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De que formas convivem a música e a moda? “Não consigo criar sem música, não consigo trabalhar sem música, não consigo fazer nada sem música”, responde prontamente Luís Carvalho, que veste Marisa Liz desde 2019, altura em que a artista musical e o criador de moda encaixaram a primeira prova de algumas das suas peças no curto espaço de 10 minutos, durante um intervalo das gravações das provas cegas do The Voice Portugal. “Foi o caos”, recorda, e desse caos nasceu “uma amizade que veio para ficar”.
Do outro lado de uma chamada de Zoom, em plena pandemia, foi como a então novata Maria Carlos Baptista, acabadinha de vencer o concurso Bloom do Portugal Fashion, conheceu pela primeira vez Carminho. “Fiquei sem jeito”, diz-nos, mas pior ficou quando, dias mais tarde, chegou a vez do encontro cara a cara. “Foi novamente um choque, de repente tinha a Carminho dentro de minha casa”, ri. Trabalham juntas desde então, a criadora de moda quer dar brilho à fadista e o mesmo acontece no sentido contrário: “Ela quer dar-me voz.” O possível ponto alto desta parceria culminou com uma Maria Carlos Baptista a olhar comovida para a televisão. Do ecrã surgia Carminho vestida com uma das suas criações, a cantar para o Papa Francisco no Santuário de Fátima e para milhões de pessoas em todo o mundo durante a JMJ 2023.
Entre Joana Duarte e Ana Moura começou uma relação que se diria moderna, com raízes no Instagram. “Apostámos muito no digital desde o início”, recorda a criadora da Béhen. Foi assim que a cantora encontrou a marca e, de uma sensibilidade comum, nasceu uma relação colaborativa entre quem canta com Portugal na garganta e quem recuperou técnicas têxteis tão tradicionais como o próprio fado e as trouxe para a modernidade, atraindo pelo caminho a atenção de estrelas da música como C. Tangana, Rosalía ou M.I.A. “Uma vez disseram-me que a razão para isso era o facto de as peças funcionarem muito bem em palco”, partilha.
O calendário da moda em Portugal está quase a arrancar. Esta temporada, Luís Carvalho celebra na ModaLisboa 10 anos de marca com um desfile onde promete “surpresas”. Béhen vai saltar esta edição para se poder focar noutros projetos como, de resto, já tinha feito no ano passado. “Acho que apresentar uma vez por ano é o que faz mais sentido”, justifica. No Porto, Maria Carlos Baptista também vai falhar o Portugal Fashion. “Decidi recuar um bocadinho para poder dar um passinho maior daqui a uns tempos”, conta, mas estará sentada na plateia a ver os desfiles dos colegas “com uma lagriminha no olho”.
De fora do calendário desta edição da ModaLisboa ficaram também habituées como Hibu, João Magalhães, Luís Borges e Filipe Augusto. No ano em que a marca Nuno Gama faz 30 anos, o criador resolveu desvincular-se da estrutura. “Chegou a altura de fazer o meu caminho”, contou ao Observador em setembro, revelando ainda que vai apresentar um desfile em nome próprio no Castelo de São Jorge, em Lisboa, a 21 de outubro. Já Lidija Kolovrat, que cancelou no próprio dia o desfile da passada edição de março por não ter conseguido terminar a coleção a tempo, regressa ao calendário a 7 de outubro.
Três designers portugueses vestem três das nossas grandes divas. Em semana de Modalisboa, que arranca esta quinta-feira, 5 de outubro, e se estende até domingo, falamos com os criadores de moda para nos contarem mais sobre as colaborações e amizades que acontecem no cruzamento entre a moda e a música.
Joana Duarte (Béhen) sobre Ana Moura
Quem é a Ana Moura?
Vocês escolheram perguntas difíceis (risos). A Ana acompanhou-nos desde uma fase muito inicial, por isso é quase uma embaixadora. E amiga, claro, porque acaba por acompanhar o próprio crescimento da marca através dos projetos que desenvolvemos com ela.
Como começou a colaboração?
Através das redes sociais, porque apostámos muito no digital desde o início. A Ana descobriu-nos de forma um bocadinho aleatória e rapidamente começámos a trabalhar. Fui ter com ela pessoalmente e mostrei-lhe as primeiras peças que tinha feito na altura. A partir daí, foi muito natural e orgânico. Ela entendeu logo o projeto e fomos crescendo em sintonia.
Que simbolismo tem para a Béhen trabalhar com uma mulher que vem do fado?
Faz todo o sentido. A Ana percebeu logo, desde muito cedo, as histórias, as técnicas e o que cada peça representava. E isso nem sempre é assim tão fácil de encontrar, alguém que, sem grandes explicações, percebe este universo. Essa sensibilidade vem muito do que é o trabalho da Ana.
Como vê a relação entre a moda e a música?
Em termos de processo criativo, [a música] está sempre presente. Quando desenvolvemos os últimos looks para a “Casa Guilhermina”, foi constante ouvirmos as músicas no estúdio, vezes sem conta. Faz parte do processo conseguirmos relacionar as peças que são desenvolvidas, seja pelos materiais, tipo de bordados, cores, com aquilo que é o trabalho da Ana, neste caso. Temos de ouvir e encontrar pontos em comum.
Ia mesmo perguntar se ouvia Ana Moura enquanto criava para Ana Moura.
É fundamental, seja com a Ana, seja com outro artista. Mas, no caso da Ana, ouvi muitas vezes, até porque demorei algum tempo a desenvolver os looks, não foi um processo só de alguns dias. E também porque gosto, claro.
A preparação dos looks para a “Casa Guilhermina” foi um processo colaborativo?
Foi tudo pensado com a Ana. Ela e a equipa dela acompanharam a escolha dos materiais, tecidos, cores e bordados. Para a “Casa Guilhermina”, o objetivo era que se sentisse o peso desta portugalidade, que está muito presente no álbum.
Há vários looks em que misturaram técnicas portuguesas tradicionais com cristais Swarovski como, por exemplo, um top em crochet em que depois demoraram 16 horas a colocar os cristais.
Nesse top em específico, a técnica do crochet em si já é demorada e, além disso, temos vindo a trabalhar quase desde o início com os cristais. São colocados um a um, o que acaba por se refletir em muitas horas de trabalho. Mas também colocámos os cristais na maior parte das outras peças desenvolvidas para usar em palco, porque funcionam muito bem com a luz. Percebi isso no início do meu trabalho com a Ana, foi logo um dos requisitos que me fez numa fase inicial, mas não o sabia antes.
De onde veio a ideia de juntar cristais Swarovski com técnicas que são tão tradicionais? São dois mundos que, aparentemente, não se cruzam.
Antes de criar o projeto, fui para a Índia, onde é comum usar-se ornamentos, contas, missangas, cristais. Foi de lá que trouxe esse conjunto de referências. Mas há um restaurante em Lisboa, que é o Natraj, e eles têm uns quadros em que acrescentaram cristais por cima dos saris das pinturas e fotografias. Quando o meu pai lá ia, dizia que eu tinha tirado dali a ideia sem perceber. Não sei se foi mesmo assim que surgiu, mas há essa brincadeira, de que a ideia foi tirada dos quadros do Natraj.
Que coisas aprendeu com a Ana?
Sempre que fazemos colaborações, temos experiências muito diferentes. A Ana mexe-se muito em palco, pelo que as peças têm de ser pensadas e adaptadas àquilo que quer fazer e à forma como se mexe. Isso tem de ser observado e não é fácil, é uma experiência muito diferente, muito mais técnica, do que confecionar e planear uma peça para ser usada no dia-a-dia. Aprender sobre estes pormenores que ultrapassam o que costumo fazer foi das melhores aprendizagens que retirei desta relação. Tivemos de aprender muitas coisas em pouco tempo, mas é bom, porque a Ana sempre esteve muito envolvida no processo, acompanhou tudo, tem muitas ideias e, ao mesmo tempo, põe-me à vontade para criar, dá-nos espaço até chegarmos a um resultado que faça sentido para os dois lados.
No Teatro Nacional isso também acontece?
Acaba por ter também requisitos específicos que têm de ser cumpridos. Para o teatro é uma coisa, quando trabalho com a Ana e outros artistas de espetáculo, é outra, e a coleção e as peças para o dia-a-dia são outra.
O Saint Levant procurou-a recentemente para o vestir para um videoclipe [do tema “Nails”, com a participação de Mia Khalifa].
Temos uma agência de comunicação em Los Angeles [a Good News Only Agency], que ajuda com celebrity placement, como foi o caso do Saint Levant. Mas nem tudo o que temos feito foi através deles. Há muitas coisas que têm sido feitas do nosso lado, ou porque convidamos as pessoas ou porque recebemos pedidos por encomenda, como quando no ano passado vestimos o Leon Bridges como cliente para o Super Bock Super Rock. São peças que, muito honestamente, têm técnicas que têm o seu valor. Demoram tempo a fazer, são complicadas, envolvem artesãos. Tentamos sempre defender o nosso projeto, não pode ser só através de empréstimos.
As peças têm também uma certa fragilidade.
Exato. É uma indústria em que esta questão não é assim tão clara. Quando criamos uma peça personalizada, é uma co-criação. A partir do momento em que se usa estas técnicas — bordados de raiz, materiais difíceis de encontrar ou com um valor elevado — para nós, enquanto estúdio, não faz sentido estarmos a desenvolver um universo comum às duas partes sem haver alguma forma de nos assegurarmos. O nosso trabalho é esse — ajudarmos a criar universos. No caso da agência, temos peças sample que são emprestadas às celebridades.
Saint Levant foi uma surpresa ou já conhecia?
Não conhecia o seu trabalho até a agência me ter contactado a dizer que isto ia acontecer. Depois de conhecer, adoro tudo e espero que não fique por aqui, que haja mais oportunidades. É curioso, porque desde o início do projeto que a música foi sempre uma constante para nós. Uma vez disseram-me que a razão para isso era o facto de as peças funcionarem muito bem em palco.
Aconteceu também com o C. Tangana.
Sim. E a M.I.A, a Rosalía.
São pessoas que, de certa forma, têm fortes ligações às raízes. Talvez vejam isso na marca.
Sem dúvida. E, da minha parte, há um cuidado em transmitir o máximo de informação sobre as peças. Mesmo quando fizemos as calças para a Rosalía, a colcha foi escolhida porque tinha rosas. Há sempre um pormenor que nos ajuda a criar.
A Rosalía também traz a tradição para a modernidade, que no fundo é o que faz a Béhen.
Exato.
Vai estar na ModaLisboa?
Não. Acho que apresentar uma vez por ano é o que faz mais sentido. Estou outra vez a fazer figurinos para o Teatro Nacional. Uma coisa é a preparação do desfile, que uma vez por ano é mais do que suficiente para o projeto em termos de estratégia, e depois há outros projetos onde podemos explorar os bordados e as técnicas de outras formas. A aprendizagem nestas diferentes áreas é fundamental. Da mesma maneira que aprendi imenso com a Ana logo desde o início com esta questão das peças para o palco, o mesmo acontece quando trabalho para o Teatro Nacional, porque são peças para palco, mas com objetivos e funcionalidades completamente diferentes. Aprendo imenso, ajudam-me a levar as técnicas a públicos diferentes.
Acaba por ter o melhor dos dois mundos?
Sim. E quando se cria peças para a Ana ou para o teatro, a forma de as desenvolver é muito diferente de desenvolver uma coleção. Normalmente, há mais liberdade, apesar de também haver regras a seguir. Não há aquela pressão de criar a coleção, aqui é mais emocional. Numa coleção, as coisas não são pensadas para pessoas específicas. Gosto de saber mais sobre as pessoas e de escolher os materiais com base nelas, de forma a que faça sentido. Há muita pesquisa, também.
Como foi a experiência de ganhar o Globo de Ouro?
Lá está, outro público (risos). Foi uma surpresa, não estava à espera. O facto de conseguir espalhar a mensagem e levar estas técnicas a outras pessoas é o mais importante, por agora.
É o género de coisa com que sonhava?
Nunca tinha pensado naquilo antes. Aquele tipo de reconhecimento é muito importante para um público específico. Mas, obviamente, foi bom.
Luís Carvalho sobre Mariza Liz
Quem é a Marisa Liz?
Essa definição não é fácil. A Marisa Liz é muitas coisas e muitas pessoas ao mesmo tempo. É uma explosão de ideias. Ela tem hiperatividade, já o assumiu (risos), e isso também se transmite na sua maneira de ser, de estar e de se exprimir através da moda. É sempre desafiante conjugar o que ela é com a minha identidade e com a identidade da minha marca num só look, numa só imagem. Tem sido bom para ambas as partes, porque permite-me explorar outros lados meus e consigo, ao mesmo tempo, direcioná-la para encontrar quem é, realmente, a Marisa.
Que coisas aprendeu neste processo colaborativo e acabou por poder extrair da Marisa enquanto artista?
Explorei mais em termos de design, de construção de peças e de trabalho de materiais. Isso tem a ver com o último projeto que fiz com ela, que foi o The Voice, onde tinha de a vestir durante 10 semanas e todas as semanas tinha de ter looks completamente distintos, mas que mantivessem uma identidade.
Esta colaboração também acaba por ser uma oportunidade para cruzar algumas fronteiras que não cruzaria de outra forma com a marca?
Isso acaba por acontecer quando trabalho com ela e quando faço os Globos de Ouro. Quando crio uma coleção, estou a contar uma história, é a identidade da minha marca. Nestes outros momentos, que são especiais, tento sempre extravasar e sair para fora da caixa. É importante, não só para nos divertirmos, mas também para eu conseguir ir ao encontro do artista e do propósito que tem.
Como é desenhar os looks para o The Voice? É diferente vestir para a televisão de vestir para um palco?
É completamente diferente. Para o The Voice posso fazer tudo e mais alguma coisa, porque não tenho uma inspiração específica, apenas a diretriz de que os looks têm de ser obrigatoriamente distintos de semana para semana, sobretudo nos primeiros programas, que passam muito tempo em televisão. Depois, a Marisa está quase sempre sentada, portanto temos de nos focar na parte de cima, que é o que se vai ver em televisão. Às vezes queremos usar materiais para algumas peças e não podemos, porque o material faz barulho e interfere com o som, ou porque em câmara não funciona porque faz batimento. Às vezes achamos que certas coisas vão funcionar em televisão mas acabam por se perder, porque não têm o mesmo impacto.
Como se conheceram?
A história é engraçada, porque começou com a Marisa a ligar-me na altura em que começou o projeto “Elas”, com a Aurea. Ainda não nos conhecíamos, foi a Inês Castel-Branco que lhe deu o meu contacto, e ela queria que a vestisse para a primeira apresentação do álbum, nos Globos de Ouro. Marquei uma reunião com elas para fazermos provas e acabou por acontecer em 10 minutos, no intervalo de uma das gravações das provas cegas do The Voice. Foi o caos.
Há aqui amizade, além de parceria?
Há. Eu acabo por trabalhar com pessoas com quem me identifico. Queria muito trabalhar com a Marisa porque a admirava muito enquanto pessoa e ao nível profissional. Como já trabalhamos juntos há tanto tempo, acabamos por criar esta relação de amizade, era quase inevitável isto acontecer.
A Marisa é conhecida por viver as emoções à flor da pele. Já riram e choraram juntos?
Admiro a Marisa porque gosto muito desse seu lado emotivo e da forma assertiva como fala. Nunca chorámos juntos, mas já nos rimos muito, porque é impossível não te rires ao pé da Marisa. É como se fosse uma criança, muito bem-disposta.
Como vê a relação entre a moda e a música? Como é que as duas se podem complementar?
A música é uma das minhas maiores inspirações. Não consigo criar sem música, não consigo trabalhar sem música, não consigo fazer nada sem música. Mesmo para apresentar um desfile, a música que escolho é sempre muito importante para transmitir a história ou a emoção que quero passar com a coleção. A música e a moda têm sempre de andar juntas.
E ouve Marisa Liz quando está a criar para a Marisa Liz?
Não, não há essa necessidade específica. Ouço Marisa Liz porque gosto, mas não ouço Marisa Liz enquanto estou a criar para Marisa Liz.
A Marisa Liz escreveu isto sobre a vossa colaboração no Instagram: “Não tenho palavras para te agradecer. O teu talento, criatividade, energia, generosidade, entrega, profissionalismo e amizade. Obrigada é pouco para alguém que nos faz sentir especial!”. Como é receber este tipo de feedback de uma pessoa que também se admira?
Até fiquei arrepiado, agora. Ela é muito agradecida pelo que eu faço por ela. Faz questão de mo dizer muitas vezes, é super gratificante ouvir palavras destas de uma pessoa que admiro tanto. Ela é mesmo boa pessoa e faz questão de dizer o que sente. Dá para perceber pela televisão, porque a pessoa que ela é em televisão é a pessoa que ela é na vida real. Diz-te exatamente aquilo que sente.
Se a Marisa lesse este artigo, gostava de lhe deixar alguma mensagem?
Sim. Dizer que a admiro imenso e que é um orgulho enorme trabalhar com ela. Quero continuar a fazê-lo por muitos mais anos e, como costumo dizer, estamos juntos. Esta é uma amizade que veio para ficar.
Vem aí a ModaLisboa. Vamos vê-lo por lá?
Claro que me vão ver por lá. Celebro 10 anos de marca e de ModaLisboa nesta edição. É um marco muito importante para mim. Dez anos de marca de moda em Portugal é complicado, mas cá estamos.
Vamos ter um desfile à altura desses 10 anos?
Não vou dizer que é um desfile especial, porque todos o são, à sua maneira. Vai ser especial para mim, porque tem esse marco, mas estou a tentar que seja mais especial pelo conceito que escolhi. Quando sair, vão perceber o porquê. Há uma pequena surpresa. Estou muito feliz por celebrar 10 anos de uma marca com a qual nunca sonhei chegar tão longe nem conquistar o que conquistei ate hoje.
Como é que se sobrevive 10 anos na moda em Portugal?
Com muito trabalho, acima de tudo. E, quando se trabalha por gosto, a coisa flui. Um bocadinho de humildade também é fixe para ajudar aqui no processo (risos).
Maria Carlos Baptista sobre Carminho
Quem é a Carminho?
É uma amiga. Tem sido um crescendo, a nossa relação. Considero-a uma pessoa muito próxima, que me ajuda imenso no processo criativo. Antes, admirava-a como artista por ser uma referência portuguesa. Agora, mais feliz ainda fico, porque a minha admiração passou a ser próxima.
Como começaram a colaborar?
Foi pouco depois de eu ter ganho o concurso do Portugal Fashion, em outubro de 2020. A assistente entrou em contacto a dizer que a Carminho gostaria muito de se reunir comigo. Como é óbvio, fiquei em êxtase. Nem estava a acreditar, porque um mês antes as pessoas não sabiam que eu existia. Temos trabalhado juntas desde aí.
De que se lembra desse primeiro encontro?
A primeira vez que falámos foi por videochamada, por causa das restrições da pandemia. Foi estranho ligar o Zoom e ver a Carminho do outro lado, fiquei sem jeito. O que ela sentia em relação ao que eu criava era muito positivo, e receber aquelas palavras vindas dela foi muito bom. Além de ser uma ótima cantora, é uma ótima pessoa e o trabalho que faz reflete muito bem a pessoa que é. Depois dessa videochamada, combinámos encontrar-nos presencialmente e foi novamente um choque, de repente tinha a Carminho dentro de minha casa (risos). Foi um bocadinho constrangedor, porque eu fiquei muito nervosa, mas ela é muito à vontade, relaxada e humilde. Então, acabou por ser muito orgânico.
Como vê a relação entre a moda e a música?
São formas de nos expressarmos. O que a Carminho faz com a voz, eu tento fazer com a roupa. Estão completamente relacionadas porque são formas de expressão. Antes de ser designer de moda, era bailarina. Antes, canalizava a parte criativa na dança, no movimento. A partir do momento em que comecei a fazê-lo através da moda, percebi que todos tínhamos diferentes formas de canalizar as ideias.
Ouve Carminho para criar para a Carminho?
Não sei se manifestei isto tudo, mas a Carminho sempre fez parte do que ouço. Gosto muito de música clássica e de música portuguesa. Por acaso não sou grande fã de fado, mas sempre gostei muito da Carminho, não sei se pela doçura, pela simplicidade, sempre houve qualquer coisa ali. Acaba por acontecer naturalmente ouvi-la enquanto estou a criar.
Tem algum simbolismo especial criar para alguém que vem do fado?
Claro, porque é o meu sangue, são as minhas raízes, é a história do meu país. Por ser portuguesa, sou naturalmente saudosa e nostálgica, o que ajuda muito. Sentir um bocadinho de dor ajuda a canalizar melhor as ideias. O que é péssimo (risos), mas socorro-me mais desse tipo de músicas para criar.
Fale-me sobre o look branco que a Carminho usou no Santuário de Fátima para a JMJ 2023.
Até chorei, quando vi. Não estava planeado, até pela questão da cromática. Havia outras opções estudadas, mas aconteceu tudo de forma inesperada. Supostamente, ela não ia conseguir ter o look com ela, mas no dia anterior achou que se calhar era melhor levá-lo, porque estava com uma sensação. E acabou por ser o que ela se sentiu à vontade para vestir. Estava mesmo destinado a acontecer.
E só percebeu quando a viu na televisão?
Sim, eu estava a trabalhar à distância. Nesse dia, ela tentou ligar-me, mas eu não estava disponível. Quando a vi, pensei: “isto foi incrível e maravilhoso”.
Foi lojista na Primark até ao ano passado?
Fui até 2021.
Venceu o Bloom com o Portugal Fashion em 2020, mas manteve-se na Primark. Porquê?
Ganhei o concurso quando ainda estava a trabalhar na Primark. Como já estava efetiva, pedi uma licença sem vencimento para fazer o estágio que ganhei. Não me quis despedir porque nunca se sabe o dia de amanhã. Mais tarde, acabei por arriscar tudo e sair.
Depois passou pela Sonae Fashion e Parfois?
Exatamente. E agora estou de volta à Sonae.
Então ainda não consegue dedicar-se a tempo inteiro ao projeto?
Não, com muita pena minha. Se pudesse, estava só a criar para o projeto, mas infelizmente ainda não é possível.
O facto de ter vencido durante a pandemia pode ter afetado o arranque?
Acho que não. Não sei como teria sido noutro registo, mas houve um esforço e um cuidado muito grandes do Portugal Fashion para fazer a comunicação de imprensa. Cheguei a muita gente por causa disso. Eu era uma jovem designer, ainda estava na escola quando ganhei o concurso. Não sabia o que ia acontecer, não tinha um plano, nada. Tem muito que ver com questões de investimento e de tempo. Se tivesse outra disponibilidade financeira, estaria a dedicar-me de outra forma à minha marca. Tem sido um desafio porque eu não sou paciente (risos). Mas as coisas acontecem quando tem de ser. Tenho de confiar mais no processo.
Como é que se conjuga o trabalho nestas empresas com a marca?
É muito desafiante. Eu basicamente só trabalho, porque saio do trabalho e vou trabalhar para a minha marca. Mas é assim: quem corre por gosto, não cansa. Sinto-me muito grata por poder fazer o que gosto. Têm-me surgido estas oportunidades, de trabalhar com a Carminho, de fazer as fardas da Culturgest, que também fiz agora. É mesmo bom sentir que estou a criar soluções para problemas e vê-las materializadas em algum lado. É a parte mais bonita do nosso trabalho.
Em relação ao Portugal Fashion, há alguma novidade?
Infelizmente, não vou conseguir apresentar. Estou assolapada com trabalho por todos os lados. Decidi recuar um bocadinho para poder dar um passinho maior daqui a uns tempos.
É mais sustentável dar um passo atrás para se poder estar presente quando há condições para isso?
Sinto que a exigência de ter de apresentar a coleção de seis em seis meses, em termos de processo criativo, é muito desgastante. Acabas uma e já estás a pensar na outra. Não sei se as pessoas fazem ideia, mais é muita coisa para se pensar, tecidos, texturas, acessórios, pessoas, música, calçado, maquilhagem… É um mundo em construção que tira muito de nós, criadores. Tenho de seguir os meus instintos e, se algo vai contra a qualidade do trabalho que posso entregar, prefiro adiar. Mas custa-me imenso, porque é um espacinho que uma pessoa luta para ocupar. Vou assistir aos desfiles dos meus colegas com uma lagriminha no canto do olho (risos). É muito difícil ser um jovem designer, hoje em dia.
Há falta de investimento?
Sinto muito essa falta de apoio, sem dúvida. Sinto também que, entre camadas mais jovens, existe um sentido de comunidade maior, uma entreajuda maior. Se falares com outros designers para saber de uma costureira ou fornecedor, ainda há muita reticência em partilhar, porque parece que acham que vão-lhes roubar alguém. Isso empata um bocadinho, porque Portugal é tão pequeno, o meio é tão pequeno e fechado, que estarmos a fechar-nos cada vez mais complica as coisas. Há muita gente jovem com criatividade, talento, vontade, e somos muito limitados por todas essas condicionantes. Uma pessoa sai da escola e não sabe como se faz uma marca. Como é que vais fazer um plano de negócios? Não fazes ideia. Como designer, quero é estar preocupada se o tecido é suave, cai como eu quero, tem a cor que quero… E não pensar em que estratégia quero seguir.
Nesse sentido, uma artista como a Carminho procurar um criador em início de carreira acaba por fazer dela quase uma patrona da moda.
Sem dúvida. É extraordinário, porque vejo uma preocupação muito grande dela, como minha amiga, em ver-me crescer como Maria Carlos. Ela quer dar-me voz. É ótimo ver que uma artista vê talento em mim e quer ajudar-me a erguer-me, por mais pequenina que eu seja.