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O tema jurídico é árido (a contagem do prazo de prescrição), mas as consequências da decisão unânime tomada a 7 de junho por cinco juízes do Tribunal Constitucional (TC) são claras: a contagem do prazo de prescrição num caso de corrupção inicia-se com o recebimento do último suborno e o recurso do Ministério Público (MP) para levar José Sócrates a julgamento pela alegada prática de três crimes de corrupção ganha assim força.
Mais: a tese jurídica acolhida pelo juiz Ivo Rosa, de que a contagem do prazo de prescrição começa com a data do acordo corruptivo (e não com o pagamento do último suborno), é explicitamente censurada pelo acórdão de 7 de junho subscrito por cinco juízes do Palácio Ratton.
Isto é relevante porque o acórdão n.º 90/2019, subscrito pelo juiz Cláudio Monteiro e agora censurado pelo acórdão n.º 370/2023, foi a base constitucional invocada por Ivo Rosa para avançar para a prescrição de todos os crimes de corrupção imputados a Sócrates, Armando Vara, Henrique Granadeiro, Zeinal Bava e Ricardo Salgado, entre outros arguidos.
Enfatize-se que esta é a primeira vez que o Constitucional coloca em causa o acórdão de Cláudio Monteiro — uma decisão que quebrou uma unanimidade que existia até essa altura no Tribunal Constitucional sobre a matéria da contagem da prescrição. “Agora foi reposta a normalidade”, assegura fonte judicial.
O recurso dos procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pinto sobre a decisão de não pronúncia de Ivo Rosa, e que está a ser apreciado pela Relação de Lisboa desde fevereiro de 2023, defende precisamente a tese agora acolhida pelo acórdão do Tribunal Constitucional.
O caso que deu origem ao novo acórdão do Constitucional
Este novo acórdão tem origem num recurso do empresário Fernando Rodrigues Gouveia, responsável da empresa construtora MRG que já foi acusado e condenado em vários processos relacionados com as Parcerias Público-Privadas (PPP) que propôs a várias autarquias.
A última acusação aconteceu em Lisboa (envolvendo autarcas como Isaltino Morais e Susana Amador) e o último julgamento verificou-se na Guarda, onde Rodrigues Gouveia foi condenado a uma pena única de prisão efetiva de seis anos e seis meses por vários crimes económico-financeiros, entre os quais corrupção ativa.
No mesmo caso, os ex-autarcas Álvaro Amaro e Luís Tadeu (de Gouveia) foram condenados a três anos e meio de prisão com pena suspensa, enquanto Júlio Sarmento (ex-presidente da Câmara de Trancoso) foi condenado a uma pena de prisão efetiva de sete anos, pelos crimes de prevaricação de titular de cargo político, corrupção e branqueamento de capitais.
No caso que deu origem ao acórdão do Tribunal Constitucional, Fernando Rodrigues Gouveia foi condenado em 2021 pelo Tribunal Judicial de Portalegre a cinco anos de prisão efetiva pelos crimes de corrupção ativa de titular de cargo político, corrupção ativa e de branqueamento de capitais.
Os ex-autarcas envolvidos eram João Burrica (ex-presidente da Câmara de Campo Maior) e Rui Pingo (ex-presidente da Assembleia Municipal de Campo Maior) — que foram acusados pelo Ministério Público dos crimes de prevaricação, de corrupção passiva e branqueamento de capitais por terem alegadamente recebido cerca de 335 mil euros (divididos pelos dois) de Rodrigues Gouveia através de duas empresas de consultadoria. Tudo para alegadamente beneficar a empresa MRG na adjudicação da construção do complexo de piscinas em regime de PPP.
Todos os arguidos recorreram para o Tribunal da Relação de Évora das penas aplicadas pela primeira instância, mas houve um recurso interlocutório de Fernando Rodrigues Gouveia relacionado com a prescrição que veio a dar origem ao Acórdão n.º 370/2023 do Tribunal Constitucional. O sócio e responsável da construtora MRG alegava que o caso já tinha prescrito pelo facto de o alegado pacto corruptivo ser datado de 2006 e de o prazo de prescrição ser de apenas 10 anos.
Ou seja, e seguindo um raciocínio semelhante ao do juiz Ivo Rosa na decisão instrutória da Operação Marquês, o procedimento criminal já tinha prescrito antes de Fernando Rodrigues Gouveia ter sido constituído arguido a 24 de fevereiro de 2017.
Eurodeputado Álvaro Amaro e presidente da Câmara de Gouveia condenados a penas de prisão suspensas
A Relação de Évora não deu razão à defesa do empresário da MRG, concordando a 27 de setembro de 2022 com o Ministério Público de que a data dos últimos pagamentos (que ocorreram em março e em junho de 2009) é que são determinantes para a contagem do prazo de prescrição — logo, os crimes de corrupção não tinham prescrito em fevereiro de 2017 e a referida contagem foi interrompida com a constituição de arguido.
Fernando Rodrigues Gouveia recorreu ao Tribunal Constitucional com o argumento de que a leitura jurídica de que a contagem do prazo de prescrição se inicia com o recebimento da última vantagem é inconstitucional. E invocou, como vários arguidos noutros processos têm feito, o acórdão n.º 90/2019 que tem Cláudio Monteiro como relator.
Unanimidade no Tribunal Constitucional contra o acórdão de Cláudio Monteiro
O relator António da Ascensão Ramos e os juízes conselheiros Gonçalo Almeida Ribeiro, Assunção Raimundo, José Eduardo Figueiredo Dias e Mariana Canotilho foram unânimes e rejeitaram de forma clara os argumentos da defesa do empresário condenado pelos crimes de corrupção ativa.
O relator Ascensão Ramos começa por considerar que a decisão tomada pela Relação de Évora (de considerar que o que interessa é o recebimento da última vantagem) entra em “flagrante colisão” com “o juízo firmado pelo Tribunal Constitucional no sobredito Acórdão n.º 90/2019”.
Ora, o acórdão de Cláudio Monteiro foi aprovado com os votos a favor de José Teles Pereira e de João Pedro Caupers (ex-presidente do Tribunal Constitucional), mas teve o voto de vencida de Fátima Mata-Mouros. E defendeu que apenas era constitucionalmente possível defender que a consumação do crime acontecia com o acordo feito entre corruptor ativo e passivo.
De acordo com esta tese, “o crime tem de se entender nessa altura consumado, também para efeitos do início do curso do prazo prescricional, independentemente do que venha a suceder mais tarde no âmbito do pacto corruptivo firmado”. A consumação do crime por via do recebimento, a tal fase posterior ao acordo, viola o “princípio da legalidade penal”, daí a “inconstiticionalidade material” dessa leitura, lê-se no Acórdão n.º 90/2019.
O relator Ascensão Ramos e os quatro juízes que o acompanharam na apreciação da questão constitucional discordam dessa visão. Apesar de admitirem que a leitura de Cláudio Monteiro é possível, dizem claramente que está longe de ser a única ou sequer maioritária na comunidade jurídica.
Apesar de as normas que suportam os crimes de corrupção ativa e passiva do Código Penal e de leis especiais para os titulares de cargos políticos permitirem a leitura de que o crime se consuma com o acordo, também permitem o entendimento objetivo de que, “quando tem a entrega subsequente à promessa, opera uma atualização do momento de consumação do delito”, lê-se no Acórdão n.º 370/2023.
Daí que exista a “distinção, com grande tradição na doutrina e jurisprudência penais, entre consumação formal e consumação material”. Mais: “ainda que a infração se tenha por típica ou formalmente consumada com a prática do primeiro, a persistência na ação ofensiva do bem jurídico deslocará o ponto de consumação material para a realização do último facto lesivo”, conclui o relator Ascensão Ramos.
É por isso que a data do recebimento da última vantagem ou suborno (o tal “último facto lesivo”) é o ponto essencial para o início da contagem do prazo de prescrição. O relator Ascensão Ramos enfatiza mesmo que é precisamente assim que é entendida a consumação do crime de corrupção na Alemanha (“onde a matéria não chega a ser sequer objeto de controvérsia”), em Itália, em França e no Brasil.
Daí que os cinco juízes conselheiros tenham entendido “não julgar inconstitucional” o disposto nos art. 119.º e art. 374.º do Código Penal “quando interpretados no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa é contado a partir da data em que ocorra entrega de uma dada vantagem ao funcionário, e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem”.
Tal como “não é inconstitucional a leitura de que o prazo prescricional do crime de corrupção ativa é contado a partir da data do pagamento dos subornos (leia-se, entrega da vantagem ao titular de cargo político) e não a partir da data em que se dá a oferta e aceitação da vantagem”.
Esta decisão unânime de cinco juízes do Tribunal Constitucional poderá ter importância na tramitação do recurso do Ministério Público sobre a decisão de não pronúncia do juiz Ivo Rosa de todos os alegados corruptores e corrompidos da Operação Marquês.
Isto porque o magistrado que liderou a fase de instrução criminal da Operação Marquês entendeu seguir a tese de Cláudio Monteiro, defendendo que o “início” da contagem “do prazo de prescrição nos crimes de corrupção” a partir do recebimento da última vantagem “conduz, sem fundamento dogmático e sem fundamento legal, à criação de uma nova categoria de crime — a do crime de consumação continuada — em manifesta violação do princípio da legalidade”, lê-se na decisão instrutória.
Enfatize-se, por outro lado, que o Tribunal da Relação de Lisboa tem tomado várias decisões nos últimos dois anos que acompanham exatamente a visão agora reforçada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 370/2023.
A declaração de voto que ataca o acórdão de Cláudio Monteiro
O acórdão publicado no site do Tribunal Constitucional tem ainda anexa uma declaração de voto do juiz conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro (atual vice-presidente do tribunal) que fez questão de reforçar os argumentos apresentados pelo relator, subscrevendo a decisão por entender que a fundamentação da mesma demonstra “cabalmente” que, ao contrário do que se entendeu no Acórdão n.º 90/2019″, o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa “é contado a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário, e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem — nos casos, como é bom de ver, em que a promessa preceda a entrega”.
Almeida Ribeiro faz questão de dizer que o Constitucional fez bem em admitir este recurso de Fernando Rodrigues Gouveia precisamente para deixar claro um entendimento constitucional diverso daquele que é defendido no Acórdão n.º 90/2019 e que foi seguido pelo juiz Ivo Rosa.
Tendo a questão da contragem do prazo de prescrição dos crimes de corrupção “entrado na jurisprudência constitucional pela porta (indevidamente) aberta no Acórdão n.º 90/2019, seria incompreensível que o Tribunal a viesse agora a fechar conferindo ao citado aresto, porventura de forma inadvertida, o estatuto de pronúncia singular e blindada sobre matéria tão melindrosa e consequencial”, lê-se na declaração de voto de Almeida Ribeiro.
“A presente decisão, em boa verdade, tem a virtude de, ao contrariar o juízo categórico firmado naquela, devolver aos tribunais comuns um problema de interpretação da lei penal que nunca deveria ter saído da sua esfera privativa”, afirma ainda o vice-presidente do Tribunal Constitucional, acrescentando que, “se tal se vier a justificar, poderá o Supremo Tribunal de Justiça, através do pleno das suas secções criminais proferir uma decisão uniformizadora.”