Em janeiro de 2022 deixei claro que seria perigoso ignorar o risco real de uma invasão russa em grande escala da Ucrânia. Infelizmente, a previsão confirmou-se, desmentindo os muitos que previam, confiantes, que tudo não passava de propaganda americana. Que balanço podemos fazer hoje, um ano depois do início da guerra?
Vamos olhar para alguns números que concretizam a realidade da guerra. Depois, iremos focar-nos nos grandes objetivos dos beligerantes, bem como na evolução da dimensão militar mais operacional. Concluiremos com o impacto do conflito na evolução da ordem global e o seu possível desfecho.
Uma terrível contagem
Depois de um ano, a invasão russa da Ucrânia arrisca-se a transformar-se numa guerra prolongada, com uma linha da frente muito longa, de mais de 1500 quilómetros. Os principais combates centram-se, agora, no Donbas. Faz sentido que numa frente tão ampla, e com as condições atmosféricas adversas do outono e inverno, tenha prevalecido nos últimos meses uma guerra predominantemente defensiva, de trincheiras, no modelo da Primeira Guerra Mundial.
Esta é uma guerra de intensidade mais elevada do que tem sido habitual nas últimas duas décadas. O critério para um conflito armado ser suficientemente intenso para ser considerado uma guerra é provocar mais de mil mortos em combate por ano. O conflito no Donbas, provocado pelo separatismo pró-russo no leste da Ucrânia, patrocinado e apoiado militarmente pela Rússia, terá resultado em 14 mil baixas e talvez 3000 mortos, entre 2014-21, a maioria dos quais na Ucrânia livre e nos dois primeiros anos. No ano de 2021, segundo as autoridades separatistas do Donbas, teriam sido mortos oito civis nessa região.
Todas as mortes de civis num conflito são trágicas, mas o conflito no Donbas não era uma guerra e muito menos era o genocídio alegado pela desinformação do Kremlin para tentar justificar a agressão russa. Desde 24 fevereiro de 2022 e até janeiro da 2023 verificaram-se 18.483 baixas civis, entre as quais 7.068 mortos devidamente identificados, segundo a ONU. Mas este é o limiar mínimo, são apenas os civis devidamente identificados. Estima-se que o total de baixas civis poderá chegar às 30 mil ou até às 40 mil, e este número continua a crescer.
O número exato de baixas militares — tropas mortas ou seriamente feridas, ficando incapacitadas para o combate — é um segredo bem guardado pelos dois lados. Mas, dada a intensidade do combate, parecem credíveis as referências a entre 150 mil e 200 mil baixas entre as tropas russas — mortos e feridos graves, incapacitados para o combate. E, destes, talvez cerca de 60 mil mortos. Entre os ucranianos, o custo em termos relativos é maior, embora o número total seja menor, estimando-se em 100 mil/150 mil baixas. E também se estima que terá menos mortos, talvez 30 mil, graças a uma medicina de combate ucraniana muito mais eficaz do que do lado russo, que trata os soldados como carne para canhão. Sublinho que são estimativas.
O que é claro é que as baixas russas excederam em muito as expectativas da liderança russa. Daí que Putin tenha sido forçado a voltar atrás na promessa que fez publicamente no início da invasão, de que ela seria feita apenas com base em voluntários, decretando uma mobilização parcial de mais 300 mil soldados, em setembro de 2022, que gerou um raro momento de alguma contestação na sociedade russa. Por comparação, em 10 anos da guerra soviética no Afeganistão, entre 1979-89, o total de mortos russo-soviéticos foram 15 mil, num total de 45 mil baixas. No entanto, desta vez não há sinais de abalos relevantes na lealdade da elite política e securitária.
O que poderá explicar esta resiliência do regime de Putin? As sanções demoram tempo a produzir efeito, até porque há muitos incentivos para as contornar, mesmo que resultem em piores produtos e mais caros. A recessão económica russa foi menor do que esperado e mais apoios e subsídios estatais têm sido prometidos. Depois, há que contar com a crescente censura e repressão — penas de até 15 anos para quem mencionar a guerra. Há também que contar com o peso na cultura política russa da nostalgia imperial e da ideia de que a alternativa é: autocracia ou anarquia, um poder forte ou o regresso aos caos, como em 1991, em 1917, ou no início do século XVII. É relevante que muitas destas baixas são jovens soldados pobres de regiões ultraperiféricas como Tuva ou Buriácia, ou entre os milhares de criminosos recrutados pelo grupo Wagner. O facto de — até por imposição ocidental — a Ucrânia não atacar grande parte do território da Rússia permite a muitos o luxo de ignorar a guerra.
É também fundamental não haver uma alternativa viável a Putin. O Presidente russo garantiu isso prendendo, exilando ou assassinado os líderes oposicionistas. Organizando teatros televisivos que deixaram toda a elite governativa publicamente comprometida com o apoio à invasão. Claro que essa elite já está comprometida por décadas de acumulação cleptocrática que torna qualquer mudança de regime muito arriscada para muita gente com muito a perder. Putin também não tem um parlamento ou um partido a que tenha de prestar contas. O partido Rússia Unida, que domina a Duma, é um instrumento de Putin. E não há verdadeiros partidos de oposição, o Partido Comunista da Rússia ou o do falecido Zhirinovsky são igualmente nacionalistas e belicistas. Por fim, um outro número importante é o do autoexílio de 500 mil a um milhão de russos, opostos à guerra ou simplesmente indisponível para serem mobilizados. A saída desta população, a maior parte jovem, dinâmica e educada é péssima para a Rússia — que já é o país da Europa com maior redução da população prevista até 2050 —, mas serviu como uma válvula de escape para o regime, privando a oposição de potenciais recrutas.
Outro número que não podemos ignorar é que desta guerra resulta a maior crise de refugiados da Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial. São pelo menos oito milhões de refugiados ucranianos que fugiram para o resto da Europa, e cinco milhões deslocados no interior do país para zonas mais seguras. E talvez três milhões que se deslocaram para Rússia, muitos alegadamente deportados, inclusive milhares de crianças separadas das suas famílias. O que é certo é que estes ucranianos não teriam abandonado a sua casa, a sua terra, se não fossem forçados a isso por esta guerra de conquista, em que a Rússia chegou a ocupar 25% do território ucraniano, e neste momento ainda ocupa 15%.
O número que torna esta invasão russa da Ucrânia mais excecional é que ela faz parte de uma pequena percentagem de menos de 20% das guerras entre Estados, desde 1945. Mais de 80% das guerras dos últimos 80 anos aconteceram no interior de um Estado — guerras intraestatais ou civis, mesmo que internacionalizadas. Estas guerras civis podem ser muito sangrentas, mas, pelo menos, não afetam um dos pilares da ordem internacional: o respeito pelas fronteiras exteriores dos Estados e a regra de essas fronteiras não poderem ser alteradas pela força.
Por fim, esta guerra é absolutamente excecional porque é a primeira guerra de conquista por uma grande potência desde o final da Segunda Guerra Mundial. Desde então, por via da Carta das Nações Unidas de 1945, o direito internacional deixou de aceitar o direito de conquista e a guerra deixou de ser considerada um instrumento normal de ação dos Estados. Podemos criticar muitas intervenções militares dos EUA nas últimas décadas, mas elas nunca resultaram na anexação de qualquer território ocupado. Saddam Hussein tentou conquistar o Kuwait em 1991, mas a sua derrota reforçou a norma que proíbe guerras de conquista. Este facto faz desta guerra o maior desafio à paz e à ordem internacional em muitas décadas.
Os objetivos de guerra
As Forças Armadas não existem para si mesmas, menos ainda em tempo de guerra. Como terá dito o líder que levou França à vitória em 1918, Georges Clemenceau: “A guerra é demasiado importante para ser deixada apenas aos generais.” Capacidades e objetivos militares são meios para atingir um fim maior. É por isso que a guerra é definida pelo famoso general e estrategista Carl von Clausewitz como a “continuação da política por outros meios”. É fundamental, portanto, olhar para os objetivos declarados dos beligerantes e dos seus principais aliados.
Putin anunciou uma “operação militar especial” com uma série de objetivos incríveis, mas dois que devemos levar a sério, depois de devidamente descodificados: “Desnazificar” e “desmilitarizar” a Ucrânia. Traduzindo da novilíngua putinista: nazi significa todo aquele que se opõe ao Kremlin; desmilitarizar significa privar a Ucrânia dos meios para se defender da coerção russa. O verdadeiro objetivo estratégico de Putin era, portanto, acabar com uma Ucrânia verdadeiramente independente, derrubar o governo livremente eleito em 2019, colocar no poder um fantoche pró-russo, como o seu compadre Medvedchuk, que acabasse com qualquer aproximação ao Ocidente e estivesse disposto a formalizar a cedência de território estratégico à Rússia.
O objetivo acessório de Putin é demonstrar que a Ucrânia não existia, e que o Ocidente estava decadente, dividido e era incapaz de ajudar. Putin é um nacionalista de velha guarda, obcecado pelo velho império russo-soviético. Uma Ucrânia democrática, próspera e pró-ocidental é um constante desafio ao seu regime cada vez mais repressivo, mostrando que há alternativas no espaço pós-soviético.
Desse ponto de vista, a Rússia já perdeu esta guerra. Não conseguiu a vitória rápida que provaria que a Ucrânia não era uma verdadeira nação. E, pelo contrário, reforçou o nacionalismo ucraniano e tornou-o mais hostil à Rússia. Uniu grande parte da Europa e os EUA no seio da NATO e da União Europeia (UE) em oposição à Rússia. A Rússia queria uma demonstração espetacular da sua força e acabou por demonstrar uma enorme fraqueza, desde logo no campo militar.
Quais são os objetivos estratégicos da Ucrânia? O principal é provar que existe e resiste. Esse objetivo foi alcançado apesar da enorme assimetria em poder estrutural, seja em termos de dimensão do território, da população ou de meios militares em comparação com a Rússia. Um segundo objetivo, não menos fundamental, é mostrar que a Ucrânia merece o apoio dos países ocidentais, desde logo através de uma resistência eficaz, mas também do combate à corrupção. Sem esse apoio ocidental, uma resistência prolongada seria muito mais difícil, se não impossível. Também isso tem sido alcançado. Até ao ano passado, a Ucrânia não era vista como uma candidata viável à adesão à União Europeia. Hoje, é formalmente país candidato. Talvez seja um entusiasmo do momento, e a adesão não será fácil, mas, para já é um ganho claro dos ucranianos.
Para os países ocidentais, em particular os EUA e a maioria dos países europeus — sobretudo, os mais próximos ou vizinhos da Rússia —, o objetivo estratégico inicial era fazer pagar um preço elevado pela invasão russa. E, assim, evitar a normalização do regresso do direito de conquista e das guerras de agressão pelas grandes potências, criando um perigoso precedente gerador de desordem regional e global. Para os países europeus vizinhos da Rússia e da Ucrânia, a prioridade era travar esta agressão russa, evitando que os ameaçasse diretamente. Para os EUA, mas também para os principais aliados ocidentais, o objetivo era travar a Rússia de uma forma que não levasse a um alargamento da guerra a países da NATO e a uma escalada para uma Terceira Guerra Mundial, potencialmente nuclear.
O trágico incidente, em novembro de 2022, que causou a morte de dois civis polacos mostrou que os países da NATO iriam respeitar essa linha vermelha mesmo em circunstâncias extremas. E a Rússia, apesar de toda a propaganda de sentido oposto, também mostrou não ter interesse em alargar a guerra para um conflito direto com países membros da Aliança Atlântica, muito mais capazes de lhe resistir militarmente do que a Ucrânia. É por isso, também, que os países ocidentais deixaram claro, desde o início, que não iriam envolver-se diretamente com tropas no conflito. É uma limitação importante da eficácia do envolvimento ocidental, mas essa estratégia tem sido relativamente bem-sucedida. Por isso, é tão importante na estratégia da Rússia a desinformação que visa desmobilizar o apoio ocidental à Ucrânia, procurando apresentar as armas que ajudaram a travar a agressão russa como uma ameaça à paz e não como uma ameaça ao imperialismo de Putin.
E o resto do Mundo? Está longe da guerra. Muitos países pobres e periféricos veem no conflito um obstáculo ao seu desenvolvimento e uma questão europeia, têm como prioridade defender pragmaticamente os seus interesses em boas relações de cooperação e comércio com os dois lados. Ainda assim, convém recordar que a maioria dos países do dito Sul Global não apoia a Rússia, e na Assembleia Geral da ONU esse grupo condenou a invasão russa; a maioria dos outros não foi além de abster-se de a condenar ou de recusar cortar relações económicas com Moscovo. Nem mesmo potências emergentes como a China ou a Índia se mostraram dispostas a sacrificar os seus interesses para apoiar militarmente a Rússia. Só mesmo Estados párias, como o Irão ou a Coreia do Norte, a Eritreia ou a Síria, viram na guerra uma oportunidade de reduzir o seu isolamento ou de reforçar a sua cooperação militar com a Rússia.
As fases da guerra: da máxima assimetria até às trincheiras
Em termos operacionais e táticos, a guerra tem passado por várias fases. Numa fase inicial, tivemos uma guerra estruturalmente assimétrica. A 24 de fevereiro de 2022, a Rússia tinha uma vantagem média de 10 para um em termos de aviões de combate, de tanques, de artilharia ou meios navais. Isso, e acreditar na sua própria propaganda, levou a liderança russa a subestimar a resistência ucraniana. Moscovo pensou poder fazer uma operação especial e atingir os seus objetivos em poucos dias. Daí ter lançado forças aerotransportadas sobre um aeroporto perto de Kiev, tentando, aparentemente e ao mesmo tempo, usar forças especiais para eliminar Zelensky e decapitar a resistência organizada ucraniana. Foi esta arrogância que levou à multiplicação das linhas de avanço russo sem a necessária coordenação ou apoio logístico. Putin apostou também na cumplicidade dos responsáveis das Forças Armadas da Ucrânia a cuja rendição e cooperação apelou publicamente.
A expectativa do Kremlin era algo semelhante ao sucedido na Crimeia, em 2014, em Kabul, em 1979, ou em Praga, em 1968. A Ucrânia não preparou grandes linhas defensivas, trincheiras ou campos de minas, ou barreiras antitanque na fronteira. Mas foi muito eficaz em guerra urbana e numa guerra irregular com ataques surpresa e emboscadas às longas, pesadas e lentas colunas blindadas russas. Fê-lo graças à determinação e heroísmo dos ucranianos; também ajudou o treino e doutrina NATO, e o fornecimento in extremis de armamento portátil ocidental, como os mísseis antitanque Javelin, antiaéreos Stinger ou drones.
Falhado esse esforço nos primeiros meses, a Rússia decidiu focar-se nas regiões do leste e do sul, em particular no Donbas, procurando tirar partido da sua vantagem inicial em quantidade e alcance da artilharia. A Ucrânia apostou em reforçar as suas linhas defensivas por toda a linha da frente, mas também procurou, à medida que ia adquirindo artilharia ocidental mais precisa, mais poderosa e de maior alcance — os famosos HIMARS —, preparar eficazmente o terreno para desencadear contraofensivas bem sucedidas. Seja explorando a fraqueza das linhas defensivas russas e a desorganização do comando na zona de Kharkiv, seja estrangulando as vias de apoio logístico às forças russas na margem ocidental do Dniepre, em torno da cidade de Kherson.
Estas derrotas levaram a liderança russa a uma dupla escalada. Primeiro, por via da mobilização parcial de setembro de 2022. Segundo, pela aposta numa estratégia de guerra total contra a população civil ucraniana recorrendo a uma guerra aérea indiscriminada contra os principais centros urbanos e contra infraestruturas críticas com mísseis e drones iranianos, com vista a tentar quebrar a capacidade e, sobretudo, a vontade de resistência dos ucranianos. Essa estratégia não parece ter resultado — e a história do poder aéreo, desde o Blitz nazi contra os britânicos até aos bombardeamentos aliados contra a Alemanha nazi, não leva a crer que, por si só, tenha resultados decisivos.
Nas condições adversas do outono e do inverno, acabou por se consolidar uma fase da guerra predominantemente defensiva, uma guerra de trincheiras de que o precedente mais conhecido é a Primeira Guerra Mundial na Frente Ocidental, entre finais de 1914 e inícios de 1918. O resultado são batalhas que se arrastam durante meses. Foi assim com Verdun na Primeira Guerra Mundial. É assim com a batalha de Bakhamut, que se vem arrastando desde o verão de 2022, na presente guerra. Elas resultam em enormes baixas, sobretudo dos atacantes, mas também dos defensores, e avanços mínimos.
O que nenhum dos lados conseguiu, até ao momento, foi demonstrar uma consistente capacidade de concretizar com sucesso grandes operações ofensivas de armas combinadas e multidomínio. Ou seja, ruturas da frente depois exploradas e alargadas, combinando múltiplas unidades terrestres, aéreas e navais e outras capacidades para alcançar grandes avanços no terreno.
No caso da Rússia, esta guerra de movimento ofensiva só resultou na fase inicial da campanha, sobretudo no sul, onde a resistência ucraniana estava mais desorganizada e as forças russas tinham apoio logístico próximo na Crimeia. É estranho, dado o diferencial de meios e o facto de a Rússia ter anunciado sucessivos reforços de investimento na modernização e reforma das suas Forças Armadas. A explicação mais convincente deste mistério é o facto de o sistema militar russo ser muito negativamente condicionado pelo respetivo sistema político e social. Na Rússia temos um regime assente não só na corrupção mas também num grau crescente de lealdade cega e de compadrio. Ora, sem promover a iniciativa e o mérito, dificilmente se terá forças militares capazes de adaptação rápida e eficaz.
Essa dificuldade é natural no caso da Ucrânia, que tinha um equipamento militar muito insuficiente e envelhecido, em grande parte de origem soviético. A grande maioria dos países do Ocidente tinha-se limitado, até fevereiro de 2022, a treinar alguns oficiais ucranianos, para evitar provocar a Rússia ou perturbar esforços negociais, recusando-se a fornecer armamento ocidental avançado até ao momento da invasão. Apesar de tudo foi a Ucrânia quem — já dotada de algum equipamento ocidental — mais se aproximou de uma guerra de manobra ofensiva, nas operações que permitiram recuperar o território em torno de Kharkiv e Kherson. Mas eram regiões mal defendidas ou difíceis de defender. Veremos se nos próximos meses continuará a prevalecer uma guerra defensiva ou se passaremos a uma nova fase mais ofensiva de guerra de movimento para a qual os objetivos dos dois lados continuam a apontar.
Guerra com fim à vista?
É provável que a guerra continue e até se intensifique nos próximos meses. Porquê? Os dois lados continuam a ter objetivos mínimos que só podem ser alcançados pela via militar. A Rússia não está disposta a negociar os territórios que anexou formalmente, nem parece abdicar da redução da Ucrânia ao estatuto de satélite. Confia que, com o tempo, os EUA e outros aliados da Ucrânia se cansarão de a apoiar. A Ucrânia só está disposta a negociar no pressuposto de uma retirada russa de todo o seu território, inclusive a Crimeia, além de exigir indemnizações pelos danos causados e a punição de crimes de guerra. Pode ser que parte dessas exigências sejam maximalistas. É possível que novas ofensivas sejam mais difíceis, depois de os dois lados terem mobilizado mais tropas e terem multiplicado linhas defensivas, vulgo trincheiras. É provável que ambos os lados acabem por esgotar os seus meios e vontade de continuar a combater. Mas esse não parece ser o caso para já. Apelos vagos à paz, sem qualquer proposta concreta de como a atingir, ignoram esta realidade e não oferecem qualquer alternativa viável.
O que pode mudar e alterar de forma importante os dados da questão? Dois aspetos fundamentais. Primeiro, se um dos lados for capaz de aumentar significativamente a sua eficácia militar, nomeadamente em operações ofensivas, sempre as mais exigentes. Não sabemos até que ponto a Rússia terá aprendido a lição dos seus falhanços e terá a capacidade de uma mudança de fundo do seu modus operandi em função disso. Também não sabemos se a Ucrânia terá atingido o limite dos seus até aqui notáveis esforços de adaptação e se o novo armamento e munições ocidentais chegarão em quantidade e com rapidez suficientes para fazer uma diferença significativa no campo de batalha.
O segundo dado seria uma mudança no perfil ou nível de empenho das alianças dos dois lados. Uma guerra prolongada é essencialmente uma guerra de erosão, uma prova de resistência muito condicionada pela disponibilidade dos meios para continuar a guerra.
A coligação de aliados da Ucrânia representa mais de 50% da economia global, a Rússia representa 3%. Isto significa que a Ucrânia — apesar de ter visto a sua infraestrutura e economia serem deliberadamente visadas e destruídas — tem a vantagem de ter o apoio das economias mais ricas e mais avançadas do mundo.
Os países ocidentais são, no entanto, regidos por regimes democráticos pluralistas, em que existem verdadeiras eleições com a possibilidade de alternância no poder — temos várias, e importantes, nos próximos dois anos, em particular em 2024. O significa que os governos ocidentais são mais suscetíveis às pressões de uma opinião pública eventualmente cansada com os custos de uma guerra que se prolongue sem ganhos evidentes. As sociedades abertas e livres são também mais vulneráveis à desinformação russa.
Outra alteração fundamental seria a Rússia conseguir apoios militares significativos para além do Irão e da Coreia do Norte. Em particular, se a China decidir que não pode deixar Putin perder, e alterar a sua posição passando a apoiar a Rússia militarmente, tecnologicamente e economicamente de forma significativa e visível, isso alteraria significativamente o equilíbrio de forças.
A história mostra-nos que, por todas estas razões, é arriscado prever o desfecho de um conflito. Até porque o fim de uma guerra nunca é apenas uma decisão racional, mas também emocional. É muito difícil saber qual o verdadeiro limite dos meios e da vontade dos dois beligerantes. Os EUA fizeram muitas contas com os primeiros grandes computadores para calcular exatamente o limiar de resistência do Vietname do Norte aos ataques aéreos norte-americanos, mas todas esses cálculos saíram furados. Uma sondagem de final de novembro mostrava 95% dos ucranianos decididos a combater mesmo com contínuos bombardeamentos das suas cidades. O único centro de sondagens minimamente credível na Rússia mostra que a maioria dos russos diz apoiar o esforço de guerra, mas também que uma percentagem crescente desejaria a paz.
A história também nos mostra que uma paz formal e negociada não é a única saída possível para uma guerra. A Segunda Guerra Mundial não terminou com um tratado formal de paz mas com uma rendição incondicional que deixou muito por resolver entre Aliados cada vez mais desavindos. Um tratado de paz só surgiu, em 1975, com a Conferência de Helsínquia. A Guerra da Coreia terminou, de facto, em 1953, mas isso não levou a um acordo de paz nem a uma verdadeira pacificação da península coreana, mas sim a uma paz armada e tensa. Parece-me muito mais provável que haja um congelamento — temporário ou prolongado — do conflito do que uma paz negociada, dado o extremar de posições dos dois lados com o prolongar do conflito e o aumento do seu custo. Na melhor das hipóteses, teremos um cessar-fogo mais formalizado. Depois do que se passou, as relações da Rússia de Putin com a Europa e os EUA dificilmente voltarão a ser o que eram. Tudo isto tem implicações importantes na ordem global.
Uma guerra com forte impacto na ordem global
O que podemos concluir desde já relativamente ao impacto desta guerra em termos de grandes tendências na política global? Confirma-se que a transição de poder é um momento de alto risco e elevada probabilidade de conflito armado. Estamos a assistir ao fim da ordem estabelecida com o fim da Primeira Guerra Fria, em 1991, em que tínhamos uma única grande potência, os EUA, capaz de projetar poder a nível global em todas as dimensões relevantes — económica, militar, tecnológica e outras. Esse declínio relativo e o surgimento de novas grandes potências globais ou mesmo regionais estimula ambições de revisão, inclusive violenta, da ordem vigente. A Rússia é uma potência revisionista especialmente perigosa, porque sendo o maior país do mundo pela dimensão do seu território, controlando recursos importantes que lhe têm permitido disfarçar outras fragilidades da sua economia, foi claramente o grande perdedor do final da Guerra Fria, e parece apostada em reconquistar pela força militar uma esfera de influência que não consegue manter de outra forma. Recordo que a Organização do Tratado de Segurança Cooperativa — uma espécie de NATO de iniciativa russa, criada em 1992 — começou com nove Estados pós-soviéticos e já só tem seis.
Em segundo lugar, temos um acelerar da tendência para uma Segunda Guerra Fria. Claro que ela não será igual à anterior, pois nenhuma guerra o é. Mas temos novamente uma forte tendência para a fragmentação regional da ordem globalizada, com a formação de blocos securitários, económicos e ideológicos liderados por grandes potências nucleares com visões opostas do mundo.
A valorização da dimensão militar e de segurança favorece a emergência de blocos securitários. Depois da emergência sanitária do Covid-19, a invasão russa deixou claro que em muitos setores críticos — como a energia ou a tecnologia — é demasiado arriscado ficar excessivamente dependente apenas de um fornecedor, e pensar apenas no lucro. Isto não significa uma total desglobalização, que seria demasiado custosa, mas é já detetável um esforço de redução da excessiva dependência externa em setores críticos. Também é claro que nesta Segunda Guerra Fria a China e a Rússia trocarão os papéis que desempenharam na Primeira Guerra Fria (1945-1991). Desta feita, será Pequim a ter um papel dominante. Como resultado desta guerra, Moscovo ficou mais dependente da China em termos económicos e tecnológicos, como a única alternativa realista aos mercados e investidores do Ocidente.
Neste tipo de ordem internacional, apesar de grandes tensões, e muitos conflitos indiretos, a existência de vastos arsenais nucleares deve impedir a escalada para grandes guerras entre grandes potências. Isso implica disciplina estratégica das grandes potências e canais de comunicação para evitar o risco de escalada acidental ou descontrolada. Resta ainda perceber se esta Segunda Guerra Fria irá resultar numa ordem bipolar dominada pelos EUA e a China, em que haverá tentativas fracas e relativamente ineficazes de outros Estados para se manterem não-alinhados. Ou se iremos ter uma ordem multipolar — com várias grandes potências globais e regionais —, mesmo que algo assimétrica, com os EUA e a China a terem mais peso do que as demais potências.
Em terceiro lugar, como resultado da invasão russa da Ucrânia estamos a viver uma guerra de agressão e conquista imperial, uma guerra de resistência nacional e, sim, também uma guerra indireta ou por procuração (proxy). Isso não é nenhum segredo e também não é ilegítimo, ilegal, ou imprevisto. Nada na Carta das Nações Unidas impede um país soberano de procurar o armamento de que precisa para exercer o seu direito a defender-se. Nada impede, bem pelo contrário, um Estado soberano de ajudar outro na sua legítima defesa contra uma agressão externa. Mais, os EUA e outros países ocidentais avisaram a Rússia de que se invadisse a Ucrânia sofreria sanções sem precedentes e que iriam dar ao país invadido as armas para se defender. Este tipo de apoio aconteceu centenas de vezes durante a Guerra Fria de 1945-1991.
A existência de guerras indiretas é, aliás, uma das razões que explica outra tendência global que esta invasão confirma: frequentemente, desde 1945, as grandes potências não conseguiram vencer guerras assimétricas em que pareciam ter vitória garantida. Uma guerra indireta (ou por procuração) não significa, porém, que os combatentes locais sejam meras marionetas irrelevantes. Também não significa que seja legítimo, ou legal, ou expectável que daí resulte um alargamento ou uma escalada do conflito. Em termos de evolução dos conflitos armados, esta guerra confirma que numa Guerra Fria são expectáveis mais conflitos indiretos precisamente porque são uma forma de evitar uma grande guerra entre potências nucleares.
O que invasão russa também confirma é que a agressão armada — e, sobretudo, uma guerra de conquista que procura alterar pela força fronteiras internacionais — tende a gerar grandes coligações contra o país agressor. Na Segunda Guerra Mundial foi assim contra a Alemanha nazi. Na Guerra Fria foi assim contra a União Soviética. Hoje é assim contra a Rússia, que violou o memorando de Budapeste de 1994 que garantia as fronteiras da Ucrânia independente em troca das suas armas nucleares. É assim contra Putin, que depois de ocupar a Crimeia, em 2014, garantiu publicamente que não queria mais territórios ucranianos.
O conflito também mostrou a enorme vantagem de alianças formalizadas e fortemente institucionalizadas como a NATO para dissuadir potências agressivas. A Ucrânia não é mais vulnerável em termos geopolíticos do que os Países Bálticos, bem pelo contrário. Os Bálticos são países bem mais pequenos e menos populosos, e muito menos defensáveis que a Ucrânia. A conclusão de que não se pode confiar em nenhum compromisso com a Rússia revisionista de Putin, e que a melhor garantia de segurança é a pertença à NATO, tem levado a sucessivos alargamentos da Aliança Atlântica a leste, inclusive com o recente pedido de adesão da Finlândia e da Suécia, depois de décadas ou séculos de neutralidade. É um irritante para Putin, mas só tem de se culpar a si próprio.
Por fim, esta guerra confirmou a importância fundamental do diferencial de qualidade tecnológico, mas também ao nível organizacional e doutrinal, das forças militares ocidentais. Preservar esse diferencial, que tem caracterizado a forma ocidental de fazer a guerra durante séculos, será fundamental. Será também um grande desafio num período de inovação muito acelerada.
Em suma, a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin é uma guerra em curso. E, como todos os conflitos, é o reino da incerteza, não sendo possível garantir qual será o seu desfecho ou impacto definitivo. Mas podemos afirmar com segurança que o 24 fevereiro de 2022 será um marco em futuros livros de História da Europa e do Mundo pelo impacto que já teve na ordem regional e global. Podemos também ter a certeza de que estamos a viver num Mundo mais imprevisível e perigoso. Procurar uma paz a qualquer preço neste momento pode ser um desejo bem intencionado, mas ignora o risco de que daí possam resultar mais guerras de agressão no futuro.