890kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

A carregar vídeo

"Tudo vai ser Ucrânia". A história da aldeia que se sacrificou para salvar Kiev dos russos

Reportagem na Ucrânia. A água voltou onde antes estava e o pântano de Demydiv impediu a progressão dos russos, que nem com pontes flutuantes se safaram. Ficou a destruição, diferente da das armas.

Vista de cima, a aldeia de Demydiv ainda era nos primeiros dias de maio um mar de água, em algumas partes, as mais baixas, apenas recortado por copas de árvores e telhados. O rebentamento da barragem Kozarovytskaya, no fim de fevereiro, salvou-a da ocupação — mas, sobretudo, salvou Kiev dos russos, que acabaram empurrados para Bucha, Irpin e Gostomel.

A mesma água que a poupou das armas está agora a pôr em causa a subsistência de quem ali vive: Mariya, Andrii e a mãe Kamilia, Victor e a família, e Natalya também são vítimas desta guerra, perderam tudo sem um único míssil ter atingido as suas casas. Orgulham-se de terem dado o que tinham para travar os invasores, mas não sabem como vão emergir das lamas que cobrem quintais, hortas, pisos térreos e, claro, enchem os bunkers. Há casas que ficaram até com as fundações danificadas e o chão já começou a ceder.

Uma noite mesmo no meio de russos e ucranianos

A 24 de fevereiro, Natalya Dobrovolska, de 51 anos, estava em casa com a filha Polina. O marido, Victor Dobrovolsky, de 50 anos, estava em Kiev — é lá que trabalha. Assim que se apercebeu dos primeiros ataques, ligou para a família. Não aguentou o choro e, do outro lado do telefone, Natalya também se desmanchou. Esvaziava-os não saberem o que fazer para salvar a filha de 14 anos num momento em que os russos se aproximavam a passos largos da aldeia e com eles traziam o pânico das maiores atrocidades.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Victor Dobrovolsky, 50 anos, estava em Kiev quando a invasão começou. A mulher, Natalya, e a filha estavam na aldeia

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Para Natalya foi muito difícil convencer-se de que os irmãos — “O meu irmão vive na Bielorrússia, eles são nossos irmãos, como é que não nos conseguimos entender? Sabe, eles não querem entender-nos!” — tinham declarado guerra à sua Ucrânia. Tinha de gerir a incredulidade com o que ia ouvindo naquela noite: “Eram talvez às 5h da manhã, quando acordámos com o som de bombardeamentos. Sabíamos que, não muito longe daqui, ficava a residência de Mezhyhirs’ka, da Guarda Nacional, onde estavam aquartelados os nossos militares, podia ser um ataque”.

Para chegarem a Demydiv, os russos não precisaram de fazer sequer 100 quilómetros desde a fronteira bielorrussa. Natalya tem dificuldade em lembrar-se de cada detalhe daquela aproximação à aldeia — foram horas que demoraram dias.

Logo na madrugada seguinte, a do dia 25, “houve fortes explosões”. “Nós pensámos logo que os russos tinham bombardeado a base militar de Lyutizh, não muito longe daqui. Mas depois percebemos o que realmente tinha acontecido: tinham sido os ucranianos a explodir a ponte sobre o rio Irpin para impedirem a progressão dos invasores”.

Quando isso aconteceu, os russos já estavam mesmo em Demydiv e preparavam-se para passar o rio e seguir até Kiev — em estrada direta, vindos da Bielorrússia. Falhado esse plano, as tropas do Kremlin ainda tinham um trunfo na manga: pontes flutuantes.

A ponte sobre o rio Irpin foi destruída. Os ucranianos abriram comportas da barragem Kozarovytskaya e explodiram a estrada que passa por cima

“Por cinco vezes montaram essas pontes”, conta ao Observador Andrii Tolkunov, também morador em Demydiv. Mas, como “há muita gente patriótica aqui, assim que os russos as montavam, as pessoas ligavam para os militares ucranianos a dizer exatamente onde estavam a ser postas as pontes e, a partir de Lyutizh, a 10 ou 15 quilómetros daqui, os nossos militares destruíam-nas”. “Aconteceu quatro ou cinco vezes. Sempre que eles tentavam, os ucranianos destruíam-nas”.

Os russos tinham de mudar de estratégia, conta Natalya. E foi aí que dividiram a coluna gigante em duas e, logo na sexta-feira, uma “tentou a sorte indo pela direita na bifurcação que existe antes da ponte destruída: ou seja, em vez de ir em frente, foi pela estrada que passa em Gostomel, Irpin e Bucha antes de chegar a Kiev”.

A segunda parte da coluna voltou para trás, em direção a Kozarovychi, para daí seguir por uma estrada alternativa junto ao rio que permitiria contornar a ponte destruída e seguir a direito para a capital. Se tudo corresse bem ainda alcançariam Lyutizh, o último reduto das forças ucranianas, de onde estavam a comandar todos os ataques, como o da destruição da ponte. Era o plano quase perfeito.

Depois de frustrada a tentativa de irem diretos para Kiev, os russos dividiram a coluna em duas. Uma seguiu a estrada de Gostomel, Bucha e Irpin, outra tentou sem sucesso contornar a ponte destruída

O “quase” em que os russos não pensaram é que essa estrada alternativa passava por cima de uma barragem — Kozarovytskaya. E os ucranianos não perdoaram a falha estratégica. “Abriram as comportas da barragem e explodiram a estrada que existe por cima. E eles tiveram de parar aqui. Ficaram não muito longe deste local, numa quinta para criação de ovelhas”, conta Natalya ao Observador, que ainda hoje chora de medo do tempo em que viveu entre soldados ucranianos e russos: Estávamos mesmo no meio”.

A frustração também terá feito com que os invasores mudassem de atitude com os moradores, que até determinada altura tinham rede móvel e podiam assim ligar para fora da aldeia. “Como perceberam que havia passagem de informação para os nossos, eles deitaram uma antena abaixo”, conta Andrii, garantindo que houve um endurecimento das regras e que os russos começaram aí a usar técnicas brutais: “Quando viam as pessoas na rua pediam para se deitarem no chão, e para porem o telemóvel no solo, junto à cabeça, e atiravam no telefone. Além do som, do impacto, os estilhaços atingiam a cara da pessoa. Eles faziam isso a pessoas novas e velhas”.

Aconteceu com Andrii: “Pediram-me para me deitar no chão, mas eu disse que não conseguia, porque sou inválido. E avisei-os mesmo que se me deitasse não me conseguiria levantar. Não foi longe daqui, foi junto à minha casa”. Teve sorte — e talvez tenha beneficiado dos seus 67 anos –, deixaram-no seguir, mesmo sem mostrar o telemóvel: “Já sabia que eles faziam estas coisas e deixei-o em casa”.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Em muitas casas, conta Andrii, foi dito às pessoas para porem uma fita branca à porta para os russos saberem que havia lá pessoas. “Depois iam lá para se despirem e eles poderem ver se tinha tatuagens ou suásticas”, diz, ironizando: “Veja, tentavam encontrar militares feridos, patriotas, fascistas. Imaginem… eu um fascista, a minha mãe, com 94 anos, uma fascista”.

De casa, Natalya ia-se apercebendo de tudo que se ia passando do ponto de vista militar, evitando sempre o contacto cara a cara com os russos: “Havia aviões russos, helicópteros, todos os dias, a atingir Gostomel, Chernobyl… eles até começaram a bombardear Gostomel, a 30 quilómetros, com um grande avião”.

Há uma data, porém que memorizou: 5 de março. Pôs dentro de uma mala os seus documentos e os da filha e uma garrafa de água. “Não aguentávamos mais, fomos a pé para a posição dos militares ucranianos e eles ajudaram-na a atravessar o rio. Se as pessoas fossem embora tinham de usar fita branca ou andar com braços no ar”.

A família não conseguiu ficar mais tempo, mas houve quem não saísse, sobretudo, pessoas mais velhas, porque quem tinha crianças não esperou o pior. “Talvez a 8 de março, o nível da água começou a aumentar e as pessoas tiveram de começar a andar pela água. Nessa altura, os russos disparavam sobre os civis e mataram até um polícia”, conta Natalya, explicando que saiu no momento certo. “Houve uma altura em que as tropas russas começaram a dizer que as pessoas não podiam sair da aldeia. Propuseram que quem quisesse sair tinha de o fazer para o lado da Bielorrússia”.

Não foi só ela e a filha Polina que evitaram o contacto cara a cara. “As pessoas não falavam com eles, estavam assustadas. Muitos moradores são pessoas velhas e viam os tanques pelas ruas, como aqui nesta rua. E não eram só soldados, havia também elementos da Guarda Nacional da Rússia, uma polícia militar”. Andrii Tolkunov conta mesmo que, além de ocuparem e imporem as regras — atacavam homens novos e um rapariga foi levada nunca tendo sido encontrada —, havia um grupo de militares que perguntava aos locais por “narcóticos”, “porque precisava de consumir”.

“Não tenham medo, só precisamos do Zelensky”

As traseiras da casa da família de Natalya Dobrovolska ficam mesmo junto a uma estrada que divide a zona mais alagada, da menos inundada. A estrada é alta e faz barreira — é, aliás, por isso que as terras desta família estão mais secas.

Mariya Kostychenko, 85 anos, reformada

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Noutra ponta da aldeia, a horta de Mariya é só lama. A reformada de 85 anos senta-se no banco que tem na porta principal de casa sem saber quando poderá voltar a plantar batatas nas traseiras. Sabe como tudo começou, mas também não lhe vê sentido: numa das noites que passava em branco dois aviões militares ucranianos voaram baixo e destruíram parte da barragem. “Foi talvez 15 dias depois de começar a guerra que a minha casa começou a ficar inundada”, conta ao Observador, lembrando o terror de nem os abrigos subterrâneos poderem ser usados a partir dessa altura.

“Talvez os nossos militares tenham tomado esta decisão para salvar uma vila semelhante a Demydiv, Kozarovychi. Os russos não conseguiram ficar por lá, porque parte do território ficou debaixo de água. Mas aqui, em Demydiv, eles estiveram”.

Os primeiros contactos que Mariya teve com os russos não foram maus, não fosse o pânico em que estava — na primeira noite de guerra nem pregou olho, “porque sabia que poderia morrer a qualquer momento”. “Os primeiros entraram nos quintais e disseram para não ter medo deles, que só precisavam do Zelensky (risos)”. Mas os segundos que passaram pela sua rua eram diferentes: “Procuravam nas casas tudo o que fosse bom para eles, para roubarem”.

Pela sua rua não passaram apenas russos, também viu “militares de olhos em bico”: “Era muito assustador, havia muitos tanques aqui na rua. E mesmo quando os ucranianos começaram a empurrar os russos, nós nem percebíamos se eram uns ou se eram outros a atacar”.

Já nas traseiras, que faz questão de mostrar ao Observador, o som ao longe de uma pequena bomba que tenta tirar a água da aldeia inteira contrasta com um cenário de água sem fim à vista. “Como veem não posso plantar batatas, nem milho nem nada. E isto é uma parte grande do meu sustento”, diz, enquanto fixa os olhos nas terras, e recua duas décadas para encontrar algo parecido. “Há 20 anos também houve uma enchente, com água vinda da barragem, mas não era tanta quantidade. Ainda se podia plantar, agora não. É impossível.”

Toda a zona até há pouco destinada ao cultivo foi em tempos pantanosa — foi precisamente a barragem que veio mudar todo aquele local, a drenagem do solo aconteceu ainda durante o período soviético.

“Спасибо [Spasibo, obrigado em russo].” Antes ainda de Maryia agradecer ao Observador por estar a mostrar em português o pesadelo em que está mergulhada, Andrii Tolkunov pára a sua Volkswagen Passat junto à porta de casa e pergunta se pode contar também o que tem sido a sua vida. Ele e a sua mãe, Kamilia, de 94 anos — que resistiu à Segunda Guerra Mundial, à Guerra da Coreia, para onde foi como profissional da saúde, e agora à invasão da Ucrânia.

Viver três guerras e o orgulho de ser ucraniano

O fato de treino azul e amarelo, da Ucrânia, não deixa margem para dúvidas sobre qual o seu lado nesta guerra. “Uso esta roupa normalmente, porque tenho orgulho no meu país, já era normal usar antes da guerra estas roupas, porque sou um patriota”, diz, explicando o que mais tem ouvido de quem sabe de guerras. Kamilia está no banco do pendura quando o filho de 67 anos sai para falar, mas ouve tudo ao longe. “A coisa mais horrível e assustadora para ela, em que ainda não acredita, que não entende, é que pessoas russas estejam a matar ucranianos. Ela pergunta: porquê? É o mais difícil de lhe explicar”, conta Andrii, acrescentando que a mãe, polaca que desde cedo vive na Ucrânia, “toda a sua vida pensou que a Ucrânia e a Rússa eram países irmãos, vizinhos”: “Que éramos o mesmo”.

Andrii Tolkunov, 67 anos, e a sua mãe, Kamilia Tolkunova, que já viveu três guerras

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

E a cada explosão junto à sua casa, o corpo de Kamilia reagia — a idade já lhe trouxe muitos problemas de saúde que já tinha e até já sofreu pequenos AVC. “Ficava com a tensão arterial elevada sempre que os tanques estavam perto do quintal, a toda a hora havia disparos”. Andrii foca-se na mãe, mas também tem estado a reviver o que preferia esquecer.

Na Segunda Guerra Mundial, os pais e o irmão foram torturados, queimados, porque eles tinham ligações aos partisans — grupos de pessoas, sem treino militar, que se organizavam numa espécie de guerrilha para reforçar a resistência à ocupação das tropas alemãs. Foram queimados à sua frente. Muito mais tarde, em 2017, o seu filho mais velho, militar, aos 44 anos. E agora o marido da filha mais nova é também militar e está a lutar pela Ucrânia. Desta vez, são os russos.

No momento em que decidiram parar para falar com Observador, levava a mãe ao cemitério. É início de maio, um dia de homenagem aos mortos na Ucrânia, e não queria perder a oportunidade de ir à campa do pai: ainda não tinham feito qualquer visita desde a saída dos russos, porque o cemitério ficara todo minado.

“Tudo ficará bem, tudo será Ucrânia”

A casa onde Nataliya Bekhovchenko, 53 anos, vive com o marido, a filha, o genro e dois netos ficou destruída. As fundações da cozinha, um anexo da casa principal, cederam e o chão está já todo desnivelado. “Tudo isto esteve submerso, só consegui salvar umas batatas. Tudo esteve submerso, a estrutura da casa, até o frigorífico…”, explica, dizendo não ver como poderá alimentar os mais novos nos próximos meses, até porque vivem do que plantam — o que agora é nada. A casa fica numa das zonas mais baixas, onde as terras estão mais encharcadas. E, para piorar, a empresa de Nataliya parou. Era gestora de armazém e agora não é nada.

Nataliya Bekhovchenko, 53 anos, gestora de armazém

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O único dia em que os russos estiveram posicionados na sua rua foi traumático, mas não houve confusão nem violência: “Estávamos muito assustados, mas os militares não tocaram em ninguém nesta área, não mataram, não magoaram ninguém. A atitude dos soldados russos aqui foi normal”. Logo após a destruição da barragem, ainda antes de a água chegar à aldeia, a família deixou de ver os invasores. Nessa altura, ainda chegou a pensar ir para outro local, mas no fim decidiu tentar apenas travar a água.

“Quando percebemos que ia haver inundação, pensámos que tínhamos de parar a água. Esperávamos que a água não chegasse aqui e, apesar do risco, não quisemos sair. Pusemos 300 sacos com areia para fazer uma barreira para a água. E resultou. Mas, claro, por baixo da terra há infiltrações”.

Passado o perigo, a cabeça de Nataliya só tem uma preocupação: pôr comida na mesa. “O meu trabalho parou, não tenho trabalho e, por isso, não tenho dinheiro. E, para completar, agora não temos alimentos. Por agora, ainda temos alguns produtos armazenados, mas amanhã não sei como será”, diz, sem duvidar que tempos melhores virão e repetindo uma das frases mais ouvidas por estes dias no país. “Tudo ficará bem, tudo será Ucrânia [Все буде Україна]”.

Quanto à casa, Nataliya não tem qualquer ideia “do valor dos prejuízos”. “Não somos pessoas ricas, não sabemos calcular os prejuízos, mas foram todos provocados pelas inundações”, lamenta, enquanto vai buscar forças para contar com um sorriso que agora de manhã os miúdos veem muitos sapos na rua quando acordam.

Nos próximos tempos todos terão de lidar com a destruição provocada por todas as partes — enquanto o bombeiro de serviço (há dois turnos e o da noite dorme numa carrinha oferecida pelos moradores) se mantém com uma pequena bomba a lutar contra o que nunca poderá vencer. Ele sabe isso, conta ao Observador, sem querer ser identificado. A destruição que mais custou a Andrii Tolkunov foi a dos seus. É isso que faz com que este “patriota” não tenha assim tanto orgulho em Demydiv: “Vivo aqui há nove anos e não tenho orgulho de todas as pessoas da aldeia. Sabe, nem só os russos roubaram, também houve alguns daqui a aproveitarem-se da confusão”.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.