade de testes e uma tecnologia que, dentro de alguns limites técnicos, deem algum conforto às pessoas. E nem sequer vou entrar aqui na discussão dos falsos negativos e dos falsos positivos — sim, todos nós sabemos que os testes não têm uma eficácia a 100%. Penso que, entre os prós e os contras, é benéfico ter esta disponibilidade de testes e de vários tipos de testes. E se as pessoas se sentem mais confortáveis em realizar um auto-teste, que o façam. Agora, também que percebam — é uma expressão que usei pelo menos desde o início de setembro — que não há uma bala de prata para resolver esta situação. A ideia que tem de passar é que as pessoas não podem realizar os auto-testes para abdicar de outras medidas de proteção individual. Essa ideia é que não deve acontecer de todo. Há aqui um conjunto de ferramentas que vamos tendo à nossa disposição para utilizar e os auto-testes serão mais uma dessas ferramentas, a par das outras.

"Se estivesse envolvido na tomada de decisão política, aquilo que iria requerer era, por exemplo, da parte da Ordem dos Médicos, um posicionamento institucional inequívoco sobre qual é a leitura que se faz sobre a gravidade ou o risco da Covid-19 para pessoas ditas saudáveis."
Tiago Correia, investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical

A reabertura começou há pouco mais de duas semanas. O que é que lhe diz aquilo que tem visto nesta primeira fase de desconfinamento, por exemplo nos números e em como eles têm evoluído?
Têm evoluído favoravelmente. Se me pergunta se acho que se vai manter assim… Não quero contribuir para a confusão e para o ruído — e a última coisa que tenho feito ao longo deste ano é tentar dizer o que vai acontecer —, mas a minha expectativa é que os casos vão aumentando de forma gradual. É isso que temos verificado, por exemplo, no contexto europeu, que é o contexto onde estamos. É importante que se perceba que podemos chamar-lhe mola, ioiô, boomerang, pêndulo, mas o que acontece é isso: passado um confinamento e um retomar de uma certa normalidade, mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor intensidade, os contágios começam a aumentar novamente e, portanto, novas medidas são tomadas depois de forma cíclica — isso acaba por definir o que são as vagas. Olhando para aquilo que estamos a viver agora, estamos com bons números, a minha expectativa é que haja um aumento e isto tem feito parte da nossa realidade no último ano. Agora, também acho que vamos entrar numa nova fase da pandemia, com a questão da vacinação, e isso não pode ser ignorado em toda a reflexão futura que teremos de fazer sobre os contágios, o modo de gerir politicamente a circulação do vírus.

O que é que muda?
Sempre disse que Portugal era um país muito vulnerável à Covid: do ponto de vista demográfico, do ponto de vista epidemiológico e do ponto de vista social. Sempre olhei para Portugal como um país em que a Covid poderia ter efeitos negativos muito grandes. Temos uma população muito envelhecida, com muita doença e com baixo rendimento, e isso é tudo aquilo que nós sabemos que são as determinantes sociais para esta doença. Uma vez vacinada a população mais vulnerável — a população mais velha e com as doenças associadas ao agravamento da Covid —, penso que tem de ser discutido até que ponto é que as medidas que foram utilizadas até agora mantêm eficácia ou não. Quando digo isto, acho que a discussão deve ser colocada apenas do ponto de vista científico, do ponto de vista clínico. Se estivesse envolvido na tomada de decisão política, aquilo que iria requerer era, por exemplo, da parte da Ordem dos Médicos, um posicionamento institucional inequívoco sobre qual é a leitura que se faz sobre a gravidade ou o risco da Covid-19 para pessoas, para simplificar, ditas saudáveis.

Uma utente do Lar da Casa do Artista é vacinada contra a gripe, durante uma visita da ministra da Saúde, Marta temido (ausente na foto), em que enfermeiros do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Lisboa Norte vão vacinar idosos e profissionais, para assinalar o início da época vacinal contra a gripe sazonal 2020, em Lisboa, 28 de setembro de 2020. Hoje tem início a 1ª fase de vacinação gratuita contra a gripe sazonal, a qual  inclui “residentes, utentes e profissionais de estabelecimentos de respostas sociais, doentes e profissionais da rede de cuidados continuados integrados, profissionais do SNS e grávidas”. ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

O especialista defende que, quando estiver concluída a primeira fase de vacinação, é preciso repensar as medidas de restrição

ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

O que está a dizer é que pode deixar de fazer sentido aplicar confinamentos quando a população mais frágil já estiver vacinada — o que, em Portugal, será daqui a um mês?
O que digo é que não faz sentido manter as mesmas medidas quer a população vulnerável esteja ou não esteja vulnerável — esse é o ponto 1. Ponto 2: permanece uma enorme discussão científica — e, volto a dizer, a discussão neste momento é unicamente científica e é nesse plano que deve ser discutida — sobre qual é a gravidade da Covid e o risco da doença Covid para as pessoas que não têm as comorbilidades associadas ao agravamento da Covid, aquelas quatro doenças de que todos ouvimos falar: doenças renais, cardíacas, coronárias e respiratórias. Quando as pessoas com essas doenças estiverem vacinadas e quando as pessoas mais velhas estiverem vacinadas, qual é o risco de uma pessoa saudável contrair Covid? Esta discussão é científica, volto a dizer, mas tem de haver um entendimento sobre se o risco de ter a doença é assim tão significativo que justifique confinamentos ou não. O facto de nós estarmos a lidar com uma doença altamente transmissível colocava desafios muito grandes na gestão da pandemia antes da vacinação. Não havia forma política de proteger as pessoas vulneráveis, não as podíamos isolar em guetos sociais, até porque nós sabemos que parte das pessoas que contraíram a Covid e as manifestações graves da Covid não eram necessariamente apenas as pessoas institucionalizadas — o vírus circulou na comunidade e fez estragos na comunidade. Mas, a partir do momento em que as pessoas estão seguras, não desenvolvem manifestações graves da doença e, consequentemente, os cuidados de saúde não ficam comprometidos, estes pressupostos fazem com que o confinamento deva ser questionado. Nós sabemos quais são os efeitos perversos de um confinamento. Um confinamento só se decreta se se considerar que a sua existência é menos prejudicial do que a circulação do vírus. A partir do momento em que as pessoas mais vulneráveis estiverem vacinadas, penso que terá obrigatoriamente de haver um posicionamento científico inequívoco sobre qual é o risco, qual é o problema de o SARS-CoV-2 circular na população mais nova e sem outras doenças associadas. Qual é o meu risco, que não tenho outras doenças, de contrair o SARS-CoV-2? E devo ou não estar confinado?

E temos respostas para isso? Aquilo que mais ouvimos desde março do ano passado é que continuamos a saber pouco sobre esta doença. E não temos só casos graves entre a população prioritária do primeiro grupo de vacinação. É legítimo colocar a proteção das outras pessoas em segundo plano, optando por não impor confinamentos quando toda a primeira fase de vacinação estiver concluída?
Isto é um equilíbrio instável que se tem de fazer. Não tenho essa resposta. Quando vejo médicos de várias especialidades a intervir no espaço público, vejo que eles olham para a sua especialidade e salientam as situações graves de Covid. Mas nós aquilo que não podemos ter é uma medida de resposta à Covid que seja excessivamente desproporcional a um problema de saúde — isto aplica-se à Covid ou a outra doença qualquer. Para sermos justos, temos de colocar ao lado de um médico infecciologista, de um pneumologista, que estão altamente preocupados com a Covid, um economista, um pedagogo, um psiquiatra, que também façam outros balanços e balanceiem um pouco aquilo que é a reflexão sobre quais são os riscos a que estamos sujeitos, quer pela doença, quer pelas respostas políticas para lidar com a doença — e esta discussão tem de ser feita. Existe uma enorme discussão científica e tomada de posição individual de médicos sobre a gravidade da Covid. Agora, o que tem de ser feito é uma tomada de posição institucional — e parece-me que a Ordem dos Médicos é quem em Portugal tem essa função — sobre qual é o risco para a população saudável, mais nova, que não tem outras doenças, de poder vir a contrair o vírus, para então definir-se quais são as respostas políticas para gerir a transmissão mais adequadas nessa circunstância. E volto a dizer: a discussão aqui é puramente clínica, puramente médica. E é essa clarificação que gostava que fosse vista. É claro que o SARS-CoV-2 leva a manifestações de Covid graves e até temos agora aquilo a que se chama o long-Covid, aquelas manifestações de doença crónica. A questão é: qual é a representatividade disto? Qual é o peso que isto tem nas franjas mais novas da população? Porque não é por ser 1 caso, 2 casos, 10 casos, 100 casos que pode justificar um confinamento constante, porque isso seria altamente desproporcional.

"O que se vai perceber, dado a população estar a ser vacinada, é que não vai haver um aumento correspondente dos óbitos e da ocupação dos cuidados de saúde. E, quando chegarmos a essa conclusão, vai haver um ruído cada vez maior sobre qualquer é a adequação de se manter medidas de restrição da mobilidade das pessoas e da redução dos contactos sociais."
Tiago Correia, investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical

Que impacto é que isso teria no nosso plano de desconfinamento? A primeira fase de vacinação — pessoas com mais de 80 anos e pessoas com determinadas doenças associadas — termina agora em abril. Depois disso, temos várias medidas que continuam em vigor. Por exemplo, só em maio os restaurantes deixam de ter limite de horário, mas, ainda assim, só podem estar 6 pessoas, ou 10 em esplanadas, por exemplo. Se se chegasse a essa conclusão, deixavam de fazer sentido estes limites nos restaurantes em maio? É disso que estamos a falar?
Em termos práticos, é disso que estamos a falar.

Toda e qualquer limitação e restrição?
A questão para mim é muito simples: existem muitas outras doenças infecciosas e por contágio e nós não temos aplicadas medidas como temos para o SARS-CoV-2, porque se assume que elas existem e vão causando o seu estrago, passe a expressão, que vão circulando e contagiando as pessoas, que vão levando a sintomas — e ninguém pára um país por isso. Os países pararam em virtude daquilo a que se assistiu: o colapso iminente dos sistemas de saúde. E nós vimos isso a acontecer também em Portugal agora, em janeiro e em fevereiro, portanto ninguém tenha dúvidas de que isso acontece. A questão é: quando nós temos vacinas que estão a revelar uma elevada eficácia para prevenir as manifestações graves de doença, o pressuposto do confinamento deixa de existir, a meu ver. A resposta que fica em aberto — e é esse o meu apelo, que se faça essa discussão agora, para que se perceba quais são as medidas políticas a adotar nos próximos meses — é qual é o risco da Covid para as pessoas mais novas e mais saudáveis. E não é porque há um exemplo ou meia dúzia de exemplos ou um sem número de exemplos que não estão quantificados de long-Covid e de outras complicações que nós podemos tomar essa decisão — será uma decisão que, do ponto de vista científico, não está bem fundamentada. É por isso que agora que estamos a terminar a primeira fase da vacinação e que temos muitos dados em Portugal, devemos fazer um estudo muito rigoroso sobre as consequências e as implicações da Covid a curto e a longo prazo, para se identificar, então, outras populações eventualmente de risco, que não sejam apenas as pessoas mais velhas e com aquelas com comorbilidades associadas ao agravamento da Covid, para eventualmente termos de afinar um pouco melhor as respostas políticas. Agora, do ponto de vista de saúde pública, não me parece de todo adequado manter uma medida de confinamento ou qualquer que seja, quer a população esteja vacinada quer não esteja. A vacina o que pretendeu foi precisamente retomar alguma da normalidade que a Covid veio interromper. As respostas políticas têm de ser proporcionais. Não podemos ter uma defesa e uma proteção contra um vírus que cause danos maiores do que o próprio vírus, isso é que não pode acontecer.

O Reino Unido, apesar de estar mais avançado na vacinação, não parece colocar ainda esta questão — ainda que a vacinação seja um dos critérios considerados no plano de desconfinamento. Aliás, o plano de desconfinamento do Reino Unido é bastante mais lento do que o nosso.
Mas é o tipo de discussão que nós precisávamos de fazer e esta questão vai colocar-se em Portugal nos próximos meses. Não consigo antever o que vai acontecer em relação aos contágios agora na Páscoa, mas a tendência que me parece natural, como disse, é que haja nas próximas semanas um aumento da incidência. Não estou à espera de que seja muito significativo, mas que haja um aumento. O que se vai perceber, dado a população estar a ser vacinada, é que não vai haver um aumento correspondente dos óbitos e da ocupação dos cuidados de saúde. E, quando chegarmos a essa conclusão, vai haver um ruído cada vez maior sobre qualquer é a adequação de se manter medidas de restrição da mobilidade das pessoas e da redução dos contactos sociais. Isto vai-se colocar, não tenho a menor dúvida. E é por isso que é com tempo que se faz essa discussão. Não é quando houver um ruído ensurdecedor sobre tudo isto, já sob enorme pressão, um desgaste que depois também é aproveitado por certos movimentos sociais, sejam eles apelidados de negacionistas ou não. A maioria da população está sensível à Covid, às respostas políticas, tem aderido, tem abdicado do seu quotidiano, e é por respeito a essas pessoas que os decisores políticos, técnicos e científicos têm de começar à procura de respostas para que não se sintam defraudadas naquele que tem sido o seu esforço ao longo de um ano e que percebam exatamente quais são os próximos capítulos de toda esta situação. Isto começa a ser discutido noutros países, de forma inicial. Não há respostas claras, mas esta é uma discussão que se tem de fazer. Volto a dizer: não se pode assumir que as respostas políticas mantêm-se inalteradas quer a população esteja vacinada quer não esteja vacinada. Para mim são coisas complemente diferentes, mantendo o tal princípio da proporcionalidade.

À parte disto, ainda há uma outra questão que tem a ver com a mobilidade internacional de pessoas e a questão das variantes. E sim, isso ainda coloca maior complexidade em tudo isto, mas, olhando para os países, sobretudo, da Oceânia, percebemos que fazem uma discussão separada: por um lado, aquilo que é a mobilidade interna e a normalidade dentro de fronteiras; por outro, a relação do país com outros países e a com a circulação internacional de pessoas. Aquilo que me parece, adotando esse princípio para Portugal e para os países europeus, é que os países têm de estar, em primeiro lugar, preocupados e centrados em recuperar uma normalidade dentro de fronteiras, para que as pessoas voltem a estabelecer algumas das suas rotinas que foram suspensas. E, com uma maior prudência, depois disso, pensar como é a circulação internacional de pessoas — também havendo aí um caminho que se tem de fazer do ponto de vista do conhecimento científico sobre a questão da eficácia das vacinas perante as variantes que vão surgindo. Mas esta discussão tem de se separar, nós não podemos é estar a desconfinar e ao mesmo tempo estar a tomar decisões sobre a circulação internacional de pessoas, porque são muitos fatores de ruído que se introduzem em simultâneo. Vejo como maior possibilidade um retomar de normalidade para dentro com a vacinação da população — é o tal ponto de interrogação que coloco sobre a discussão de quais são as implicações da Covid para as pessoas mais saudáveis e mais novas — e só depois podemos eventualmente fazer a discussão sobre circulação internacional de pessoas. Isso coloca um desafio tremendo a países como Portugal, no espaço Schengen, e com os princípios da União Europeia, da livre circulação de pessoas e mercadorias, é uma pressão política e económica muito significativa. Em todo o caso, sublinho que aí podemos aprender com os países da Oceania — são ilhas, é verdade, mas têm conseguido gerir melhor do que nós, precisamente porque têm esta noção de que uma coisa é, em primeiro lugar, a vida interna, e só depois de essa vida interna estar protegida, permitir uma nova circulação de pessoas. E tentam encontrar alternativa económicas para isso. A Austrália pôs em curso agora um plano de turismo doméstico precisamente para tentar compensar de alguma forma as perdas causadas pelas restrições da mobilidade internacional — e eles são muito agressivos, do ponto de vista da entrada de pessoas, no rastreio e nas medidas de quarentena que são impostas a quem vem de fora.

O investigador estranha todas as polémicas em torno da vacina da AstraZeneca e lamenta as consequências na confiança das pessoas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Há pouco estava a falar-lhe  do Reino Unido, que usa mais indicadores do que Portugal no desconfinamento. Por cá, parece que estamos presos a uma matriz de risco com dois eixos: a incidência e o R. Estamos a olhar para os indicadores errados ou estamos só a olhar para poucos indicadores?
Sempre disse que, independentemente dos indicadores para que olharmos, não há linhas vermelhas. Disse isto quando entrou no debate em Portugal aquela discussão de qual era o número mágico de internamentos e internamentos nas UCI. Esses números mágicos não existem e penso que, apesar de tudo, o Governo, na última semana, já deu conta disso — quando, olhando para essa matriz de risco e epidemiológica, diz que não há apenas quatro cores, há gradientes de cores, e as decisões políticas são tomadas após uma ponderação de fatores, sem linhas vermelhas absolutas. Quando mais indicadores houver e melhor forem conjugados, mais facilmente percebemos temos aqui uma noção de um conjunto sobre a situação. Os indicadores que foram escolhidos por técnicos, pessoas competentes, do ponto de vista epidemiológico, fazem sentido. Outros indicadores fariam sentido? Sim, também fariam sentido. Não acho que haverá problema se olharmos apenas para estes indicadores. Vejo no espaço público propostas de outros indicadores e interpretação através de outros indicadores. Poderiam ser considerados, poderiam também ser sujeitos a críticas – outros eventualmente não foram considerados. O que penso é que tem de haver uma ponderação da interpretação dos dados, isso sim, que temos de olhar para vários indicadores em conjunto, de forma agregada, para tomar uma decisão. Pensando em concreto nesta matriz de risco e quando entrarmos numa cor mais amarelada, quer por via do R(t), porque é o indicador que vai aumentar primeiro, vamos ter de olhar para outros indicadores, que não estão a ser observados neste momento nessa matriz, para chegar à conclusão sobre se parar ou não.

Com a reabertura de atividades, é impossível ficarmos sempre no verde.
Podemos chamar mola, boomerang, ioiô, o que quisermos. À medida que retomamos a normalidade, de forma mais rápida ou mais lenta, mais intensa ou menos intensa, os contágios acabam por aumentar, e isso tem obrigado os países da Europa, de forma cíclica, a medidas de restrição da mobilidade. Quando entrarmos numa zona mais amarelada daquela matriz de risco, o Governo e o espaço público vão compreender e olhar para outros indicadores, nomeadamente, por exemplo, a percentagem de positividade dos testes, que nos ajuda a perceber qual é a disseminação do vírus e, a partir daí, tentar fazer uma interpretação e transformar isso em decisões políticas. Agora, o que não estou à espera que aconteça foi o que acabou por nos acontecer no final de dezembro/início de janeiro: tomar decisões mais tardias e com uma base de incidência já muito superior, isso fez com que houvesse aquele aumento exponencial. Não só porque as pessoas estão atentas, porque já perceberam como é que o vírus se comporta, mas também porque não estamos nessa altura do ano — de frio, que é um tempo propício para contágios por vírus de natureza respiratória. Acho que a matriz de risco cumpre uma função: é simples, qualquer pessoa consegue perceber o que está ali em termos de cores. Pode criticar-se, mas não acho que haja problemas na gestão da pandemia por termos aquela matriz de risco e, mesmo assim, acaba por ser eficaz para tentar dialogar com uma população tão diversa como temos em Portugal.

Essa matriz mostra que Portugal parece estar a viver em contraciclo com o resto da Europa. Temos cada vez menos casos e menos mortes diárias enquanto vemos países a decretar novos confinamentos e medidas muito restritivas. Devemos preocupar-nos com o que está a acontecer na Alemanha e em Itália, por exemplo?
Nós estamos como estamos agora em virtude da situação dramática que vivemos em janeiro e fevereiro. O que aconteceu em Portugal é que fomos o pior país da Europa em janeiro e em fevereiro, enquanto os outros não foram. Nós acionámos o travão de mão, pisámos o travão a fundo. E isso fez com que a situação onde estamos agora seja reflexo do travão de mão. Esses países que não tiveram o travão de mão, porque também não tiveram aquele pico que tivemos em Portugal, foram aligeirando as medidas e os contactos sociais foram aumentando. Tem sido a relativa inevitabilidade do comportamento das pessoas. Para o bem e para o mal, o que me parece claro é que, em virtude de Portugal ter sofrido aquela situação dramática em janeiro e em fevereiro, os casos baixaram e agora penso que os contágios irão aumentar em Portugal num espaço de um mês. Isso vai acabar por ser benéfico, é um aumento que vai acontecer de forma lenta, mas já com a população vulnerável vacinada. Nós ainda não entrámos na terceira vaga, porque o que tivemos em janeiro/fevereiro foi o recrudescimento da segunda vaga. Se vier a acontecer em Portugal, será numa fase em que a população vulnerável está vacinada. E aí — voltamos à questão — terá consequências menos gravosas para os internamentos e para as mortes. Quais são as respostas políticas que devem ser utilizadas se percebermos que não vai haver pressão sobre os serviços de saúde e os óbitos Covid também não vão aumentar?

"Temos de ter confiança nas nossas autoridades científicas, nos nossos cientistas, porque eles têm conhecimento e certezas que os nossos decisores políticos acabam por não captar e isso também tem consequência na confiança que a população tem acerca do processo de vacinação."
Tiago Correia, investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical

Tem havido várias polémicas relacionadas com a vacinação. Uma delas com consequências mais graves, a suspensão da vacina AstraZenenca. Agora, a Alemanha, por exemplo, voltou a limitá-la às pessoas mais velhas, acima dos sessenta anos. Portugal tem lidado bem com esta questão? Como é que se resolve este receio natural que as pessoas podem ter?
Divido a minha resposta em duas partes. Uma é uma certa incompreensão no que está a acontecer com esta vacina em concreto. A atenção pública, política, o medo, a desconfiança, não fazem sentido à luz dos resultados da vacina e à luz daquilo que são as consequências das outras vacinas que estão a acontecer. Não consigo explicar esta atenção desmedida e desproporcional da AstraZeneca.

A AstraZenenca não contribuiu também para isso? Recentemente, por exemplo, foi forçada a corrigir os dados entregues aos Estados Unidos.
Estamos a assistir a isso. Aliás, se recuarmos, a vacina da AstraZeneca era a que estava mais adiantada. Na altura de setembro, era a mais promissora, Depois tivemos um problema nos ensaios clínicos, que foram suspensos, tivemos aquela confusão dos resultados dos ensaios clínicos, em que a toma de uma dose e meia conferia mais proteção. Este processo há muito tempo que é um processo muito estranho e que está envolto numa enorme complexidade que não consigo perceber, honestamente. Mas também digo sinceramente: se tivesse uma vacina da AstraZeneca em minha posse para ser administrada a mim ou aos meus familiares mais velhos, fá-lo-ia sem qualquer dúvida. Acho mesmo que esta tensão e que tudo aquilo a que estamos a assistir é desproporcional face ao conhecimento que temos em relação ao comportamento da vacina. A vacina foi aprovada e isto é um aspeto que não deve ser contornado. Todo o ruído dos reguladores nacionais por cima daquilo que foi decidido pela Agência Europeia do Medicamento também nos obriga a tirar lições da gestão política em relação às autoridades de saúde no modo como se gere a política de saúde no espaço europeu. Penso que há aqui danos irreparáveis, porque, em Portugal não tanto, mas no espaço europeu existe uma enorme desconfiança em relação aos processos de vacinação da Covid e de outras doenças. A AstraZeneca está com uma baixíssima aceitação publica em países como França ou a própria Alemanha. Num contexto em que sabemos todos os problemas de acesso à vacina, haver uma vacina tão posta em causa não beneficia a ideia de atingirmos uma imunidade mais rápida através da vacinação e isso é algo que me preocupa.

A segunda parte da resposta: como é que as pessoas estão a entender a vacinação? Penso que tem havido uma certa confusão no debate sobre qual é a função da vacina. Neste momento temos quatro vacinas aprovadas no espaço europeu. Destas quatro vacinas, a única que reportou dados concretos sobre a redução da transmissão do vírus foi a da AstraZenenca, que estimou a redução do vírus em dois terços, 66% e 67%. As outras vacinas que estão aprovadas só nos deram dados sobre a redução da doença grave, que acontece quando alguém contrai o vírus e não desenvolve a doença. A AstraZeneca é a única que nos dá dados de que, além de reduzir a doença, também reduz a transmissão do vírus. Penso que isto é mais uma discussão que nós temos de fazer em Portugal. As pessoas tem de ser informadas de que pode não levar à redução da transmissão do vírus. Temos cientistas e temos comissões técnicas de elevada competência ao nível internacional. Os nossos cientistas são muito bons em muitas áreas e nesta área também são bons. Acredito que as respostas políticas e um certo medo da tomada de decisão política muitas vezes não reflete aquele que é o nosso conhecimento técnico e científico. Quando a vacina da AstraZeneca estava a ser introduzida e começou a haver aquele ruído enorme sobre se a população com mais de 60 ou 65 anos devia ser vacinada, Portugal esteve até ao último dia para decidir esse critério. Ora, tenho a certeza de que a comissão técnica de vacinação já tinha uma noção muito clara sobre se a vacina devia ser administrada ou não. Depois, toda a gestão da suspensão de três dias, que foi uma enorme precipitação e que não reflete o conhecimento científico que as nossas autoridades técnicas têm. Talvez Portugal tenha sofrido uma pressão política, por ser um país pequeno. Temos de ter confiança nas nossas autoridades científicas, nos nossos cientistas, porque eles têm conhecimento e certezas que os nossos decisores políticos acabam por não captar e isso também tem consequência na confiança que a população tem acerca do processo de vacinação. Isto para dizer que, politicamente, devemos confiar nos nossos decisores técnicos, científicos, porque estamos muito bem servidos desse ponto de vista. Se grandes países tomam uma decisão e nós virmos que, cientificamente, não é uma decisão racional, não devemos fazer. Podemos marcar pela diferença, podemos arriscar, se a nossa comunidade científica estiver confiante com isso.

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