“Eu estava na companhia de outros 11 colegas, todos pescadores da mesma aldeia de Ilala (…). Estávamos na praia, a puxar as redes, quando vimos os insurgentes a vir pelos coqueiros. Eram cinco homens, vestidos com farda das Forças de Defesa e Segurança. A dada distância, chamaram-nos e todos fomos. A nossa ideia era de que se tratavam de agentes das Forças de Defesa e Segurança e que tínhamos de colaborar. Quando nos aproximámos, eis que nos puxaram a todos para o mesmo lugar e começaram a disparar. Primeiro para as pernas para não fugirmos, mas naquela confusão alguns dos meus colegas, mesmo com tiros, conseguiram fugir, tendo sido socorridos (…).
“Naquele instante, os meus cinco colegas teriam sido mortos e decapitados à minha frente. Eu escapei porque enquanto atiravam quatro tiros para a minha perna esquerda, eu gritava ‘não há Deus, apenas um único criador’, em língua árabe, foi daí que me deixaram, dizendo que ‘este era muçulmano’. Disseram-me que iria ser salvo no hospital, levaram o nosso peixe, e as nossas bicicletas foram ali mesmo destruídas e então foram-se. Dali fiquei inconsciente até que, no dia seguinte, veio o grupo de pessoas da aldeia para enterrar os corpos dos meus colegas e eu fui resgatado.”
O testemunho na primeira pessoa é de Abacar Cheba, 48 anos, um pescador moçambicano que recentemente contou os detalhes da sua história à Carta de Moçambique. Os “insurgentes” de que fala são membros do grupo terrorista fundamentalista islâmico que, desde 2017, tem vindo a espalhar uma onda de terror no norte de Moçambique com o objetivo de criar ali um Estado islâmico, negando a autoridade secular e impondo a sharia.
Desde o primeiro ataque, no final de 2017, estima-se que o grupo já tenha assassinado mais de 500 pessoas, recorrendo a métodos brutais, como decapitações, filmando as execuções e divulgando as imagens. Milhares de pessoas ficaram desalojadas na sequência de ataques que resultaram na destruição de aldeias inteiras na província de Cabo Delgado, no norte do país.
Embora a estrutura interna do grupo seja hoje ainda largamente desconhecida, Régio Conrado, um investigador moçambicano que estuda a região, calcula que a organização conte atualmente com pelo menos três mil elementos e com um arsenal poderoso oriundo quer de furtos ao exército moçambicano, quer do contrabando através de países vizinhos como a República Democrática do Congo, o Uganda e a Tanzânia.
A esmagadora maioria dos ataques, sobretudo no início, não foram formalmente reivindicados por nenhum grupo particular, mas o autoproclamado Estado Islâmico chegou a divulgar imagens de alguns dos massacres e a alegar que tinham sido inspirados pela organização terrorista. Mais recentemente, o Daesh chegou mesmo a responsabilizar-se formalmente por alguns dos atentados.
O caso descrito por Abacar Cheba, que ocorreu em dezembro do ano passado, está longe de ser um caso isolado. Já este ano, no final de janeiro, aquele grupo terrorista levou a cabo mais seis ataques em aldeias da mesma província, destruindo, entre muitas outras instituições e aldeias, o Instituto Agrário de Bilibiza, a única escola secundária técnica de toda a província de Cabo Delgado, onde estudavam 400 alunos. E até mercenários russos contratados para ajudar o exército moçambicano, sob a orientação não-oficial de Moscovo, terão fugido depois de sete terem sido mortos — quatro deles decapitados.
Apesar do enorme rasto de destruição, o atentado mais recente não causou mortos, porque a população tinha sido alertada, horas antes, para a possibilidade de um ataque armado e fugiu em massa para as florestas abundantes que circundam as aldeias da região.
Como nasce um movimento radical
O primeiro ataque do grupo radical islâmico em Moçambique aconteceu em outubro de 2017, na vila de Mocímboa da Praia, no norte da província de Cabo Delgado, próxima da fronteira com a Tanzânia. Segundo o relato da altura da imprensa local, o ataque foi dirigido a esquadras da polícia e ao posto de controlo das autoridades fronteiriças. Esse primeiro ataque não causou a morte a nenhum civil. Entre os 16 mortos, estavam 14 membros do grupo radical e dois agentes da polícia. Os habitantes da vila tinham uma certeza: os atacantes eram membros do al-Shabaab.
A palavra significa “juventude” em árabe e remete imediatamente para o grupo fundamentalista islâmico conhecido, essencialmente, pelos atentados na Somália. No caso moçambicano, tanto quanto é possível reconstituir a história deste grupo, o al-Shabaab resulta de uma cisão ocorrida há mais de duas décadas dentro do Conselho Islâmico de Moçambique. Na altura, um grupo mais ortodoxo e defensor da aplicação da sharia separou-se da organização oficial do Islão no país para criar uma organização mais radical, a Ansaru-Sunna.
Dentro desta nova organização marginal, uma nova cisão levou ao surgimento do al-Shabaab, como explicou recentemente à agência Lusa o investigador e professor de história de África Eric Morier-Genoud. Este grupo radical, já considerado uma “seita extremista” pelos especialistas, terá começado a construir as primeiras mesquitas no país no final da década de 2000. Entre os locais onde os membros deste grupo pregavam, encontrava-se precisamente a mesquita de Mocímboa da Praia, onde ocorreu o primeiro ataque.
Depois do atentado contra as forças policiais em outubro de 2017, o Conselho Islâmico de Moçambique veio dizer que “a presença de indivíduos com ideologias de tendência radical” já tinha “vindo a ser registada nos últimos tempos”. Além disso, esta presença de elementos radicais “já tinha sido reportada ao governo”, afirmou em outubro de 2017 o representante da delegação de Nampula do Conselho Islâmico de Moçambique, Juma Cadria.
“Fomos apanhados de surpresa com estes ataques. E o mais triste foi quando tomámos conhecimento que se tratava de um grupo que se reveste sob capa do Islão. Distanciamo-nos deste grupo de criminosos que não representa o Islão de forma nenhuma porque o Islão assenta na paz”, afirmou o responsável muçulmano na altura.
Para Régio Conrado, investigador do Instituto de Estudos Políticos de Bordéus, ainda que o ataque de 2017 tenha sido “o início oficial do processo insurrecional na província de Cabo Delgado”, é preciso recuar várias décadas — incluindo até ao período colonial português — para perceber como o extremismo islâmico se implantou naquela região e como o contexto político moçambicano permitiu que ele ali se desenvolvesse discretamente.
“É preciso fazer menção de que, há alguns anos, já havia circunstâncias, movimentos, que indicavam a existência de conflitos entre grupos, sobretudo entre os que tinham feito estudos islâmicos na Arábia Saudita ou no Sudão, ou tinham frequentado escolas islâmicas na Tanzânia e no Quénia. Estes elementos, que tinham feito os seus estudos nestas escolas rigoristas e profundamente ortodoxas, pretendem fazer uma interpretação literal do Alcorão. Na província de Cabo Delgado, em toda a parte da costa, as pessoas praticam a religião islâmica há séculos e já a tinham integrado com as práticas locais. Parte das práticas religiosas são integradas nas dinâmicas culturais locais. Isto é algo que a perspetiva literalista, como é o caso deste grupo, não concebe”, explica o investigador, que se tem especializado em questões ligadas à construção e reformas do Estado em contextos pós-conflito, violência armada e religiosa em Moçambique e Angola.
No período colonial, este conflito entre os setores aprofundou-se, recorda Régio Conrado: “Dentro da prática da religião islâmica, o Estado colonial português tinha inclusivamente marginalizado alguns indivíduos que tinham feito estudos nesses países, porque estes não aceitavam nenhuma autoridade além da autoridade religiosa. Isto, para o Estado colonial, não fazia sentido”.
Depois da independência, e após um processo de “marginalização” generalizada da prática religiosa por parte da “política marxista da Frelimo”, a estabilidade alcançada com a formalização da prática islâmica moderada no país não foi total. “Nunca se conseguiu resolver o problema destes grupos minoritários”, argumenta Régio Conrado. Durante vários anos, um grupo crescente de muçulmanos ortodoxos foi desenvolvendo uma visão radical da religião que alcançaria um ponto de rutura com a separação do tal grupo al-Shabaab. Este desenvolvimento em pouco difere do que sucedeu em alguns países europeus.
“Eu próprio, aquando do nosso trabalho de campo no âmbito do meu doutoramento, passei um ano inteiro na província de Cabo Delgado, e tive oportunidade de observar, em determinadas circunstâncias, a criação de pequenas células de rezas, onde não havia nenhum controlo sobre a prática religiosa. Não se sabe qual o tipo de mensagem corânica que se transmitia neste contexto”, conta o investigador. “Um dos grandes problemas que a Europa tem, sobretudo na França e na Alemanha, é que não conseguiu controlar o que se dizia em determinadas mesquitas. Hoje, os países europeus estão muito mais atentos ao que se prega nas mesquitas. No caso de Moçambique, havia uma total ignorância.”
O investigador sublinha ainda que houve “insuficiências” do Estado moçambicano que permitiram o desenvolvimento do radicalismo na província de Cabo Delgado.
“O território moçambicano, naquela região, é mais de 80% composto por florestas fechadas, cujo acesso é muito complicado, e nunca houve uma grande preocupação de conhecimento cartográfico dessas regiões. Durante anos, foi a província mais calma do ponto de vista da guerra civil. O Estado negligenciou esta província, mesmo tendo em conta os problemas que existem na Tanzânia e no Quénia — e nós sabemos que existem lá movimentos muçulmanos radicais. Nessas regiões, quando ia para o interior, não encontrava nenhuma marca do Estado. As populações viviam autorreguladas e isso facilita a capacidade de ataque destes grupos.”
Mais de 3 mil membros
A 4 de junho de 2019, quase dois anos depois do primeiro ataque em Mocímboa da Praia, surgia a informação de que o autoproclamado Estado Islâmico reivindicava a autoria de um ataque na região de Mocímboa da Praia. Na mensagem disseminada através dos canais do Daesh, lia-se que os militantes da “província da África Central” daquela organização “repeliram um ataque do exército” moçambicano. Nos mesmos canais, circulavam imagens que mostravam combatentes ligados ao grupo extremista e o arsenal roubado às forças militares moçambicanas.
Seis meses depois, em dezembro, o autoproclamado Estado Islâmico voltou a reivindicar um ataque em Moçambique e a divulgar imagens do ataque — desta vez incluindo fotografias de cadáveres das vítimas e de um refém capturado durante o atentado.
#Mozambique photos #EI de l’attaque de #Malali, premières images explicites du groupe dans le pays // d’autres photos de cadavres et d’un otage on été aussi diffusées pic.twitter.com/DMzXGBKRRw
— Wassim Nasr (@SimNasr) December 8, 2019
As imagens divulgadas pelos canais do Daesh têm sido, até agora, a única maneira de ter uma perspetiva sobre quem são e que motivações têm os integrantes do grupo radical que tem espalhado o terror no norte de Moçambique. “Nenhum investigador conseguiu ter acesso a este grupo”, sublinha Régio Conrado. “Alguns conseguiram na Nigéria, com o Boko Haram, ou no Mali. Mas é profundamente complicado falar de números. O que podemos dizer é que, entre os especialistas, se começa a ter a estimativa de que estão acima dos 3 mil membros. Desde 2017, do ponto de vista militar, a sua capacidade de fogo melhorou”, explica o investigador.
“Sobre o número de mortos, é muito difícil precisar, porque o governo moçambicano não consegue ter precisão. É verdade que é possível ter uma estimativa de que, desde 2017, foram mortas aproximadamente 500 pessoas. Mas é uma estimativa”, detalha Régio Conrado, sublinhando que os contactos que tem estabelecido com informadores nas várias regiões do norte de Moçambique apontam para que o número seja ainda superior.
O bispo católico de Pemba (a capital da província de Cabo Delgado) aponta para a mesma estimativa. De acordo com D. Luiz Fernando Lisboa, os cristãos são uma das comunidades mais perseguidas pelos extremistas. “Estou a tentar cumprir o meu papel, tenho procurado dar apoio aos missionários que estão lá, na linha da frente, que estão nesses distritos onde há ataques, e eles têm sido missionários e missionárias muito corajosos porque muitas vezes são aquele oásis que o povo precisa”, afirmou recentemente o bispo, numa passagem por Portugal, a convite da fundação católica Ajuda à Igreja que Sofre.
“As aldeias estão a ficar vazias, as pessoas não estão a plantar, então isso significa que haverá fome, e nós temos milhares de deslocados internos”, alertou o bispo, remetendo para os números recentemente estimados pelas Nações Unidas: pelo menos 60 mil pessoas já terão ficado desalojadas ou tido necessidade de fugir das suas aldeias no norte de Moçambique por causa dos ataques.
Do lado dos atacantes, sublinha Régio Conrado, a cada dia o número de militantes cresce — e o mesmo acontece com o armamento que têm à sua disposição. Ao mesmo tempo, o grupo já consegue ter o controlo de algumas regiões do norte do país. “Há uma criação de espaços vazios onde eles exercem uma espécie de autoridade. O terror é uma estratégia para que as populações integrem o grupo. Criam espaços de governação autónoma em relação ao próprio Estado”, afirma o investigador. “Há zonas da província de Cabo Delgado que não estão sob o controlo total do Estado.”
O objetivo é mesmo esse: criar um Estado. Por isso, entre os principais alvos do grupo — além dos cidadãos considerados “infiéis” — estão as instalações estatais moçambicanas, incluindo os postos policiais, mas também outros edifícios públicos. “É uma forma de negar a autoridade do Estado. Foi o que vimos no Iraque e na Síria, na formação do autodenominado Estado Islâmico. É uma demonstração de que eles não se integram neste modelo secular”, explica o investigador.
A dificuldade em controlar eficazmente a fronteira norte de Moçambique permite a entrada de armamento oriundo de grupos rebeldes da Tanzânia — país onde ao longo de várias décadas se têm formado clérigos radicais que depois entram em território moçambicano —, mas também da Somália, da República Democrática do Congo e do Uganda. Os ataques contra o próprio exército moçambicano complementam a captura de armamento. Recentemente, lembra a título de exemplo o investigador ouvido pelo Observador, o grupo conseguiu roubar um camião cheio de material de guerra e um veículo blindado.
O poderio militar crescente do grupo extremista tem levado o estado moçambicano a esforçar-se no sentido de reforçar a sua capacidade bélica — num processo que não tem sido isento de polémica.
Recentemente, surgiram nas redes sociais imagens que mostravam jovens a correr nas ruas de Maputo e que estariam, alegadamente, a fugir dos militares, que os estariam a tentar recrutar à força para os enviar para o norte do país, onde o exército precisa de um reforço de vários milhares de soldados para combater o extremismo islâmico. (O governo moçambicano já veio dizer que espera recensear 20 mil jovens para o Serviço Militar Obrigatório em 2020.)
Em Moçambique, o recenseamento militar é obrigatório para todos os jovens, sendo que depois a convocatória para o período de dois anos de serviço efetivo depende das metas definidas pelo governo do país.
Em resposta à divulgação das imagens e das alegações de que haveria jovens a ser alistados à força para combater o grupo terrorista, o ministério da Defesa moçambicano veio desmentir a informação e prometeu “descobrir a origem, motivações e os autores” da divulgação. Carlos Mucamisa, coronel das Forças Armadas de Defesa de Moçambique, afirmou especificamente que “não está a decorrer nenhum recrutamento compulsivo” e que “quando chegar a vez, o jovem será convocado e não raptado”.
A explicação, porém, não convence a Renamo, o maior partido da oposição, que já veio pedir esclarecimentos sobre as suspeitas de recrutamento forçado e classificar o comunicado do governo como “vazio de conteúdo”. Para a oposição, existe uma “falta de coordenação institucional” no governo, que não está a responder “àquilo que é o anseio da população”.
No âmbito desses mesmos esforços de combate à ameaça extremista no norte do país, Moçambique assinou em 2018 um acordo com a Rússia. Na altura, os ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países — Sergei Lavrov e José Pacheco — firmaram um acordo técnico-militar destinado a reforçar a cooperação entre os dois países que passava, entre outras questões, pela entrega de armamento e equipamento militar russo às forças moçambicanas. A luta contra o terrorismo foi uma das prioridades assumidas no momento da assinatura do acordo.
Mas a colaboração russa não se terá limitado ao que foi anunciado publicamente no âmbito daquele acordo. Em outubro de 2019, soube-se que sete mercenários russos do grupo Wagner (uma força paramilitar russa que atua em vários conflitos internacionais sob a orientação não-oficial de Moscovo) tinham sido mortos pelo grupo terrorista na província de Cabo Delgado. Quatro deles terão sido mesmo decapitados. Os mercenários russos estariam a lutar contra o grupo terrorista lado a lado com o exército moçambicano.
Em dezembro, o Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, pronunciou-se publicamente sobre o problema, evidenciando o desconhecimento sobre o grupo extremista, mas defendendo a via do diálogo: “Nossos irmãos estão a ser mortos em algumas zonas de Cabo Delgado por pessoas que não sabemos quem são nem o que querem. Se nos dissessem, sentar-nos-íamos com essas pessoas para poderem falar.”