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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

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"Toda a gente quer fazer surf mas ninguém quer morrer". Nic Von Rupp, da Praia Grande à Nazaré para conquistar o mundo dentro de água

Tem nome estrangeiro mas é português nascido e criado. O surfista de ondas grandes falou com o Observador sobre medos, metas e até os Jogos Olímpicos. E a conquista do mundo, da Praia Grande à Nazaré.

A grande maioria dos desportos e das modalidades é bem mais do que propriamente a ação de os praticar. Grosso modo, o processo de começar a praticar algum desporto é curiosamente semelhante àquele por que passamos quando nos atravessamos: existe o conhecimento, o interesse, a sedução, o amor e, por fim e se tudo correr bem, uma vida inteira lado a lado. E tal como numa relação entre duas pessoas, o desporto exige rituais, hábitos, rotinas. Exige, se o objetivo for bem sucedido, uma entrega praticamente completa e total. Para isso, é necessária uma imersão naquilo que é o mundo à volta daquela modalidade – e que está bem para lá da ação de a praticar.

O surf, sem sombra de dúvidas, é um dos exemplos máximos dessa premissa. Ser surfista é ser entusiasta do surf; é muito mais do que pegar na prancha, estar no mar durante umas dezenas de minutos e voltar a sair. Envolve a vivência, as músicas, a história, uma espécie de lifestyle que dificilmente se assemelha a qualquer outro desporto. Ser surfista, para quem o é, raramente foi uma escolha. Foi algo que aconteceu, de forma mais ou menos premeditada, e que não tinha propriamente um ponto de retorno. Foi assim com Nic Von Rupp, o surfista português de 28 anos que teve “o percurso perfeito, o percurso ideal”. “No ensino habitual, tem de se ter as bases para crescer, acabar o 12.º ano e tirar um curso superior e no surf o meu percurso foi tão natural quanto isso”, como conta ao Observador.

Nicolau Von Rupp: “Só agora temos a primeira geração de pai surfista, filho surfista”

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Pouco depois das 9h da manhã, Nic estava na garagem que tem no porto da Nazaré. As previsões meteorológicas apontavam para ondas acima do normal e o surfista da Praia Grande queria ir à procura da maior onda alguma vez surfada para bater o recorde de Rodrigo Koxa, o brasileiro que em abril de 2018 superou Garrett McNamara com uma onda de 24,38 metros na Praia do Norte, na Nazaré. Para isso, para entrar dentro de água e fazer aquilo a que se propõe durante todo o inverno – encarar de frente as ondas de que todos fogem –, são necessárias cerca de duas horas e meia de preparação. É preciso organizar a equipa de segurança que vai estar em motas de água, caso alguma coisa corra mal, abastecer as ditas motas, estabelecer horários com a capitania, levar mais do que uma prancha para estar preparado para todas as condições e ainda perder largos minutos com o fato. O fato que, para um surfista de ondas grandes, não é apenas um daqueles que se compram numa qualquer loja de desporto. Para Von Rupp, a esse fato normal acrescenta-se um outro mais almofadado e com capuz, para amortecer eventuais quedas, um colete com tecnologia de última geração que ejeta o surfista para a superfície quando este cai para zonas muito profundas e ainda um segundo colete.

Depois de um dia onde as ondas não quiseram ajudar ao objetivo do recorde mundial, Nic Von Rupp falou com o Observador sobre a forma como convenceu os pais, que vinham de “um background muito académico e não desportista”, a praticar surf, sobre o porquê de ter deixado o surf dito regular para abraçar uma carreira no surf de ondas grandes e os objetivos que quer alcançar a curto/médio prazo. Na altura da entrevista, o surfista falava sobre o sonho de integrar o circuito mundial de ondas grandes, onde só se entra por convite: entretanto, Von Rupp foi considerado um dos seis melhores surfistas de ondas grandes do ano nos WSL Big Wave Awards, uma espécie de Óscares do surf, e vai mesmo integrar o circuito mundial na próxima temporada (juntando-se ao também português Alex Botelho).

O fato que Nic Von Rupp leva para dentro de água é bem diferente dos que utilizam os surfistas do surf dito regular. DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Existe muito a ideia de que és português mas nasceste ou viveste noutro país, por causa do teu nome. Mas não é assim, pois não?
Eu nasci e cresci cá. O meu pai é alemão e a minha mãe é portuguesa. A minha raiz é cá em Portugal e sempre foi, nunca vivi em lado nenhum fora de Portugal. Mas pronto, ao longo da minha infância passei muito tempo fora de casa, na Austrália, no Havai, estava sempre a viajar. Atrás do sonho, por assim dizer.

E nunca tiveste vontade de emigrar e ir para outro país?
Nunca tive vontade de ir viver para outro sítio, muito sinceramente. Adoro Portugal, acho que tem condições excelentes, somos um povo educado, temos uma cultura fortíssima, boa comida. Nunca senti necessidade. E Portugal hoje em dia está muito mais na moda mas nós portugueses sempre soubemos que isto aqui é um tesouro. Nunca tive vontade. Aliás, o meu pai sempre me disse isso. O meu pai viveu nos Estados Unidos durante 30 anos e mudou-se para cá e sempre disse que isto era um paraíso. Foram sempre as palavras dele.

Em Portugal, sempre viveste na Praia Grande? O facto de viveres e cresceres tão perto do mar tornou o interesse pelo surf algo natural?
Sempre vivi na Praia Grande. Obviamente que crescer perto do mar facilita a evolução. Mas é engraçado que quando comecei a fazer surf, aqueles primeiros passos, aquele primeiro verão, quase que tive uma sensação de que já tinha praticado o desporto. Foi tão natural, fez tanto sentido, que a partir daí foi escalando de uma forma rápida. Mas sim, claro, se eu vivesse no centro de Lisboa era muito mais complicado chegar ao mar. Os meus pais sempre incentivaram muito o desporto e a vida saudável, não ficar em casa, ou seja, cada vez que eu queria fazer surf eles sempre me ajudaram… Nunca dificultaram.

Essa educação dos teus pais, mais de outdoor e de atividade física, ajudou-te na altura em que decidiste ser surfista profissional?
Ajudou bastante. A educação foi sempre mais de exterior do que de interior, ou seja, sempre foi natural. Antes de viver na Praia Grande, vivia em Oeiras. E o surf, nos anos 90 cá em Portugal, não era nada. Mas o meu pai já tinha vivido nos Estados Unidos e lá já havia uma cultura de surf bastante grande e na altura havia aquelas músicas dos Beach Boys! O meu pai tinha aquelas cassetes dos Beach Boys e eles falavam de surf. E eu lembro-me perfeitamente de ter para aí quatro anos – nunca tinha experimentado surf –, e sentia uma conexão com aquele surf de que eles falavam. O meu pai explicava-me que era a praia e as ondas e tal e foi assim o primeiro clique que eu tive. “Fogo, surf, altamente, que fixe”. Apesar de eu nem imaginar o que era, só passados quatro anos é que tive a oportunidade de começar, de me aventurar no mar, através do bodyboard. Mas sem dúvida que foi na Praia Grande que eu tive assim uma maior conexão, aquele primeiro verão de estar na praia, brincar no mar…e depois foi evoluindo a partir daí.

"O meu pai tinha aquelas cassetes dos Beach Boys e eles falavam de surf. E eu lembro-me perfeitamente de ter para aí quatro anos -- nunca tinha experimentado surf --, e sentia uma conexão com aquele surf de que eles falavam. O meu pai explicava-me que era a praia e as ondas e tal e foi assim o primeiro clique que eu tive. 'Fogo, surf, altamente, que fixe'".

Foi algo que aconteceu de forma progressiva, portanto?
Foi super natural. Foi mesmo o percurso perfeito, o percurso ideal. No ensino habitual, tem de se ter as bases para crescer, acabar o 12.º ano e tirar um curso superior e no surf o meu percurso foi tão natural quanto isso. Desde os castelos de areia, dar mergulhos no mar, carreirinhas, bodyboard. Os meus pais não me queriam deixar fazer surf…tirava sempre metade da semanada que os meus pais me davam para juntar e depois comprar uma prancha. Tive de convencer os meus pais. Foi pura paixão, era um objetivo.

E como é que conseguiste convencer os teus pais de que o surf era aquilo que querias fazer?
Eu comecei através do bodyboard, comecei a passar várias horas dentro de água e nesse verão os meus pais não me queriam deixar fazer surf. Não me queriam oferecer uma prancha porque achavam que o surf e o bodyboard eram coisas passageiras, que eu agora estava interessado e amanhã já não estava. Eles viam o surf como uma evolução do bodyboard e só me queriam deixar passar para essa fase quando eu já estivesse farto do bodyboard, para não andar a saltar de uma coisa para outra. E depois achavam um desporto perigoso, as quilhas, os nós…uma pessoa que não está dentro do meio olha sempre para tudo aquilo como se fosse uma faca.

E como é que conseguiste que eles ultrapassassem esse medo?
Lembro-me perfeitamente de que o João Macedo, que hoje em dia também é surfista de ondas grandes, teve de ir a casa dos meus pais, teve de sentar-se com eles e explicar que o surf não era perigoso, que eu tinha jeito e tal. Nem falávamos de futuro, na altura. Ele lá conseguiu convencer os meus pais mas teve mesmo de ser um jantar a sério, eu disse-lhe: ‘Epá oh João, tens de ir falar com os meus pais’, e eu tinha oito anos. Foi mesmo assim uma mesa redonda e ele a falar e lá conseguiu convencer os meus pais. Então comecei a fazer surf com ele e entretanto já queria fazer mais do que só as aulas. Arranjei ali um esquema em que ele me emprestava uma prancha e eu ia para o mar fora dos horários das aulas. Era tão vidrado que passava o dia todo dentro de água e nem comia. No final desse verão fomos a um campeonato no Porto, isto em 1999, e eu acabei por ganhar esse campeonato, era tipo Sub-12. Foi isso que me lançou, pensei em investir a sério… Uma coisa é fazer surf no verão, estamos de férias e tal, outra coisa é fazer surf no inverno. Conseguir equilibrar os estudos com o surf, a água fria, as tempestades…

A preparação para entrar no mar envolve abastecer as motas de água e organizar a equipa de segurança que vai acompanhar o surfista. DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

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O surf começou a ocupar uma parte considerável da tua vida quando ainda eras muito novo. Como é que conciliavas o desporto com os estudos?
Os meus pais, o meu irmão, os meus avós, têm todos um background muito académico. Eu não venho de um background de desportistas. Os meus pais só me deixavam fazer desporto se eu continuasse a estudar e se tirasse boas notas e fiz isso até ao 12.º ano. Mesmo quando eu comecei a afirmar-me como um potencial internacional, os estudos sempre foram a prioridade. Tinha de acabar o 12.º e só a partir daí é que fazia o que quisesse. E a evolução de um surfista profissional passa por estar muito tempo no Havai, na Austrália, e eu lembro-me de que, na altura, o Colégio Alemão, que era onde eu andava, não facilitava muito nisso e os meus pais nunca largaram o osso, por assim dizer. Mas também estamos a falar de uma fase em que o surf não estava numa dimensão em que está hoje em dia. O Tiago Pires, que é o pai do desporto em Portugal, estava a dar os primeiros passos como profissional. Ou seja, era tudo muito mais complicado, não havia as facilidades que há hoje em dia, com os home schoolings e tal. Ser profissional era um sonho, não era uma realidade. Portanto, acabei o 12.º, nessa altura já tinha sido campeão europeu, e consegui arranjar uns patrocínios bons, comecei a viajar mais e foi isso que me lançou.

E agora, que és mais velho e tens uma visão um pouco mais abrangente do mundo e da vida, não te preocupas em ter um plano B, uma alternativa ao surf?
Eu sou uma pessoa que pensa muito no futuro e todos sabemos que os desportistas têm sempre os dias contados. No geral, um desportista comum, em todas as áreas, vive o pico da carreira entre os 28 e os 35 anos. Ainda que no surf seja um bocado diferente – o Kelly Slater tem 45 anos e está na vanguarda –, penso diariamente que há uma vida para além do surf. Gostaria de ficar envolvido no surf para o resto da minha vida mas se calhar do outro lado da mesa, a trabalhar para uma marca, a orientar jovens desportistas É o que vejo para o meu futuro. Gostava de voltar a estudar. Mas agora tenho uma oportunidade única, estou no topo da minha forma física e quero aproveitar ao máximo para conquistar o máximo que conseguir. Esse é o meu grande objetivo agora nos próximos cinco anos.

"A evolução de um surfista profissional passa por estar muito tempo no Havai, na Austrália, e eu lembro-me de que, na altura, o Colégio Alemão, que era onde eu andava, não facilitava muito nisso e os meus pais nunca largaram o osso, por assim dizer".

Na fase da carreira em que estás agora, qual é o próximo patamar que queres alcançar?
[A entrevista aconteceu antes de Nic Von Rupp ser convidado para o circuito mundial de ondas grandes]
Assim de repente, o grande objetivo é qualificar-me para o circuito mundial de ondas grandes do próximo ano. Só acontece por convite, há cinco convidados todos os anos e com as performances que fui fazendo ao longo do ano, estou numa posição muito boa para ser convidado. Basicamente, ser convidado consiste em ser um stand out, em ser um performer fora do comum nas três ondas do circuito mundial de ondas grandes: Nazaré, Mavericks nos Estados Unidos e Jaws no Havai. Em Mavericks fiz das melhores performances deste ano, fiz lá uma onda que foi considerada uma das melhores ondas alguma vez surfadas lá. Estou no bom caminho. Esse é o meu objetivo a curto prazo, porque isso decide-se tudo em maio. E quero focar-me cada vez mais na Nazaré e conseguir surfar a maior onda.

https://www.instagram.com/p/BxDVYlwluGl/

Ainda fizeste parte do World Qualifying Series, no surf dito regular, onde estão o Kikas e o Vasco Ribeiro. Porque é que decidiste dedicar-te ao surf de ondas grandes?
O surf de ondas grandes sempre foi um desporto muito perigoso. E a segurança tem vindo a evoluir e a estabelecer-se ao longo do tempo, antigamente era um desporto muito individual, cada um queria surfar a maior onda e ninguém pensava na segurança: em termos de ter uma equipa, como nós temos agora na Nazaré. O surf de ondas grandes estava associado a um risco enorme, houve muitas mortes ao longo dos anos. E obviamente que toda a gente quer fazer surf mas ninguém quer morrer. Todos nós queremos surfar as maiores ondas mas ninguém quer morrer. E sempre gostei de surfar ondas grandes mas nós agimos consoante a sociedade nos manda, de certa forma, e surfar ondas grandes é fora do comum. O comum é correr os Campeonatos, entrar no circuito mundial, subir no ranking…no meu caso, esse foi o meu objetivo durante muito tempo. Só que o que me motivava mais era surfar ondas grandes.

Por ser mais desafiante?
Pelo desafio constante, sim. O meu forte são as ondas grandes, as ondas boas, aí é que eu sobressaio e foi isso que montou a minha imagem a nível internacional. Foi ser reconhecido como um surfista de ondas potentes. E chegou uma altura em que os meus patrocinadores me deram uma opção: ou continuava a seguir o circuito ou seguia um caminho totalmente oposto, fora do que é o normal e fazia o meu próprio caminho, fazia filmes, entrava no circuito mundial de ondas grandes, tinha uma presença forte nos spots icónicos das ondas grandes. E é uma decisão sempre complicada, porque é fora do comum e ninguém gosta de andar fora do comum. Só que obviamente que, em termos de impacto, uma pessoa ser única é muito mais gratificante. Chegar ao final do dia e saber que surfei de uma forma que nunca foi surfada e fiz coisas que nunca foram feitas é muito mais satisfatório. E já estou neste caminho a 100% há dois anos e acho que estou no caminho certo. Tenho-me solidificado cada vez mais e está a correr bem.

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E esse medo continua a existir? Ou vai desaparecendo com o tempo e a experiência?
Sim, existe, claro. Ainda no outro dia estava a falar com um dos principais surfistas de ondas grandes, que hoje em dia é treinador, o Carlos Burle, e estávamos a falar sobre a preparação física para as ondas grandes e tal. E acabámos a falar sobre medos. E ele é capaz de ser o surfista que mais coisas conquistou no mundo inteiro, no que toca a ondas grandes. E a verdade é que o medo existe, em todos os aspetos, e é aí que nos relacionamos mais com a vida normal. Todos nós temos os nossos medos e até atingirmos os nossos objetivos existe um período longo e demorado que cria receio. E é a mesma coisa no surf. Nós temos aquele objetivo de surfar a maior onda mas há aquele receio, aquele medo, principalmente quando estamos a lidar com a natureza, com uma força superior. O medo é bom, é sinal de que estamos conscientes do perigo e é andar naquela corda bamba em que temos de trabalhar com a segurança e trabalhar todos os dias e superar o medo. Aquilo que nos satisfaz ao final do dia é superar o medo. Somos mesmo viciados nessa sensação, na adrenalina, em medir forças entre o corpo humano e a força da natureza. Torna-se mesmo um vício.

E o vício nunca é vencido pelo cansaço?
Agora, no final do inverno, depois de ter estado em todos os cantos do mundo atrás de todas as ondulações, estou completamente exausto. Estou cansado, só quero surfar ondas pequenas, estar tranquilo, não estar com o coração na boca constantemente…mas esta era a minha conversa há um mês. Entretanto, já entraram várias ondas na Nazaré e a verdade é que nós não queremos estar naquela posição mas ao mesmo tempo queremos estar naquela posição. Ter a satisfação de sair e saber que correu tudo bem, fiz as minhas ondas, superei-me. É uma sensação única. E só dá mesmo para explicar a quem está em situações semelhantes, seja a conduzir um carro a alta velocidade ou a surfar uma onda enorme. É viver no limite, é a sensação de viver no limite. E, feliz ou infelizmente, nós somos viciados nisso. Mas trabalhamos muito, nada daquilo que fazemos é inconsciente, é tudo muito pensado e somos muito calculistas nesse aspeto.

Existe uma preparação física específica para um surfista de ondas grandes?
Nós temos vários tipos de preparação física. Fazemos bastantes treinos de crossfit, treinos de cardio, porque quando as coisas correm mesmo mal, nós estamos ali a lutar contra a natureza e temos de estar bem preparados nesse aspeto. Fazemos treinos de apneia, de piscina, exercícios que são bastante parecidos com o que acontece no mar quando as coisas correm mal: vamos para debaixo de água, fazemos exercícios sem ar e trabalhamos o psicológico. Não podemos entrar em pânico e temos de estar confortáveis em alturas desconfortáveis e estarmos bem com isso. E até prepararmo-nos para chegarmos ao limite de apagar. Por exemplo, manter a boca fechada quando chegamos a esse limite para não entrar água para os pulmões. É uma preparação muito psicológica, também. É estar preparado para o pior.

O colete que Von Rupp utiliza tem um sistema que ejeta o surfista para a superfície em caso de queda para zonas muito profundas. DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

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Já tiveste alguma situação dessas? Em que o “pior” acontece?
Já tive várias situações em que senti que o meu espírito animal veio ao de cima. Agi por intuição e não pela cabeça. Fiz certas coisas que são mesmo espírito de sobrevivência. Quando caio, quando as coisas correm mal, estou de tal maneira em choque e estou tão no fundo que passo para uma dimensão diferente. É incrível. É verdadeiro. Nós estamos tão habituados a lidar com emoções superficiais que quando estamos lá em baixo, com os ouvidos quase a rebentar, a ficar sem ar, a ter convulsões por falta de oxigénio…passas para uma dimensão diferente. Mas nunca apaguei. Mas já estive várias vezes próximo disso.

Há alguma alimentação específica ou uma dieta previamente pensada que a maioria dos surfistas – de ondas grandes ou não – siga?
Existe, sim. Tenho andado a mudar a minha alimentação nos últimos dois anos. Descobri que sou celíaco, sou altamente alérgico a glúten, suga-me a energia toda. Ainda estou a tentar descobrir qual é a alimentação ideal para mim antes de um dia de ondas grandes. Mas é complicado, porque nós temos tanto em que pensar e tanto para preparar e acordamos tão cedo que às vezes a alimentação acaba por não ser prioritária. O que é uma chatice e é um erro que estou constantemente a cometer. Há imensa coisa para tratar. Temos de ser nós a pôr gasolina na mota de água, a preparar a mota de água, a mandar o simples email que tem de se enviar à capitania a dizer que vamos entrar àquela hora, acordar cedo… Às vezes uma pessoa, principalmente na minha idade, acaba por passar a alimentação para um plano secundário. E só dou conta de que realmente não comi quando estou no mar, sem energia, a tentar dar mais uma braçada. Eu gosto de comer bem e agora cortei o glúten e deixei de comer pão e tal… E se sair de casa sem comer não há propriamente um sítio onde possa comer. Tem de passar por uma organização maior que eu ainda não tenho. Mas sem dúvida de que é o meu próximo passo.

"Já tive várias situações em que senti que o meu espírito animal veio ao de cima. Agi por intuição e não pela cabeça. Fiz certas coisas que são mesmo espírito de sobrevivência. Quando caio, quando as coisas correm mal, estou de tal maneira em choque e estou tão no fundo que passo para uma dimensão diferente".

E como é que é um dia normal para ti?
Depende da altura do ano. A questão das ondas grandes, e aquilo que é completamente oposto ao surf de competição normal, é que lá tu tens um plano dos campeonatos, sabes quais é que vais fazer, tens blocos de preparação física e tudo mais. No surf de ondas grandes, estás constantemente dependente da natureza. Posso estar aqui agora e saber que vai entrar uma tempestade grande nos Estados Unidos e tenho de mudar os meus planos todos e amanhã ou hoje à noite já estou a caminho dos Estados Unidos. O nosso calendário é super incerto. Temos de nos adaptar.

E lidas bem com essa incerteza? Com o facto de não saberes onde vais estar amanhã ou para a semana ou para o mês que vem?
Lido porque gosto daquilo que faço. Claro que é excelente ter uma rotina e é algo de que sinto falta durante o inverno, porque eu desde novembro que não paro. Fui estando uma semana em casa, nunca passei mais do que uma semana em casa. E dá cabo da cabeça de todas as outras pessoas que não trabalham neste calendário, seja a minha namorada, a minha família, os meus amigos. Os meus pais não percebem porque é que eu não posso estar cá nos 70 anos da minha avó e é complicado. Sinto falta de ter o calendário que tinha quando andava nos campeonatos mas quem corre por gosto não cansa. E eu gosto realmente daquilo que faço. Adoro o desafio, adoro surfar ondas grandes, adoro fazer crescer o meu nome a nível internacional como um desportista único. Estou exausto mas o nosso período de ação é o inverno. São seis meses em que nós estamos a tempo inteiro na Nazaré, da Nazaré para a Irlanda, da Irlanda para os Estados Unidos. E depois a partir de março, abril, as coisas começam a acalmar e começamos a voltar para as nossas rotinas de treino. Mas quando estou cá treino pelo menos uma vez por dia, três vezes por semana, e outras três vezes por semana faço o treino de apneia. Essas são as minhas prioridades e depois tento encaixar dois treinos de surf por dia. E depois há a parte burocrática e chata de tratar dos patrocinadores, das motas, da equipa…quem diz que ser surfista profissional é fácil não sabe, isso era no século passado.

Nic é filho de pai alemão e mãe portuguesa, viveu em Oeiras mas cresceu na Praia Grande, onde começou a surfar. DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

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O surf vai estrear-se enquanto modalidade olímpica nos próximos Jogos Olímpicos, em 2020, em Tóquio. Concordas com a entrada do surf nos Jogos?
Claro que tem as suas vantagens e as suas desvantagens. Na minha opinião, o surf não se enquadra no âmbito dos Jogos Olímpicos. O surf é um desporto de praia, de lifestyle, o que interessa no surf não é só o que se passa dentro de água, em competição. Uma das grandes vertentes do surf é a vivência, são as ondas grandes, é a cultura. E nada disso vai ser transportado para os Jogos Olímpicos. É muito mais do que um desporto. Mas pronto, por outro lado, tudo o que publicite o desporto, tudo o que ponha os olhos no desporto, vai acabar por melhorar as condições de toda a gente, sejam as pessoas que estão a tentar qualificar-se para os Jogos ou sejam aquelas que estão na vertente das ondas grandes. E há também a vertente das piscinas de ondas, não é. Várias piscinas estão projetadas em vários sítios do mundo que não têm acesso ao mar – China, Alemanha, etc. – e vão começar a aparecer gerações de surfistas que começaram a fazer surf na piscina e nunca tiveram a experiência de crescer perto do mar. É interessante. Ser um surfista é uma evolução, começa-se a brincar na areia, passa-se para as carreirinhas, para o bodyboard, para o surf… Na piscina não há nada disso. Vai ser uma piscina de ondas em que se vai contar os minutos até à próxima onda. O surf é natural, é natureza. Mas de repente vais ter chineses que são surfistas incríveis e que não tiveram essa cultura por trás. E para nós, surfistas, isso é interessante. Ver como é que isso vai evoluir nos próximos anos. Ver um surfista chinês ou alemão, que não tem relação com o mar, de repente passar para uma onda enorme e sentir a potência de uma onda enorme pela primeira vez. São tempos interessantes e só o tempo dirá como é que vão reagir.

Tens uma irmã mais nova. Ela alguma vez mostrou algum interesse no surf ou pediu-te umas aulas?
Eu sou um bocado o gato preto da família. Os meus pais não têm assim grande interesse no desporto, ainda que me tenham apoiado a 100%. Mas nós não temos uma cultura desportiva na família. Ela acabou por não ser influenciada para esse lado, foi influenciada para o lado das atividades, do outdoor, mas não foi muito puxada para o lado do surf. E eu também nunca puxei muito porque -–obviamente que, se ela quisesse muito fazer surf, eu estaria disponível – acho que o surf é mais masculino do que feminino. Sinceramente. Neste momento, existe igualdade entre o prize money masculino e feminino mas pá…

É mais para homens do que para mulheres?
O surf é um desporto bruto, principalmente nas ondas grandes. Levares com uma onda em cima, de seis metros, é uma experiência única, uma potência enorme, parece que estás a ser atropelado por quatro autocarros ao mesmo tempo. Acho que são poucas as mulheres que gostariam de estar numa posição dessas para surfar uma onda grande. Por isso, é uma experiência mais masculina do que feminina, apesar de eu adorar ver raparigas a surfar bem.

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