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O sonho de Osman

Todas as nações precisam de um mito fundador e o da Turquia reza assim: Osman Gazi, líder dos turcos otomanos, tinha forte apreço por Edebali, homem de grande piedade e sabedoria, pelo que o visitava com alguma frequência na sua casa em Itburnu. Não seriam apenas as palavras do santo homem que o atraíam para Itburnu – quando um dia entreviu a sua bela filha, Mal Hatun (ou Malhun), as visitas tornaram-se mais regulares. Porém, Edebali não considerou tal relacionamento apropriado e sempre negou a mão de Mal Hatun a Osman. Embora contristado, Osman continuou a ser visita assídua da casa de Edebali e numa noite que lá passou teve um sonho em que se viu a si mesmo e ao seu hospedeiro repousando lado a lado. Do peito de Edebali ergueu-se a lua cheia, que, descrevendo um arco, mergulhou no peito de Osman e nele desapareceu. Foi então que uma árvore brotou do umbigo de Osman e cresceu e ramificou-se com desmedido vigor e a sua copa estendeu-se até lançar sombra sobre todo o mundo. Sustentando a vasta copa, como pilares, estavam quatro montanhas – Cáucaso, Atlas, Tauro e Haemus – e das suas raízes brotavam quatro rios – Tigre, Eufrates, Danúbio e Nilo. Na sombra da árvore, os campos produziam generosas colheitas, os mares eram sulcados por incontáveis navios, as cidades erguiam domos, cúpulas e minaretes para os céus e o canto dos muezzin ressoava no ar.

Quando Osman contou o sonho a Edebali, este congratulou-o: “Osman, meu filho, Deus concedeu, a ti e aos teus descendentes, o trono imperial e a minha filha Mal Hatun será a tua esposa”.

Osman I, segundo miniatura turca de 1579-80

Osman I, segundo miniatura turca de 1579-80

Os mitos fundadores costumam ter origem tardia e os factos nele relatados são nebulosos e não passíveis de verificação. O mito do sonho de Osman foi urdido um século e meio depois da morte do seu protagonista, em 1326, e serviu, muito convenientemente, para legitimar as ambições do Império Otomano ao domínio global.

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O embrião de um império

No final do séculos XIII, quando Osman era um jovem príncipe, nada permitia antever o poderio e esplendor de que o Império Otomano (cujo nome provém de Osman) atingiria na segunda metade do século XVI. Osman (1258-1326) era filho de Ertuğrul (c.1188-1281), um líder do clã Kayi, dos turcos Oghuz, que chegara à Anatólia ocidental, vindo do extremo oriental do que é hoje a Turquia, à frente de 400 cavaleiros, para auxiliar os turcos seljúcidas contra os bizantinos. A 17 de Janeiro de 1299, data que costuma ser assumida como a da fundação do Império Otomano, Osman declarou-se independente do sultanato seljúcida de Rum, mas a verdade é que o seu domínio era apenas um entre os muitos pequenos principados turcomanos em que estava dividida a Anatólia.

Os otomanos não só eram apenas uma fracção dos povos turcomanos que se tinham estabelecido na Anatólia como lá tinham chegado tardiamente. Os primeiros destes povos da Ásia Central, onde viviam como nómadas e dedicando-se à criação de gado, a deslocar-se para ocidente tinham sido os turcos seljúcidas, que há muito assolavam as fronteiras orientais do Império Bizantino.

À medida que este foi enfraquecendo, em boa parte devido às suas intermináveis disputas internas, os seljúcidas foram tornando-se mais afoitos e em 1071, liderados por Alp Arslan, infligiram uma pesada derrota ao exército bizantino em Manzikert (perto da moderna Malazgirt, na Turquia) e capturaram o imperador Romano IV Diógenes – a primeira vez que um imperador bizantino caiu nas mãos de muçulmanos. Alp Arslan, ao descobrir que o homem esfarrapado e ensanguentado que tinha perante si era o imperador bizantino, colocou-lhe um pé sobre o pescoço e obrigou-o a beijar o chão; depois, surpreendentemente, concedeu-lhe liberdade, tratou-o condignamente e propôs-lhe um tratado de paz. Romano IV encontrou menos misericórdia junto dos seus: uma conspiração palaciana aproveitou a sua ausência no campo seljúcida para proclamar a sua deposição, o que deu origem a uma guerra civil quando Romano IV regressou.

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Alp Arslan humilha Romano IV, iluminura do 2.º quartel do século XV

A vitória seljúcida em Manzikert, que John Julius Norwich considera ter sido “o maior desastre sofrido pelo Império Bizantino em sete séculos e meio de história”, abriu definitivamente a Anatólia aos turcos, que começaram a deslocar-se para ocidente em grande número.

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Expansão do Sultanato Seljúcida de Rum

O Sultanato Seljúcida de Rum – “Rum” era o nome dado pelos árabes à Anatólia e provém de “Roma”, uma vez que os bizantinos eram conhecidos como “romanos” – foi dilatando-se à custa dos bizantinos, tendo a derrota de Manuel I Komenos pelo sultão Kilij Arslan II, na batalha de Miriocéfalo (Myriokephalon), representado outro ponto crítico na história da Turquia: os turcos, até agora confinados ao planalto central, alastraram até à costa e começaram a controlar as rotas marítimas.

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Os turcos seljúcidas emboscam os bizantinos no desfiladeiro de Miriocéfalo. Gravura de Gustave Doré

O sultanato seljúcida atingiu o apogeu na primeira metade do século XIII, até que chegaram novos invasores das estepes da Ásia Central: os mongóis. Após esmagadora derrota na batalha de Köse Dağ (1243), na Anatólia, o sultanato seljúcida tornou-se estado-vassalo dos mongóis, devendo obediência ao khan mongol de Karakorum e o poder seljúcida começou a fragmentar-se.

Uma testa-de-ponte na Europa

O declínio seljúcida permitiu que Osman I proclamasse a independência em 1299 e fosse conquistando território aos enfraquecidos bizantinos. O seu filho Orhan (reino: 1326-1362) dilatou e consolidou essas vitórias – o reconhecimento do ascendente otomano é atestada pelo facto de o imperador João IV Cantacuzeno ter concedido a Orhan a mão da sua filha Teodora.

Com a conquista da Trácia, arrebatada aos búlgaros e aos bizantinos, Orhan inaugurou a expansão otomana no continente europeu. O seu filho Murad I (reino: 1362-1389) foi mais longe, ao transferir, em 1362, a capital otomana de Bursa, na Anatólia, para a recém-conquistada Adrianópolis, que rebaptizou como Edirne (nome que hoje mantém, fazendo parte da actual Turquia). Murad I prosseguiu a dilatação das fronteiras para ocidente, derrotando uma força conjunta sérvia e búlgara em Çirmen, conquistando Niš aos sérvios e derrotando os bósnios em Bileća. O momento culminante no conflito entre eslavos e turcos teve lugar na batalha de Kosovo Polje ou Campo dos Melros (1389), perto da actual Pristina, que resultou no extermínio mútuo dos exércitos em campo, incluindo o príncipe sérvio Lazar e o sultão Murad I.

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Batalha de Kosovo, por Adam Stefanović, 1870

O desfecho da batalha pode ser considerado como um empate, mas enquanto os sérvios e bósnios mortos representavam o grosso das forças militares disponíveis, os turcos dispunham de amplas reservas, pelo que rapidamente retomaram a sua progressão nos Balcãs. O filho de Murad, Beyazid I (reino: 1389-1402), incorporou no seu domínio os restantes emirados turcomanos da Anatólia, cercou Constantinopla (1394-1402), tornou a Sérvia num estado-vassalo, entrou pelo território da Bulgária e começou a ameaçar a Hungria.

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Beyazid I

Tirando partido de um interregno na Guerra dos Cem Anos, os países cristãos uniram forças para fazer frente a Bayezid I, naquela que pode ser vista como a última grande cruzada. O embate decisivo deu-se em 1396, em Nicópolis, a antiga capital do Império Búlgaro, nas margens do Danúbio, que caíra nas mãos dos otomanos. As tropas húngaras, búlgaras, sérvias, croatas, francesas, borgonhesas e alemãs, apoiadas por uma frota veneziana, foram derrotadas por Bayezid I, em parte devido ao comportamento insubordinado da cavalaria francesa, que se fez massacrar numa carga extemporânea e insensata.

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Batalha de Nicópolis, miniatura turca de 1523

A vitória de Bayezid em Nicópolis parecia deixar a Europa Oriental e os magros restos do império Bizantino (pouco mais do que Constantinopla) à sua mercê, mas o segundo cerco de Constantinopla acabou por ser levantado em troca de provas adicionais de submissão de Manuel II e as disputas fratricidas entre turcos na Anatólia acabaram por obrigar Bayezid a regressar à Turquia. A Europa foi salva de uma nova invasão turca pelo recrudescer do perigo mongol, agora sob a forma das hordas de Timur o Coxo (conhecido no Ocidente por Tamerlão, a partir do persa Timur Lang, que significa Timur o Coxo), que, depois de tomar Damasco (1400) e massacrar Bagdad (1410), começaram a atacar cidades na Anatólia oriental. Timur derrotou Bayezid I na batalha de Ankara, em 1402, e, segundo a lenda, terá aprisionado o sultão numa jaula, na qual durou pouco tempo.

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“O sultão Bayezid cativo de Timur”, por Stanislaw Clebowski, 1878

Timur parecia ter o império otomano à sua mercê, mas uma ofensa do imperador chinês – que lhe enviara uma carta em que o tratava como vassalo – levou-o a marchar para Oriente a fim de obter reparação para o agravo (assim se vê que, séculos antes da globalização e do Twitter, uma mensagem irreflectida escrita em Pequim tinha o poder de alterar dramaticamente o curso da história em Constantinopla). Para alívio dos turcos, Timur morreu no caminho, em Farab (hoje Otrar, no Cazaquistão), e os seus filhos e netos engalfinharam-se numa feroz guerra pela sucessão que durou 15 anos.

Entretanto, no Império Otomano as coisas não tomavam rumo muito diverso: os quatro filhos de Beyazid também não se entenderam quanto à sucessão, o que permitiu que os cristãos dos Balcãs reganhassem alguma independência.

De Constantinopla a Viena

A instabilidade entre os turcos só terminou com a subida ao poder de Mehmed II, o Conquistador (reino: 1451-1481), que, em 1453, conseguiu finalmente conquistar Constantinopla, pondo formalmente termo ao Império Romano do Oriente, embora deste não restasse senão uma pálida sombra da sua pretérita pujança.

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“Mehmed II entra em Constantinopla”, por Fausto Zonaro, 1885

Os turcos tomaram Constantinopla com a ajuda de tecnologia europeia: vários canhões gigantescos concebidos por um renegado húngaro conhecido por Orban (um dos quais era capaz de disparar um projéctil de 270 Kg a um milha de distância), foram decisivos no rompimento das imponentes muralhas da cidade. Após uma desagradável surpresa na batalha de Varna, em 1444, quando tinham experimentado na pele o poder de fogo da artilharia das forças húngaras e polacas (embora estas acabassem derrotadas, graças a uma manobra temerária liderada pelo jovem rei Władislaw III), os turcos também tinham investido nas armas de fogo – os otomanos poucas vezes foram capazes de inovar, embora, com a ajuda de técnicos europeus, fossem imitadores diligentes.

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Hagia Sophia, Istambul

A atitude otomana perante Hagia Sophia, a basílica da “Santa Sabedoria” dá disso testemunho: a basílica, construída entre 532 e 573, pelo imperador Justiniano e que era um dos mais acabados exemplos da arquitectura bizantina, foi convertida em mesquita e tornou-se no modelo para muitas outras mesquitas otomanas (nomeadamente a Mesquita Azul de Istambul).

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Mesquita Azul ou Mesquita do Sultão Ahmed, Istambul

O facto de Hagia Sophia ter sido, tal como outras igrejas e mosteiros cristãos, convertida em mesquita não significou o fim da Igreja Ortodoxa Grega: os otomanos eram tolerantes do ponto de vista religioso e o sistema conhecido como millet permitia que as comunidades religiosas não-muçulmanas (dhimmi, ou “povos protegidos”) vivendo sob domínio islâmico fossem autorizadas não só a praticar a sua fé como a reger-se pelas suas leis, desde que pagassem os seus impostos. Quando, em 1492, os judeus foram expulsos de Espanha (seguindo-se os de Portugal, em 1496), a maioria encontrou acolhimentos nos domínios otomanos do Mediterrâneo Oriental.

É também significativo que o nome mais corrente da cidade em documentos oficiais se tenha mantido como Kostantiniyye e que Istambul, embora fosse de uso corrente entre os turcos desde a Idade Média, apenas se tenha tornado no nome oficial na década de 1920.

[“Istanbul (not Constantinople)”, por The Four Lads, uma canção de 1953, que reflecte, em tom trocista, sobre a mudança de nome da cidade do Bósforo; a canção foi depois recuperada pelos They Might Be Giants]

Mais significativo ainda é que, após a conquista, Mehmed II tenha atribuído a si mesmo o título de Kaiser-i-Rum: “César dos Romanos”. Mas não era apenas Mehmed II que se via como herdeiro do Império Romano – o próprio papa Pio II escreveu uma surpreendente carta ao sultão em que lhe propunha não só reconhecê-lo como Imperador Romano do Oriente como somar-lhe o título de imperador do Ocidente, bastando para tal que Mehmed II se convertesse ao cristianismo.

O auto-intitulado Kaiser-i-Rum declinou a oferta papal e não tardou a prosseguir a dilatação do seu império, montando cerco a Belgrado em 1456. O cerco não logrou os seus intentos e os albaneses também opuseram tenaz resistência aos otomanos, só cedendo após a morte do seu líder, George Skanderberg (Iskender Bey), em 1468.

Pouco a pouco, os otomanos foram apoderando-se dos territórios que em tempos tinham estado sob a alçada do Império Bizantino, na Síria e no Norte de África, e alargaram-se também ao Cáucaso. Para Oriente, o maior obstáculo à sua progressão foram os Safávidas da Pérsia, de fé xiita (os otomanos eram sunitas), que desviaram importantes recursos militares otomanos – quem sabe do que estes teriam sido capazes na Europa se não tivessem esta “distracção” na sua retaguarda.

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Expansão do Império Otomano entre o seu nascimento, em 1300, e a sua máxima extensão, em 1683

Os reinados de Selim I, o Implacável (reino: 1512-1520), e Solimão (Suleiman), o Magnífico (reino: 1520-1566) contribuíram para consolidar a fama de invencibilidade dos otomanos.

Selim I impôs uma pesada derrota aos Safávidas na batalha de Çaldiran, o que lhe valeu a anexação do norte do Iraque, e pôs termo ao sultanato mameluco, assumindo o controlo dos territórios governados por este: Egipto, Síria e o Hijaz, na costa oriental do Mar Vermelho, o que lhe valeu o título de Defensor das Cidades Santas de Meca e Medina.

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Batalha de Çaldiran, miniatura turca do século XV

Solimão alargou o domínio em África para Ocidente, até o que é hoje a Líbia e conquistou Belgrado e Rodes. Em 1536, os seus impulsos expansionistas ganharam um inesperado aliado: Francisco I da França, ao ver-se rodeado de territórios sob o controlo do Sacro Imperador Romano Carlos V, estabeleceu uma aliança com os otomanos, que suscitou indignação em todo o mundo cristão (foi rotulada como “a ímpia aliança” ou “a sacrílega união da flor-de-lis e do crescente”). Esta aliança “contra natura”, considerada como a primeira a ultrapassar a divisória entre Islão e Cristandade (se não contarmos com alianças temporárias na Reconquista Ibérica e nas Cruzadas na Palestina e o comportamento sempre ambíguo da República de Veneza), manter-se-ia (ou, pelo menos, não seria formalmente revogada) durante dois séculos e meio, até Napoleão desembarcar no Egipto otomano.

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Francisco I e Solimão o Magnífico, por Tiziano, c. 1530; os retratos foram realizados separadamente, pois os monarcas nunca se encontraram

Com o respaldo da aliança com Francisco I, Solimão avançou e aniquilou, com alguma facilidade, as forças de Luís II da Hungria na batalha de Mohács, em 1526, e tomou conta de parte da Hungria, sendo o resto do reino abocanhado pelos Habsburgos.

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A batalha de Mohács, miniatura turca

O sucesso em Mohács deu afoiteza a Solimão para montar, em 1529, um primeiro cerco a Viena – em poucas décadas os otomanos haviam chegado ao coração da Europa. Em 1541, Buda (a parte ocidental do que é hoje Budapeste), a antiga capital do extinto reino húngaro, foi conquistada, tal como a Moldávia e outros territórios na costa noroeste do Mar Negro; no Oriente, o poderio otomano chegou ao Golfo Pérsico, com a tomada de Basra (mais conhecida em português por Baçorá).

Nem todos os propósitos de Solimão foram logrados: o cerco a Malta, um reduto dos Cavaleiros Hospitalários, fracassou e no Oceano Índico, no Golfo Pérsico e no Mar Vermelho impertinentes navios europeus, que tinham começado a criar problemas no reinado de Selim I, tornavam-se cada vez mais audaciosos, perturbando o comércio com a Índia e o Extremo Oriente – provinham de um país no extremo ocidental da Europa e tinham acedido ao Índico através de uma longa e temerária rota que contornava o continente africano, aberta por um tal Vasco da Gama. Eram pouco numerosos, mas os seus navios e a sua artilharia estavam uns furos acima dos congéneres otomanos.

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Portugueses em Ormuz (Hormuz), um porto estratégico na entrada do Golfo Pérsico; gravura de Civitates orbis terrarum (1572)

Mudança de maré

As lutas entre os filhos de Solimão, que tinham começado bem antes da sua morte, em 1566, foram tão ferozes que o sobrevivente, Selim II (reino: 1566-1574), acabou numa posição relativamente enfraquecida, de forma que a governação foi exercida, na prática, pelo grão-vizir Sokollu Mehmed Pasha (nascido na Bósnia). Foi no reinado de Selim II que teve lugar uma batalha naval de proporções épicas que é vista como um ponto de viragem na história otomana: a batalha de Lepanto (1571), em que uma frota de 212 galés de várias nações católicas do Mediterrâneo (a Santa Liga, que tinha como principais actores Espanha, Veneza, Génova, Nápoles, Sicília e Estados Pontifícios), reunida sob iniciativa do papa Pio V e comandada por D. João de Áustria, desfeiteou uma frota otomana de 251 galés comandada pelo almirante Ali Pasha. Os otomanos tinham ligeira superioridade em número de embarcações e de soldados mas a sua artilharia era menos numerosa e de qualidade inferior – uma desvantagem que se manifestaria noutros conflitos decisivos para o Império Otomano.

O resultado foi uma derrota esmagadora dos otomanos, com 50 navios afundados e 137 capturados, enquanto a Santa Liga perdeu apenas 17 navios. Porém, o poderio otomano não terá sido tão abalado quanto os cristãos julgaram – consta que quando o sultão Selim II perguntou ao grão-vizir quanto custaria reconstruir a frota perdida, o grão-vizir respondeu “O poderio e riqueza do nosso império são tais que se desejássemos equipar toda a frota com âncoras de prata, cordame de seda e velas de cetim, poderíamos fazê-lo”.

Sokollu Mehmed Pasha poderia não querer admiti-lo perante o sultão, mas a verdade é que, se Lepanto não erradicou os otomanos do Mediterrâneo, pôs termo à expansão da sua esfera de influência marítima.

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A batalha de Lepanto, por autor anónimo, possivelmente a partir de estampa veneziana de 1572

Em terra firme, todavia, a constante dilatação do Império parecia sustentar a bazófia de Sokollu Mehmed Pasha. A máxima extensão foi atingida no reinado de Mehmed IV (reino: 1648-1687): a nordeste, somara às conquistas anteriores o território entre a península da Crimeia e o Mar Cáspio, a sul, estendia-se até ao que são hoje o Yemen e a Somália, a oeste até ao que é hoje Marrocos, a norte até perto de Viena. O sonho de Osman tinha sido concretizado: o sultão era senhor de 30 milhões de súbditos espalhados por um território que abrangia as quatro cadeias montanhosas – Cáucaso, Atlas (Marrocos, Argélia e Tunísia), Tauro (sul da Turquia) e Haemus (Mons Haemus era um antigo nome dado aos Balcãs) – e os quatro rios – Tigre, Eufrates, Danúbio e Nilo – a que o mito fundador fazia menção.

Todavia, a segunda tentativa para conquistar Viena fracassou em 1683: após dois meses de cerco, os otomanos foram derrotados por uma coligação entre o Sacro Império Romano e a monarquia dual Polaco-Lituana, comandada por Jan III Sobieski, naquele que seria um ponto de viragem mais decisivo do que a batalha de Lepanto.

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Batalha de Viena (1683), autor anónimo

E passados três anos sobre a derrota às portas de Viena, os otomanos eram obrigados a retirar de Buda. E em 1687, um novo recontro em Mohács, entre as tropas de Mehmed IV, comandadas pelo grão-vizir Sari Suleyman Pasha e as do imperador Leopoldo I, comandadas por Carlos de Lorena, teria um desfecho diverso do de 1526: desta feita foram os otomanos a sofrer pesada derrota. O desânimo instalou-se entre as tropas, que se amotinaram, levando o grão-vizir a fugir, primeiro para Belgrado, depois para Constantinopla. Se buscava segurança, foi uma escolha pouco sensata, já que Mehmed IV o mandou executar, como era, aliás, usual fazer-se com os grãos-vizires derrotados (Kara Mustafa, o grão-vizir derrotado frente a Viena, já tivera a mesma sorte).

O próprio Mehmed seria deposto dois meses depois, num golpe que fez subir ao trono o seu irmão Solimão II. Tirando partido da desorientação entre os otomanos, as tropas dos Habsburgos reconquistaram Belgrado no ano seguinte (embora os turcos voltassem a apoderar-se dela – uma dança que se repetiria mais duas vezes no século seguinte).

O período áureo do Império Otomano chegara ao fim.

1687-08-12 (EV), 17. JAHRHUNDERT, 1880 (OR), BERG HARSANY, CAMPHAUSEN,WILHELM, CD, DEUTSCH, DEUTSCHLAND, DRUCKGRAFIK, DRUCKGRAFIK, FELDZEICHEN, GESCHICHTE, GRAFIK, GRAFIK, HOLZSTICH, KARL V. LEOPOLD VON LOTHRINGEN, KRIEG, LUDWIG WILHELM I.VON BADEN, MOHACS, QUERFORMAT, SCHLACHT, SW, TUERKEI, TUERKENKRIEGE,

A segunda batalha de Mohács, em 1687: ao centro, a cavalo, Luís Guilherme, margrave de Baden, e Carlos de Lorena, dois dos comandantes dos exércitos imperiais. Quadro de Wilhelm Camphausen, c. 1885

Impasse, estagnação e declínio

Ao Sacro Império Romano juntar-se-ia outro inimigo: a Rússia. Os tártaros da Crimeia, aliados tradicionais dos otomanos, tinham fustigado regularmente o território russo, mas a partir de finais do século XVII a iniciativa passou para o lado russo, sobretudo depois de, em 1686, se terem juntado à Santa Liga (Áustria, Polónia-Lituânia e Veneza). A Guerra Russo-Turca de 1686-1700 não teve um desfecho claro, mas os russos conseguiram tomar a importante fortaleza de Azov, decisiva para o acesso ao Mar Negro.

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“A conquista de Azov”, por Robert Kerr Porter, 1842

Do ponto de vista turco, poderia dizer-se que a ascensão da Rússia foi compensada pelo acentuado declínio do seu figadal inimigo a oriente, os Safávidas. O vazio de poder na Pérsia traduziu-se em ganhos territoriais repartidos entre a Turquia e a Rússia, mas foi esta quem mais lucrou com o desmoronamento dos Safávidas e os tratados de 1732 e 1735 acabaram por deixar a Turquia a enfrentar uma aliança russo-persa. Os vários conflitos entre turcos, russos e austríacos que pontuaram o século XVIII não tiveram resultados decisivos, mas traduziram-se, genericamente num recuo otomano nos Balcãs e em torno do Mar Negro.

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O Império Otomano em 1792

No início do século XIX, outra força desagregadora surgiu: o despertar dos nacionalismos nos Balcãs. Eclodiram revoltas por toda a Sérvia e em Belgrado, em 1806, foi feita uma proclamação apelando à unidade da nação sérvia – o Império Otomano foi forçado a aceitar o estabelecimento de um Principado da Sérvia, que, embora ficasse formalmente sob suserania turca, possuía governo, parlamento e constituição autónomos. Pouco depois, em 1821, era a Grécia que se revoltava contra o jugo otomano e as potências europeias foram arrastadas para o conflito: a Rússia de Nicolau I porque considerava que a Grécia fazia parte da sua esfera de influência e porque alimentava a esperança de que o Império Otomano fosse levado ao colapso, permitindo à marinha russa o domínio do Mar Negro o livre acesso ao Mediterrâneo; a Grã-Bretanha e a França porque o seu conceito de equilíbrio estratégico não permitia um estado grego sob controlo russo.

O turbante deixa de estar na moda

Mahmud II (reino: 1808-1839) fez uma leitura lúcida do constante recuo otomano e percebeu que era impreterível executar reformas profundas, a nível militar, administrativo, fiscal e até nos costumes. E uma vez que os europeus pareciam ter a supremacia em vários domínios, restava tomá-los como modelo.

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Mahmud II em 1815-20

Uma reforma de 1826 teve efeitos muito visíveis: decretou que os funcionários do Estado (incluindo os militares) deixariam de usar os trajos tradicionais turcos e adoptariam vestimentas de estilo europeu – e o próprio sultão deu o exemplo.

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Mahmud II em 1826

As reformas de Mahmud II encontraram, inevitavelmente, resistência em diversos sectores da sociedade otomana – e a mais feroz veio dos janízaros, pelo que Mahmud concluiu que para prosseguir os seus intentos teria de livrar-se deles.

Os janízaros tinham nascido como uma tropa de elite, recrutada através do devşirme (“tributo de sangue”): as comunidade cristã (mas não as muçulmanas nem as judias) vivendo sob o domínio otomano – sobretudo nos Balcãs e na Anatólia – eram obrigadas a contribuir com um certo número de rapazes, geralmente entre os 6 e os 14 anos, mas por vezes mais novos, que eram levados, se necessário à força, e eram educados como turcos, industriados na fé islâmica e submetidos a treino militar rigoroso. O estatuto dos janízaros era intermédio entre o de um escravo – eram propriedade do Estado e conhecidos como “escravos da [Sublime] Porta” – e o de um homem livre – tinham direito a salário e pensão de reforma.

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Registo de rapazes cristãos para fins do “tributo de sangue”; miniatura turca de 1558

Os janízaros eram combatentes temíveis e entre as suas funções estava a protecção do sultão. Porém, a consciência do seu estatuto sempre os levou a amotinar-se de cada vez que sentiam que os seus privilégios estavam a ser ameaçados, pelo que a história otomana é pontuada por numerosas revoltas de janízaros. A partir do início do século XVII, foram deixando de desempenhar missões de combate e tornaram-se numa casta privilegiada cujo principal fito era extorquir rendimentos à máquina do Estado e eram vistos como “gananciosos e indisciplinados” e “uma séria ameaça à estabilidade” do império. Embora já não combatessem, o seu número foi crescendo – eram 20.000 em 1575 e 135.000 em 1826 – e a sua omnipresença nos vários níveis da administração tornara-se num impedimento a reformas, que viam como uma ameaça ao seu modo de vida.

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Janízaro, gravura de Christoph Weigel, 1703, segundo Caspar Luyken

As reformas militares introduzidas por Mahmud II em 1826 previam a criação de um exército ao moderno estilo europeu e a extinção dos janízaros, o que levou estes a sair para as ruas de Istambul e a tentar cercar o palácio do sultão, mas foram dominados pelas tropas regulares e pela população, que invejava o estatuto de privilégio dos janízaros. Para congregar as forças fiéis e o povo em torno de si, o sultão exibiu o estandarte do Profeta, de forma a lembrar que era o seu representante na Terra. A revolta ficou conhecida na história da Turquia como “O Auspicioso Incidente” e há quem sugira que foi instigada pelo próprio sultão para ter um pretexto para eliminar de vez os janízaros. Se era esse o intuito, foi plenamente conseguido: os janízaros foram forçados a regressar aos quartéis, onde foram cercados e massacrados; os que escaparam foram alvo de uma repressão implacável, que incluiu o confisco de bens, penas de prisão e exílio e decapitações. O resultado foi que os janízaros deixaram de existir como grupo e dissolveram-se na sociedade otomana. Para remate, Mahmud II ordenou ao cronista da corte que registasse a “versão oficial” do “Auspicioso Incidente”, que foi impressa em 1828 e se converteu no relato-padrão para a história daquele período.

É tentador traçar um paralelo entre o “O Auspicioso Incidente” e o golpe de estado falhado de 15 Julho de 2016 na Turquia, que o presidente Recep Tayyip Erdoğan se apressou a classificar como “um grande presente de Deus” que permitirá “limpar as Forças Armadas” – “limpeza” que tem vindo a pôr em prática com rapidez e dureza e não apenas nas Forças Armadas, mas também no poder judicial, nas forças da ordem, no ensino e na administração, acompanhada por um apertar do cerco aos media, de forma a fazer prevalecer a sua versão dos eventos.

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“A Grécia nas ruínas de Missolonghi”, de Eugène Delacroix, 1826. O quadro representa um episódio particularmente cruento: no terceiro cerco otomano à cidade de Missolonghi, os gregos, flagelados pela fome e por doenças, fizeram uma surtida desesperada para tentar romper o cerco, que resultou num massacre às mãos dos otomanos

Enquanto Mahmud resolvia a questão janízara, os combates na Grécia prosseguiam, só tendo terminado em 1832, quando a Turquia concedeu independência ao país.

Ainda as armas não se tinham calado e já do outro lado do Mediterrâneo emergia uma ameaça bem mais inquietante. Após a retirada da expedição de Napoleão, o Egipto fora governado, desde 1805, por Mehmet Ali Pasha, (1769-1849), que tomara o poder pela força mas obtivera do sultão a legitimação da sua posição de Khediva do Egipto e do Sudão. Na verdade, o sultão, enfraquecido, não tivera alternativa senão reconhecer o poder de Mehmet Ali e este sabia-o bem. “Estou perfeitamente consciente de que o Império [Otomano] se encaminha para a destruição […] Nas suas ruínas erguerei um vasto reino [que se estenderá até ao Tigre e ao Eufrates”.

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Mehmet Ali Pasha supervisiona a criação de uma moderna marinha de guerra egípcia em moldes europeus. Autor anónimo, c. 1830-48

Mehmet Ali não só não deu o contributo a que estava obrigado para sufocar a revolta grega como conseguiu subtrair a Síria e a Arábia ao controlo otomano. Tal como Mahmud II, estava consciente de que só com reformas profundas o Egipto poderia ser verdadeiramente independente, mas nem o Khediva nem o sultão conseguiram alcançar os seus objectivos – o desfasamento acumulado em relação à Europa era grande e não bastava vestir os soldados e funcionários públicos com fardas ao estilo europeu para que eles adquirissem automaticamente os comportamentos e a eficiência dos europeus.

A Tanzimat (“reorganização”) delineada por Mahmud II e por Mustafa Reşid Pasha seria posta em prática a partir de 1839 pelo sucessor de Mahmud II, Abdülmecit I, e conheceria novos impulsos em 1856 e 1860. Entre as medidas previstas estavam – de acordo com Destiny disrupted: A history of the world through Islamic eyes, de Tamim Ansary (2009, Public Affairs) – a implementação de uma burocracia em moldes franceses, de um sistema judicial secular que tomaria o lugar da shari’a, um código criminal modelado no de Napoleão, um exército assente num serviço militar obrigatório tendo a Prússia como modelo, um ensino público secular com curricula similares aos das escolas britânicas, que relegaria para segundo plano o ensino tradicional, confiado aos clérigos, e a garantia de direitos cívicos básicos para todos os súbditos otomanos – o que incluiria a abolição da escravatura.

As reformas foram tão mal recebidas pelos ulemas (guardiões das tradições religiosas islâmicas) que a Sublime Porta compreendeu que teria de moderar o seu “ímpeto reformista”. De qualquer modo, as reformas foram insuficientes ou demasiado tardias para suster o declínio otomano e contrariar a pressão exercida pelas potências europeias.

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A batalha de Sinop, por Ivan Aivazovsky, 1853: A guerra da Crimeia começou com a destruição da frota otomana pela frota russa, a 30 de Novembro de 1853, em Sinop, na costa da Anatólia

O doente da Europa

Uma quezília bizantina (no sentido figurado do termo) sobre que nação teria a jurisdição sobre os locais de culto da Igreja Católica e Apostólica Romana na Palestina e a posse das chaves da Igreja da Natividade, em Belém, foi o inverosímil pretexto para iniciar a Guerra da Crimeia (1853-1856). Esta resultou, na realidade, do apetite do expansionismo russo, que via no debilitado Império Otomano uma presa fácil. A Rússia viu frustrados os seus intentos porque a França e a Grã-Bretanha entraram na guerra ao lado da Turquia, não para fazer cumprir o direito internacional ou por nutrirem qualquer simpatia pelo Império Otomano, mas simplesmente para evitar que a Rússia ganhasse demasiado poder. Nas negociações do Tratado de Paris, que pôs termo ao conflito, França e Grã-Bretanha impuseram medidas no sentido de suster o desmoronamento do Império Otomano, que era agora visto como “o doente da Europa” – uma expressão que se impôs por volta de 1853 e parece ter tido origem num comentário do czar Nicolau I.

Todavia, o Império Otomano não escapou ileso da Guerra da Crimeia: os seus estados-vassalos da Valáquia e Moldávia ganharam autonomia e foi concedido um estatuto de igualdade de direitos aos cristãos a viver no território otomano. Mais relevante ainda, as despesas do conflito forçaram o Império Otomano a contrair o primeiro do que seria uma série de empréstimos ao estrangeiro, numa espiral de endividamento que deixaria o país à mercê dos bancos europeus.

O fracasso na Guerra da Crimeia não arrefeceu o ânimo da Rússia durante muito tempo e a Guerra Russo-Turca de 1877-78 correu-lhe muito melhor, até porque soube tirar partido dos nacionalismos que despontavam nos Balcãs e, portanto, conseguiu ter a seu lado búlgaros, romenos, sérvios e montenegrinos.

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Batalha de Shipka, por Alexey Popov, 1893: 7500 búlgaros e russos resistem ao assalto de 40.000 otomanos, numa das batalhas da Guerra Russo-Turca de 1877-78

O Tratado de Berlim, que pôs termo ao conflito, em 1878, representou mais um golpe violento para o império agonizante, concedendo independência à Bulgária, Roménia, Sérvia e Montenegro. Ainda a tinta no tratado de Berlim não tinha secado e já a Áustria, querendo tirar partido da fraqueza otomana e poupar-se às maçadas, demoras e gastos de papel das conferências internacionais, tentava anexar a Bósnia-Herzegovina à força, embora os otomanos não tenham aberto a mão dela.

Entretanto, no interior do Império Otomano, reformistas e velha guarda iam travando uma guerra com avanços e recuos. A sociedade secreta dos Jovens Otomanos, um grupo formado em 1865 por intelectuais desiludidos com a fraca concretização prática das reformas da Tanzimat, obteve em 1876 uma assinalável vitória, ao conseguir que o sultão Abdul Hamid II aceitasse uma constituição. Porém, a “Revolução Francesa do Oriente” durou apenas dois anos: em 1878 a constituição foi suspensa e os poderes do sultão foram restaurados e em 1884 o “pai da constituição”, Midhat Pasha (que ocupara o posto de grão-vizir em 1872 e em 1876-77), foi assassinado.

Entretanto, os custos das guerras e revoltas e os ambiciosos programas de reformas e modernização – nomeadamente a construção de um rede de caminhos-de-ferro – iam fazendo as dívidas aos bancos europeus crescer a um ritmo vertiginoso, de forma que em 1881 foi criada uma entidade para se ocupar em exclusivo deste gravoso assunto: o Conselho de Administração da Dívida Pública Otomana.

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Cartoon na revista satírica britânica Punch de 28 de Novembro de 1896. O sultão Abdul Hamid II descobre, através de um cartaz, que está em curso a “reorganização do Império Otomano”, sob a gestão da Rússia, França e Grã-Bretanha: “Cáspite! Converter-me numa companhia de responsabilidade limitada?! Bem, espero que ao menos me dêem um lugar no conselho de administração”

Mas a erosão do império não parava e os otomanos não precisavam sequer de inimigos quando tinham amigos como a França, que tornou a Tunísia, uma província autónoma otomana, num protectorado seu em 1881, e a Grã-Bretanha, que tomou conta do Egipto no ano seguinte, alegadamente para pôr cobro à instabilidade, mas na verdade para salvaguardar os interesses da banca britânica (a tentativa de modernização do Egipto empreendida por Mehmet Ali fracassara e desde então o país fora atolando-se em dívidas até chegar à bancarrota).

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O Império Otomano em 1882

Os Jovens Turcos

A abolição da constituição em 1878 remetera os Jovens Otomanos para a clandestinidade, mas os movimentos reformistas não paravam de agitar-se e no início do século XX um grupo de activistas intitulado Jovens Turcos, onde se cruzavam ideologias muito diversas, e que pouco mais tinham em comum do que o desprezo pelos tradicionalistas e o entusiasmo pela “modernidade”, foi ganhando poder. Em 1908 os Jovens Turcos forçaram o sultão Abdul Hamid II a repor a constituição de 1876 e a remeter-se a um papel meramente simbólico – em 1909 o sultão tentaria um contra-golpe, mas o fracasso deste forçou-o ao exílio.

A modernidade almejada pelos Jovens Turcos tardava em chegar: a corrupção generalizada na administração era um entrave às reformas e o sistema fiscal era ineficaz e desequilibrado. Também não ajudava que o império continuasse a perder território a um ritmo alarmante: em 1908, a Áustria conseguiu finalmente a anexação oficial da Bósnia-Herzegovina e Creta separou-se do império para se unir à Grécia; em 1910, houve levantamentos tribais na Síria e na Arábia; em 1911-12, a Guerra Italo-Turca teve como desfecho a perda da Líbia e das ilhas do Dodecaneso para os italianos; e em 1912-13, as duas Guerras Balcânicas, opondo o império a uma liga formada por Bulgária, Sérvia, Montenegro e Grécia, resultaram na perda da Albânia, da Macedónia e quase toda a Trácia, o que forçou um milhão de muçulmanos que habitavam esses territórios a procurar refúgio na Anatólia. Nas vésperas da I Guerra Mundial, o Império Otomano perdera todo o território no Norte de África e conservava apenas um minúsculo enclave na Europa.

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O Império Otomano em 1913

O descalabro das Guerras dos Balcãs impeliu uma facção radical e ultranacionalista dos Jovens Turcos, o Comité da União e Progresso (CUP), a dar um golpe de estado, a 23 de Janeiro de 1913. Nazim Pasha, Ministro da Marinha e Chefe do Estado-Maior, foi assassinado, o grão-vizir Kamil Pasha foi afastado e o sultão foi deposto.

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Assassinato de Nazim Pasha, no Le Petit Journal de 9 de Fevereiro de 1913

Todos os partidos políticos foram declarados ilegais, com excepção do CUP, cujos três líderes, Talaat Pasha, Enver Pasha e Djemal Pasha (que ficaram conhecidos como “Os Três Paxás”), assumiram as rédeas da nação. Como escreve Tamim Ansary em Destiny disrupted, o CUP via “o nacionalismo como o caminho para [a Turquia] se salvar do imperialismo” e pretendiam “ver-se livres do desajeitado e antiquado conceito otomano de império multicultural e substituí-lo por uma máquina estatal turca, elegante, sem excrescências […] Teriam de prescindir das províncias árabes, claro, que se tinham tornado inadequadas […] mas sonhavam em unir a Anatólia aos territórios da Ásia Central que eram o berço ancestral do povo turco. Sonhavam com um estado-nação turco que se estenderia do Bósforo ao Cazaquistão”.

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“Ponto de fervura”, cartoon na revista satírica Punch de 2 de Outubro de 1912: Rússia, Grã-Bretanha, Alemanha, França e Austro-Hungria esforçam-se por evitar que salte a tampa do caldeirão das tensões nacionalistas nos Balcãs

A I Guerra Mundial e o seu rescaldo

Nos Balcãs havia quem tivesse sonhos análogos: a união de todos os eslavos dos Balcãs num só país, a Jugoslávia, a pátria dos “eslavos do Sul”. Este era um ideal da Jovem Bósnia (os sonhos eram ambiciosos, mas a imaginação para nomes era limitada) e de organizações nacionalistas afins, como a Mão Negra. Foi um activista desta última, Gavrilo Princip, que, em Sarajevo, a 28 de Junho de 1914, assassinou, num golpe de sorte, Franz Ferdinand, príncipe herdeiro do trono Austro-Húngaro, evento que precipitaria a I Guerra Mundial.

O Império Otomano não tinha que envolver-se no conflito e os Aliados fizeram os possíveis por persuadi-lo a manter a neutralidade, mas os líderes do CUP previram que a guerra seria breve e teria as Potências Centrais (Alemanha e Austro-Hungria) como vencedores e juntou-se a estas, esperando ser recompensado com a devolução dos territórios perdidos para a Rússia na Guerra de 1877-78.

Foi uma má aposta e a I Guerra Mundial resultou no desmembramento e extinção dos três impérios derrotados. O Tratado de Sèvres, de 10 de Agosto de 1920, retirou aos otomanos todas as suas províncias árabes: a Síria e o Líbano converteram-se em mandatos franceses, a Mesopotâmia (Iraque), a Palestina e várias possessões otomanas no Golfo Pérsico (Kuwait, Bahrain, Qatar) ficaram sob administração britânica, e os reinos de Hejaz (depois Arábia Saudita) e Yemen tornaram-se independentes.

Ainda mais difícil de aceitar para os nacionalistas turcos foram as disposições do Tratado de Sèvres sobre o território da Turquia propriamente dita.

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O Tratado de Sèvres previa a partição da Turquia, que ficaria reduzida ao território a amarelo claro

O tratado previa que a Grécia anexaria o resto da Trácia e ficaria provisoriamente, durante cinco anos, com uma vasta área em torno de Esmirna (a Izmir turca), ficando a cedência definitiva dependente de um parecer da Sociedade das nações. A Arménia, constituída com territórios retirados à Turquia e à URSS, conquistaria, pela primeira vez desde a Idade Média, o estatuto de nação independente (que só duraria até 1921). O destino do sudeste da Turquia ficaria suspenso até que a Sociedade das Nações decidisse se os curdos deveriam ou não ter aí a sua própria nação. O colosso otomano ficava reduzido a Istambul e o norte da Anatólia e, como se isso não bastasse, a zona do Bósforo-Dardanelos seria desmilitarizada e ficaria sob controlo internacional.

Entretanto, Istambul era, desde 1918, uma cidade ocupada por tropas britânicas e francesas, que tinham também tomado conta das fortalezas que controlavam o Bósforo e os Dardanelos. As forças aliadas reservavam-se o direito de ocupar qualquer ponto estratégico na Turquia que considerassem necessário para garantir a sua segurança e a maioria do território turco fora repartido em “zonas de influência” italiana, francesa e britânica. Os gregos, animados pela debilidade turca, entenderam que Esmirna e arredores não lhes bastavam e resgataram um sonho muito antigo, o da Grande Grécia, que, na Antiguidade Clássica, abrangera boa parte da Ásia Menor, e trataram de desembarcar tropas a fim de o concretizar.

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Navios de guerra britânicos ancorados no Bósforo, c. 1920

O pai dos turcos

Quando tudo parecia perdido e a Turquia vivia a sua hora mais negra, surgiu um homem providencial: Mustafa Kemal (a quem o parlamento concederia, mais tarde, o título de Atatürk, “pai dos turcos”).

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Mustafa Kemal Atatürk, 1923

Mustafa Kemal (1881-1938) tinha feito parte do CUP e participara na revolução de 1908, mas as suas críticas à liderança do partido e, em particular, a Enver Pasha, ditaram o seu afastamento. Tirando partido do intenso ressentimento que o Tratado de Sèvres gerou entre os turcos, Kemal estabeleceu um novo parlamento em Ankara (em oposição ao que funcionava em Istambul) e levou de vencida as tropas da Grécia e da recém-criada República Democrática da Arménia. As tropas gregas foram forçadas a retirar da Turquia e, após massacres perpetrados pelas tropas turcas, a população grega que vivia há séculos na Ásia Menor, fugiu em massa para a Grécia, ao mesmo tempo que parte dos turcos que ainda restavam nos Balcãs eram forçados a procurar refúgio na Turquia.

[O Grande Incêndio de Esmirna/Izmir: a cidade, uma das mais modernas, multi-étnicas e cosmopolitas da Turquia, foi ocupada pelas forças turcas e devastada por um incêndio que durou quatro dias, em Setembro de 1923; a sua considerável população grega e arménia concentrou-se nos cais, na esperança de escapar ao fogo e às atrocidades cometidas pelo exército turco]

A população grega de Constantinopla – que representava o maior grupo étnico da cidade, sendo mesmo superior em número aos turcos – foi poupada às perseguições ocorridas em Esmirna devido à forte presença de forças britânicas e francesas, mas, como escreve Philip Mansel em Levant: Splendour and catastrophe on the Mediterranean (2010, John Murray), “o governo turco queria que todos os gregos, incluindo o Patriarcado Ecuménico, fora de Constantinopla”. Em 1922, um representante de Kemal já tinha explicado a um diplomata britânico que “os gregos, se não forem expulsos, farão melhor em partir por sua iniciativa, pois não serão capazes de fazer a sua vida na nova Turquia”.

Quanto aos arménios que restavam em território turco, já dizimados pelo genocídio de que tinham sido alvo em 1915, sob o pretexto de conluio com o inimigo russo, também acabaram por procurar refúgio noutros países. A Ásia Menor e os Balcãs, que tinham sido, durante séculos, um espaço multi-étnico, multilinguístico e multicultural, sofriam assim, em poucas décadas, um brutal processo de “purificação”, desencadeado pela emergência de nacionalismos acrisolados.

O novo arranjo territorial foi fixado em Julho de 1923 pelo Tratado de Lausanne, em que a Turquia prescindia de quaisquer reclamações territoriais no que fora em tempos o Império Otomano, obtendo em troca o reconhecimento das suas fronteiras – que são as que hoje se mantêm – sem concessões a gregos, arménios ou curdos.

Empurrando a Turquia para a modernidade

Uma vez afastadas as “ameaças externas”, Kemal concentrou-se na Turquia. Já há alguns anos que o sultão estava reduzido a um papel secundário, mas a 1 de Novembro de 1922 Mehmed VI foi formalmente deposto pelo parlamento e enviado para o exílio e o seu cargo foi extinto; a República foi proclamada a 29 de Outubro de 1923 e a 3 de Março de 1924 foi extinta oficialmente a figura do califado; também em 1924 foi instituído um regime de partido único, o que permitiu que o Partido Republicano do Povo (CHP, em turco) detivesse o monopólio do poder até 1946.

Tendo “arrumado a casa” em termos institucionais e de regime, Kemal iniciou uma abrangente e profunda série de reformas que afectaram todas as facetas da sociedade turca: aprovação de novos códigos de vestuário (1925), encerramento de conventos (1925), introdução de novos códigos civil (tomando como modelo o suíço), criminal (tomando como modelo o italiano) e comercial (tomando como modelo o alemão) (1926), transferência da capital de Istambul para Ankara (1926), abandono do alfabeto árabe e adopção do alfabeto latino (1928), concessão de direitos políticos às mulheres (1934), inclusão do princípio da laicidade na constituição (1937).

Até a língua turca foi reformada: não só o Império Otomano tinha sido multilingue, como o turco tinha acolhido muitos vocábulos de outras línguas, sobretudo árabe e persa; além disso, a vastidão e diversidade do império tinham levado a que surgissem numerosas variantes regionais do turco. Kemal Atatürk entendeu que a unidade nacional seria melhor assegurada suprimindo a proliferação de dialectos e adoptando um turco-padrão, que não seria o turco literário da corte mas uma versão normalizada e expurgada de “estrangeirismos” do turco popular.

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Kemal Atatürk discursa em Bursa, 1924

“A Turquia [de Kemal Atatürk] não era para ser uma reinvenção do Império Otomano”, escreve Tamim Ansary em Destiny disrupted, “Atatürk repudiava o passado otomano e o império. Não fazia reclamações territoriais fora da Ásia Menor porque pretendia um território coerente, que fizesse sentido como país. Daqui em diante, a Turquia seria um país com fronteiras claras e imutáveis, cuja população seria etnicamente turca e falaria turco. Neste país, o Islão seria excluído de qualquer papel no espaço público e remetido para a esfera privada, onde poderia prosperar como qualquer outra religião, desde que os seus fiéis não incomodassem os vizinhos. A Turquia foi o primeiro país de maioria muçulmana a declarar-se secular e a fazer da separação entre política e religião uma prática oficial”. A unidade do país seria assegurada não pelo islamismo, mas pelo kemalismo, uma ideologia que combinava nacionalismo, secularismo, reformismo, estatismo, populismo e republicanismo.

Um dos eixos principais do plano visionário de Kemal Atatürk era “quebrar a autoridade dos ulema na Turquia, afastar o Islão do papel de árbitro da vida social e abrir caminho a uma abordagem secular ao funcionamento da sociedade”. Outro dos pontos fulcrais da sua agenda era “abrir o espaço público às mulheres. Para este fim, promulgou leis que davam às mulheres direito a votar, desempenhar cargos públicos e possuir propriedades, baniu a poligamia, desencorajou o sistema de dotes, desincentivou as antigas tradições matrimoniais, estabeleceu novas regras para o divórcio, baseadas no código civil suíço, não no Corão ou nos hadith” (Ansary). Quase um século depois, muitas destas medidas ainda são impensáveis em muitos países de maioria muçulmana.

A extinção do califado decretada por Kemal Atatürk não era uma mera formalidade burocrática: no mundo islâmico o califado não deixava de ocupar um lugar especial no imaginário dos crentes: “encarnava o sonho persistente de uma comunidade universal” (Ansary). É esse sonho pan-islamista, que Kemal Atatürk procurou erradicar e que aos olhos ocidentais de hoje pode parecer uma relíquia de outra era, que o radicalismo islâmico do século XXI (o sunita, pelo menos) procura reviver: a al-Qaeda anunciou inequivocamente ter como objectivo a restauração do califado e o ISIS/Daesh, que faz questão de ir sempre mais longe do que a al-Qaeda em fanatismo e “pureza”, apresentou-se ele mesmo como califado e atribuiu o título de califa ao seu líder Abu Bakr al-Baghdadi (embora a sua autoridade não seja reconhecida fora dos territórios sob o seu controlo).

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Kemal Atatürk apresenta o novo alfabeto à população de Kayseri, 1928

O sonho de Kemal Atatürk para o seu país foi explanado num discurso no II Congresso do Partido Republicano do Povo, que duraria um total de 36 horas e se estenderia entre 15 e 20 de Outubro de 1927 (ocupa 724 páginas, numa das edições em língua inglesa). Nele Kemal Atatürk apresenta a sua versão do colapso do Império Otomano e do nascimento da República Turca, desfere ataques contra críticos e dissidentes do seu partido e a jornalistas (por darem “tempo de antena” à oposição), justifica as medidas mais draconianas e repressivas que tomou, mostra em que alicerces está a erguer uma nova Turquia e traça caminhos para o futuro. O discurso tornou-se num dos alicerces do kemalismo, moldou a visão que as gerações seguintes de turcos teriam do conturbado período da viragem das décadas de 1920-30 e é tão marcante que ficou conhecido na Turquia simplesmente como “O Discurso” (Nutuk).

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Kemal Atatürk discursa no II Congresso do Partido Republicano do Povo, em 1927

Se as reformas empreendidas por Kemal Atatürk são em geral encaradas com simpatia no Ocidente, mesmo por quem reprove a sua governação ditatorial, o seu nacionalismo e a sua crença na superioridade racial turca, a verdade é que elas assumiram por vezes expressões negativas, como seja uma lei de 1934 que interditou o exercício de diversas profissões – incluindo a de médico – a não-turcos.

Apesar do papel singular que desempenhou na história turca e da persistência do kemalismo até aos nossos dias, Kemal Atatürk não é consensual, mesmo na Turquia. Como assinala Margarida Santos Lopes, em Novo dicionário do Islão (2010, Casa das Letras), os muçulmanos tradicionais abominam o seu secularismo, outros não lhe perdoam que se tenha comportado como “um ditador sem princípios”, os curdos queixam-se das suas políticas de assimilação e os vizinhos derrotados na Guerra da Independência Turca de 1919-23 ainda lamentam os territórios perdidos.

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Curdos em trajos tradicionais, 1899

De Atatürk ao século XXI

A Turquia teve uma ligação privilegiada à Alemanha na viragem dos séculos XIX-XX e Hitler manifestou repetidamente o apreço por Kemal Atatürk, a quem chamou “uma estrela cintilante na escuridão”, mas nunca saberemos que atitude tomaria Kemal Atatürk perante a II Guerra Mundial, pois faleceu em 1938. O seu sucessor, Ismet Inönü, manteve a neutralidade, embora não faltassem vozes nacionalistas na Turquia que, a partir de 1941, apelaram à declaração de guerra à URSS, na esperança de ressuscitar o sonho de erguer uma Grande Turquia do Bósforo ao Cazaquistão, à custa das repúblicas soviéticas da Ásia Central.

Em 1946 tiveram lugar as primeiras eleições pluripartidárias, que foram ganhas pelo partido no poder; as de 1950 foram ganhas pelo Partido Democrático, que se manteve no poder até ser derrubado por um golpe de estado militar; voltariam a ocorrer golpes militares, acompanhados de repressão (por vezes brutal) e justificados como visando preservar a doutrina kemalista e o secularismo, em 1971 e 1980. Nos três casos, os militares devolveram voluntariamente o poder aos civis passado um ano ou dois e permitiram a organização de eleições livres, mas mantiveram um controlo apertado sobre a política e a sociedade, recorrendo às figuras da lei marcial e do estado de emergência (que, no Curdistão chegou a ser prorrogado por 15 anos). A influência dos militares nem sempre precisou de manifestar-se sob a forma de tanques a cercar o parlamento: por exemplo, em 1997, fizeram saber ao primeiro-ministro Necmettin Erbakan que, uma vez que as políticas empreendidas pelo seu governo no domínio religioso eram contrárias ao espírito do kemalismo, teria de resignar – o que Erbakan fez.

A eleição em 2002 de Recep Tayyip Erdoğan, ex-presidente da câmara de Istambul, para primeiro-ministro foi um ponto de viragem na política turca. O seu partido, o AKP (sigla turca para Partido da Justiça e Desenvolvimento) é conservador e começou por apresentar-se como “pró-Ocidental” e, uma vez que almejava aderir à União Europeia, empreendeu algumas das reformas requeridas pela UE, nomeadamente no campo dos direitos humanos. Os seus resultados nas eleições legislativas foram de 34.3% em 2002, 46.6% em 2007 e 49.8% em 2011; caíram para 40.95 em Junho de 2015, mas recuperaram para 49.5% em Novembro do mesmo ano – são resultados que espelham o clima de estabilidade e o crescimento económico que a governação do AKP soube assegurar, apesar da contestação dos sectores mais progressistas da sociedade à derrapagem em direcção ao islamismo.

Turkish President Recep Tayyip Erdogan delivers a speech, flanked by his wife Emine, during a reception for World Smoking Cessation Day at the Presidential Palace in Ankara on February 9, 2016. / AFP / ADEM ALTAN (Photo credit should read ADEM ALTAN/AFP/Getty Images)

Recep Tayyip Erdoğan e a esposa, Emine

Um novo sultão?

Em Abril passado, o presidente do parlamento turco, uma figura cimeira do AKP, que faz parte do círculo íntimo de Erdoğan, pôs em causa um dos pilares do regime turco desde 1922 quando declarou “Somos um país muçulmano, portanto devemos ter uma constituição religiosa. O secularismo não pode figurar na nova constituição”.

Seja qual for o seu lugar na constituição turca, o secularismo já está em recuo na vida quotidiana, com o levantamento da interdição do uso de véu nas escolas e serviços públicos, na imposição de restrições à venda de álcool; até os cursos de empregado de bar no ensino profissional nas escolas públicas estão na mira do AKP. Em 2014, Erdoğan manifestou a intenção de que o ensino da língua turca no ensino secundário se faça no alfabeto árabe e se volte a ensinar o turco otomano anterior às reformas de Atatürk (apesar de este ter saído de uso há quase um século e de, mesmo então, ser falado apenas pela elite).

Entretanto, Erdoğan, depois de ter exercido o cargo de primeiro-ministro entre 2003 e 2014, foi eleito presidente em 2014 e assumiu uma actuação que extravasa o que era usual no cargo presidencial, ao mesmo tempo que tornava secundário o papel de primeiro-ministro (o anterior, Ahmet Davutoğlu, não se mostrou suficientemente subserviente, pelo que foi pressionado a demitir-se em Maio passado e substituído por Binali Yildirim).

A presidencialização do regime, a reversão de muitas das reformas de Atatürk, a crescente repressão dos media, a intimidação do sistema judicial e do Tribunal Constitucional, a decisão de construir um sumptuoso palácio presidencial de 300.000 m2 e 1150 divisões, e a actuação dúbia no que diz respeito à guerra na Síria e ao combate ao ISIS/Daesh, sugerem que Erdoğan se verá mais como um continuador dos sultões e um restaurador da glória otomana de outrora do que como um herdeiro de Kemal Atatürk.

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A residência oficial de Erdoğan desde 2015: um palácio digno de Solimão o Magnífico

Resta saber que validade terá o kemalismo no nosso tempo. Caroline Finkel, no seu monumental Osman’s dream: The story of the Ottoman Empire 1300-1923 (2005, John Murray) lembra que “a actuação de Mustafa Kemal foi ditada pelas ameaças que pairavam [sobre a Turquia] nos anos em que ele esteve no poder; mas os tempos mudam e as soluções concebidas para lidar com as aspirações e os temores da década de 1920 não são as mais apropriadas para lidar com os problemas e desafios do século XXI”.

Mas é duvidoso que a governação ao velho estilo otomano seja melhor.