Há uns anos tinha uma rotina. Todos as noites visitava um site onde era possível ver episódios de “Seinfeld” em streaming 24 horas por dia. Por lá ficava, muitas vezes até adormecer. Cheguei a acordar com a voz do George. Os episódios não eram transmitidos por ordem cronológica e o site nem sempre funcionava bem, mas foi uma descoberta preciosíssima, já que acabara de oferecer a minha caixa de dvds com as 9 temporadas a uma ex-namorada, algo que poderia perfeitamente ser uma piada de Seinfeld (spoiler alert: assim como a nossa vida inteira).
O tal link foi, durante muito tempo, a melhor forma que encontrei de continuar ligado a estas quatro pessoas horríveis que eu aprendi a amar, e que há cerca de 20 anos habitam o meu cérebro. Portanto, antes de mais, permitam-me que agradeça à TVI pela decisão de transmitir este programa na década de 90. Nunca sabíamos bem a que horas começavam os episódios, só que seria depois das 2 da manhã e talvez não fosse transmitido nessa noite. Em matéria de produtividade nocturna, foi o meu período Marcelo: dormia no máximo 5 horas por noite, lia romances, relia os desportivos, jogava computador, descobria a pornografia. Em suma, foi uma das fases mais produtivas da minha vida.
[entrevista com Jerry Seinfeld em 1993:]
https://www.youtube.com/watch?v=g3wtTUi4VlU
Da mesma forma que um religioso mais ardente explicará o cosmos e as nossas vidinhas através de passagens da Bíblia, um amante de “Seinfeld” encontra nos seus 172 episódios explicação suficiente para, mais do que simplesmente compreender a vida moderna, se aceitar enquanto ser humano horrível que é. O segredo está no facto de estes quatro serem, quase sempre, piores do que nós e exporem o ridículo da nossa espécie através de rotinas stand-up de vinte minutos cuja narrativa cabe em três (há quem tenha feito este exercício). Eles bem diziam que era um show “about nothing”. No final, a história foi uma muleta secundária, construída apenas para acomodar o humor observacional de Jerry Seinfeld e Larry David, os criadores originais da série.
Quase todas as grandes sitcoms envelhecem bem, mas poucas foram tão obsessiva e genialmente apontadas ao mais essencial e desprezível do ser humano, e poucas foram as que permaneceram actuais. Mais: se algumas tiraram belos apontamentos acerca da evolução da ficção — “Arrested Development” à cabeça — outras procuram emular o género — “It’s Always Sunny In Philadelphia” <3 — e resistir à passagem do tempo numa era em que a criação e disseminação de comédia depende menos da TV como meio de propagação e mais do modo como os pedaços de comédia televisiva — ou qualquer outra coisa — são mastigados e novamente cuspidos cá para fora pela internet. Not that there’s anything wrong with it — pelo contrário. Também nessa vertigem encontramos combustível para excelentes criações cómicas e até para a vida depois da morte, como o provam Modern Seinfeld ou Reddit Writes Seinfeld, duas páginas de internet dedicadas à criação de novas storylines para a série, quase 20 anos depois da transmissão do último episódio. Eu raramente lá vou, aquilo dá-me para a comoção.
Tudo começa com qualquer coisa aparentemente insignificante a que se achou piada e acaba-se a escrever canções. Isso mesmo, canções. As palavras são de Jerry Seinfeld, no óptimo mini-tutorial How To Write a Joke em que explica a sua piada sobre a Poptart (uma tosta doce popular nos EUA), que mais não é do que uma longa viagem para se chegar a nada, a conclusão nenhuma. É quase refrescante, neste mundo cheio de absolutismos e postas de pescada.
Quanto à canção, e voltando a Seinfeld, logo se vê que género musical resulta daí, mas em Seinfeld temos direito a muitos refrões inesquecíveis — “shrinkage”, “hello newman”, “yada yada yada”, “these pretzels are making me thirsty”, “as entradas de Kramer”. E também há duetos que são pequenos tratados sobre as relações entre humanos — “it’s not you, it’s me”, sobre quem de facto é culpado por terminar uma relação, “key brothers”, sobre a miséria que vemos nos outros mas negamos existir em nós, ou, por exemplo, “the car reservation”, um diálogo perfeito que começa com mau serviço a clientes e segue por ali fora com indelicadeza, preconceito, sexismo, e um desdém em relação a pessoas no geral.
Talvez seja também uma das razões por que Seinfeld perdura: foi uma das últimas vezes nos EUA em que uma equipa de guionistas conseguiu utilizar xenofobia, racismo, sexismo ou discriminação física e o modo condescendente como nos vemos a praticar tudo isso, tudo isto de forma explícita em nome da construção destas personagens, e tudo em nome de uma boa gargalhada. Sim, também lá estava um espelho para nos vermos, mas sem moralismo à mistura. Muitas destas piadas talvez não colhessem hoje numa sala de guionistas — ou na internet, esse cão de guarda impiedoso, por vezes invisual.
Este “show about nothing” teve uma máxima que manteve até ao fim: “No hugging, no learning”, ou seja, não há cá abracinhos nem desfechos positivos após cada episódio. Ninguém aprende nada, e todos nos rimos uns dos outros. Foi assim ao longo de toda a série, com alguns momentos que, à sua maneira, explicam isto bem:
Jerry: “I had a very interesting lunch with George Costanza today.”
Kramer: “Really?”
J: “We were talking about our lives, and we both kind of realized we’re kids. We’re not men.”
K: “So then you asked yourselves, ‘Isn’t there something more to life?'”
J: “Yes, we did.”
K: “Yeah, well let me clue you in on something… There isn’t.”
J: “There isn’t?”
K: “Absolutely not. I mean, what are you thinking about, Jerry, marriage? Family? They’re prisons! Man-made prisons. You’re doing time. You get up in the morning, she’s there. You go to sleep at night, she’s there. It’s like you gotta ask permission to use the bathroom. ‘Is it alright if I use the bathroom now?!’ And you can forget about watching TV while you’re eating.”
J: “I can?”
K: ”Oh yeah. You know why? Because it’s dinnertime, and you know what you do at dinner?”
J: “What?”
K: “You talk about your day. ‘How was your day today? Did you have a good day today or a bad day today? Well, what kind of day was it? Well, I don’t know, how about you, how was your day?'”
J: “Boy.”
K: “It’s sad, Jerry. It’s a sad state of affairs.”
J: “I’m glad we had this talk.”
K: “Oh, you have no idea.”
— Jerry e Kramer, em “The Engagement”
E momentos que me ensinaram qualquer coisa. Em jovem, achava que me ria de “Seinfeld” porque era um puto estúpido. Hoje rio-me porque somos todos um bocadinho putos estúpidos, e não há nada de fundamentalmente errado nisso. Uma letargia sociopática caracteriza a maior parte das nossas vidas, mesmo quando nos parece que algo ou alguém à nossa volta mudou.
Somos todos criaturas algo patéticas, auto-centradas, maldosas, preconceituosas, cínicas, de moral insuflada à mercê de um alfinete que calha a todos. Até pode ser que a malta consiga mudar o mundo entretanto, mas lá no fundo somos todos má rés. Foi esta mundividência que garantiu a capacidade de me rir de mim quando, por exemplo:
- passei 9 meses numa startup e dei por mim várias vezes a trabalhar na Kramerica Industries, uma empresa em que segundo o LinkedIn mais de 100 pessoas na minha rede de contactos trabalham;
- conheci a namorada de um amigo meu há uns anos e dei por mim a perder demasiado tempo a explicar que não tinha problema nenhum por ela ser preta;
- quando, há muito tempo, conheci a primeira pessoa que era assumidamente homossexual;
- quando comecei a utilizar o palavra nazi como sufixo para descrever qualquer pessoa minimamente autoritária;
- quando vi a cara do meu primeiro filho;
- quando comi um mil folhas com talheres pela primeira vez;
- quando acabei com uma namorada porque não gostava do nariz dela visto de perfil;
- quando passei anos a tentar racionalizar as minhas reservas em relação ao casamento;
- quando me irritei pela primeira vez que alguém se aproximasse tanto da minha cara quando me dirigia a palavra;
- sempre que atendo o telefone e é um operador de telemarketing;
- ou quando o namorado de uma amiga minha esteve em coma e eu me enrolei com ela (mentira, ele não estava em coma).
E assim por diante, desde que me lembro, provavelmente até morrer. É uma dívida eterna que tento pagar novamente, desta vez com uma mensalidade entregue à Amazon. É a minha Bíblia Sagrada. Não oferece grande esperança, mas traz-me o conforto de saber que há mais como eu. De resto, a esperança é sobrevalorizada. Epístola de São George a Jerry: “I don’t want hope. Hope is killing me. My dream is to become hopeless. When you’re hopeless you don’t care. And when you don’t care, that indifference makes you attractive.”
Vou ter que ir. Estou a meio da quarta temporada e o meu filho mais novo, esse mostrengo inominável a que eu convencionei chamar “amor da vida do pai”, está quase a acordar. O mais velho já destrói qualquer coisa na sala e comporta-se pior do que um animal doméstico, mas milagrosamente ainda não exigiu ver a “Patrulha Pata”. Quando forem mais velhos, logo lhes explico tudo isto. Até agora revelam todos os sinais de poderem vir a ser idiotas como o pai.
À mãe, se me estiver a ler, só lhe agradeço por não ter um nariz demasiado grande e se rir sempre da Elaine ou até dos momentos em que o seu marido se comporta como o George. Aos que se ofenderam por eu ter comparado Seinfeld a uma religião, talvez vos reconforte saber que estes quatro acabam na prisão. Se isso não bastar, tomem lá mais duas linhas:
George: “I’m going straight to hell, no two ways about it.”
Jerry: “Well, it might not be hell but you’re gonna run into some bad dudes.”
Assim seja.
Vasco Mendonça é publicitário e co-CEO da associação recreativa Um Azar do Kralj