Alguns anúncios, várias pistas e uma ou outra reserva. Numa longa entrevista à TVI/CNN, António Costa reafirmou que o próximo Orçamento do Estado vai ter algum tipo de redução de IRS, mas continuou sem explicar em que moldes; em contrapartida, o socialista revelou que as contas públicas vão terminar com excedente, que o aumento de 6,5% das pensões vai mesmo acontecer, que o regime especial para não residentes vai chegar ao fim, que as rendas não terão o mesmo travão deste ano, e, pela primeira vez, que o salário mínimo pode ir além dos 810 euros.
Foram quase duas horas de entrevista, com perguntas da plateia pelo meio, e um primeiro-ministro a confessar-se “frustrado” com o assunto mais quente: o drama da habitação nos grandes centros urbanos do país. António Costa tentou esvaziar a onda de contestação generalizada, rejeitando existir uma frente compacta de ataque às suas medidas: “Os argumentos das pessoas que estiveram a manifestar-se ao direito à habitação são opostos aos do PSD e do Presidente da República”, argumentou o socialista.
A tentativa de colar-se às preocupações de quem reivindica (“Das manifestações todas, aquela em que me revi foi a deste fim de semana”, chegou a dizer) mostra a alta sensibilidade política do tema e o cuidado com que o Governo está a encarar os problemas na Habitação. Mas não só: foi também aí que Costa não conseguiu esconder o nervosismo e até a irritação com as perguntas que iam sendo feito.
Excedente a caminho e pensões garantidas. Redução do IRS é para analisar
O primeiro-ministro disse-o com todas as letras: “Este ano vamos ter um novo excedente orçamental”. O segundo do seu Governo, depois de 0,1% de saldo positivo em 2019. Uma revelação que pode não cair exatamente bem em alguns setores do PS, que há muito vêm pedindo um Orçamento mais expansionista e bastante cuidado na mensagem que se quer passar ao país. E não é preciso recuar muito: “Um bom resultado orçamental não é um excedente orçamental”, avisou Francisco César, vice-presidente da bancada do PS, numa recente entrevista ao Observador.
Mas nem esse excedente significa que exista uma via verde para a redução do IRS. Costa falou muito na necessidade de “prudência” e até até na necessidade de controlar a dívida: “Cada décima que pouparmos [na dívida] significa 60 milhões de euros de juros” — o que disse ser suficiente para pagar um mês de IVA zero, por exemplo. E, quando questionado sobre a redução de taxas sobre os rendimentos, nunca a garantiu, remetendo o assunto para o acordo sobre os rendimentos, que está a renegociar com os parceiros sociais.
“Estamos a negociar a atualização do acordo de rendimentos e terá reflexos nas medidas em matéria de IRS”, respondeu apenas já depois de ter garantido que o Governo vai “seguramente manter a trajetória anunciada de prosseguir a redução do IRS”.
O objetivo que ficou inscrito no Programa de Estabilidade 2023-2027 é de devolução de 2 mil milhões de euros de IRS às famílias até ao final da legislatura, mas a fatia disto que corresponderá ao próximo ano não ficou clara, nem mesmo se ela se vai traduzir numa alteração das taxas associadas aos vários escalões de rendimentos.
O Orçamento é entregue dentro de uma semana, a 10 de outubro, e até lá o primeiro-ministro diz que ainda existirão três reuniões do Conselho de Ministros para fechar o documento. As medidas gerais, repetiu, “dependem muito das negociações com os parceiros sociais”. Fintou ainda considerações políticas sobre as propostas apresentadas pelo PSD nesta matéria que foram chumbadas no Parlamento pela maioria socialista.
No Programa de Estabilidade o saldo orçamental previsto para este ano era negativo (em 0,4%), com o primeiro-ministro a sinalizar agora que o comportamento das contas públicas foi melhor do que o estimado inicialmente. Mas que este ano não vão repetir-se medidas extraordinárias do ano passado, tais como o apoio às famílias mais carenciadas ou o aumento extraordinário das pensões.
Neste capítulo, no entanto, Costa confirmou as notícias: a partir de janeiro de 2024, as pensões deverão subir entre 6 e 6,5% em janeiro do próximo ano via atualização automática, o que significará uma despesa adicional de 2 mil milhões de euros.
Salário mínimo pode ir para lá dos 810 euros
Outra matéria também empurrada para as negociações com os parceiros é o valor final para o aumento do salário mínimo no próximo ano. O que consta no calendário do Governo são os 810 euros em 2024, mas, nesta entrevista, António Costa não fechou a porta a uma revisão dessa meta.
Aliás, o primeiro-ministro falou mesmo na proposta da UGT de 830 euros, remetendo a questão para a concertação social e deixando claro que não será o Governo a colocar “qualquer resistência” perante uma proposta que vá além dos 810 euros.
Resta saber que tipo de contrapartidas exigirão as confederações patronais para acautelar esse aumento. Há uma proposta que António Costa já vetou: o Governo não está interessado em assumir a medida avançada pela Confederação Empresarial de Portugal (CIP) para a criação de um 15.º mês livre de impostos.
CIP propõe pagamento voluntário pelas empresas de 15º mês isento de impostos e contribuições
Fim do regime especial para não residentes
Anos depois e já sem a “geringonça” no caminho, os socialistas vão avançar com o fim do regime especial para não residentes habituais. Era uma exigência antiga do Bloco de Esquerda, mas nunca aceite por António Costa, que agora admitiu que “essa medida deixou de fazer sentido e vai acabar em 2024″.
Embora não acabe para quem já aderiu ao regime que foi criado para atrair novos valores para o país — aplicando-se também aos estrangeiros reformados, salvaguardou Costa. “Claro que quem tem manterá, mas manter essa medida para o futuro é não só prolongar uma medida de injustiça fiscal, mas também uma forma enviesada de continuar a inflacionar o mercado de habitação.”
Porta fechada aos professores. E ainda o aeroporto
António Costa esquivou-se a falar das propostas fiscais do PSD e, mais adiante na entrevista, foi fechando outras portas ao partido liderado por Luís Montenegro, nomeadamente em matéria de recuperação do tempo de carreira congelado dos professores.
Confrontado com a proposta do PSD, que veio admitir a contagem integral do tempo de carreira dos professores ainda que faseada, o primeiro-ministro enterrou a questão. “É insustentável para o país. Não posso recuperar tempo da carreira se não recuperar para todas as outras.”
No caso da localização do novo aeroporto de Lisboa, Costa não admite vacilações. Questionado sobre um eventual recuo do PSD nesta matéria (Miguel Pinto Luz, vice-presidente social-democrata, veio ameaçar romper o acordo com Executivo socialista), o primeiro-ministro alegou que “não seria a primeira vez” que se “surpreenderia”, dado que o “PSD já disse tudo e o seu contrário”. Ainda assim, Costa sublinhou que, de todas as conversas” que teve com Luís Montenegro, não teve qualquer “razão para pôr em causa a seriedade do PSD nesta metodologia”.
Numa altura em que começam a ser conhecidas algumas ideias da comissão técnica independente, Costa vai já avisando que a solução que o Governo procura é aquela que será a “mais sustentável do ponto de vista técnico”. Qualquer que seja a opção, reconheceu, “terá 80% de opositores”. “A solução tomada no próximo ano terá um coro de oposições.”
Governo não vai repetir o travão de 2% nas rendas
Em 2023, as rendas não puderam aumentar acima de 2%, não tendo sido aplicados os 5,43% que teriam resultado das habituais atualizações à inflação. Há duas semanas, o primeiro-ministro tinha dito que o Governo estava a “ponderar” que modelo ia aplicar para controlar o aumento das rendas, o que parecia indicar uma solução semelhante para o ano de 2024.
Nesta entrevista, no entanto, o primeiro-ministro assumiu que “não será repetida a fórmula”, utilizando como justificação a possível frustração de expectativas dos proprietários, sobretudo numa altura em que o Governo quer que estes coloquem casas no mercado para arrendamento. “É importante não quebrar esta confiança”, afirmou Costa a este propósito.
Assim, o primeiro-ministro apenas se comprometeu a encontrar “uma solução de equilíbrio” entre os 2% (travão deste ano) e os 6,95% (valor do aumento previsto para o ano) nas conversações que está a ter com inquilinos e senhorios.
Grande parte da entrevista, de resto, foi sobre o tema da habitação, com o primeiro-ministro a chegar a irritar-se quando foi questionado sobre medidas cuja execução foi colocada nas mãos dos municípios. “Nunca sacudo a responsabilidade para ninguém”, atirou num tom crispado, garantindo que o que está a ser feito é a dar “aos municípios a possibilidade de definirem a sua estratégia”, tendo em conta que as situações são diferentes consoante a zona do território nacional.
Foi também num tom semelhante que garantiu que a preocupação do Governo não é de hoje e que os seus governos têm tentado responder ao tema desde 2018. “Mas a realidade tem avançado mais depressa do que o conjunto de medidas”, chegou a admitir, confessando: “Tenho bastante frustração por a realidade ter sido muito mais dinâmica do que a a capacidade de resposta política”.
Um aviso guardado para Marcelo avisar conselheiros para dever de sigilo
Para o fim ficou (mais) uma bicada para o Palácio de Belém e o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, ainda a propósito da polémica reunião do Conselho de Estado no mês de setembro, onde Costa ficou em silêncio. Aos mesmo tempo que garantiu que a sua postura “não teve nenhuma mensagem especial”, o líder do Governo aconselhou o Presidente a fazer cumprir a lei do sigilo, mostrando-se desconfortável com “as fugas seletivas” que existiram nas últimas reuniões.
“Sempre que o Presidente me quer ouvir, ou me chama ou telefona. O Conselho de Estado serve para os conselheiros que não têm essa oportunidade”, atirou, justificando o seu silêncio com o facto de ter estado no Parlamento na véspera, onde “já tinha debatido com a oposição qual a situação económica e social do país”, não tendo “nada a acrescentar”.
Sobre fugas, disse não ter “desconfiança em relação a pessoas que lá estão”, mas afirmou: “Efetivamente não é habitual e foi muito inusitado ter havido fugas seletivas da reunião do Conselho de Estado”. Assegurou sentir “liberdade para se expressar” e deixou uma certeza — mas como quem deixa um aviso: “Não me passa pela cabeça que o Presidente, como garante do normal funcionamento das instituições democráticas, não comece por garantir, desde logo, o normal funcionamento do seu órgão de consulta”. Convocou, assim, Marcelo a aplicar a lei do sigilo.
E outras “fugas seletivas”: Costa segura Cravinho
O caso que envolve o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, continua a deixar Costa longe de qualquer decisão política como a demissão do Governo. Aliás, o primeiro-ministro defende o ministro e lança críticas a “fugas seletivas de informação, sobretudo quando depois aparecem escutas onde se percebe que um arguido diz: Vamos lá implicar os políticos para controlarmos esta narrativa”.
“Se chamam a isso ele [João Gomes Cravinho] estar implicado, às tantas ficamos todos implicados em alguma coisa”, considerou mesmo afirmando não ter “a menor das dúvidas de que, se houver indícios” relativamente ao ministro ou a si mesmo “não é pelo facto de ser primeiro-ministro, ou ele ser ministro, que a justiça vai deixar de atuar. Portanto, a justiça atuará e eu não me vou antecipar à justiça”, disse. Apenas repetiu a sua regra: um governante arguido não tem de sair do Governo.