O homem solitário sentou-se e fez um pedido inusitado. Queria um copo de água com sumo de limão. A espreitá-lo pelo vidro da cozinha, atento ao mínimo gesto, estava Ricardo Costa. O chef encarou a solicitação como se tivesse de preparar um soufflé de trufa.
Em contra-relógio, o sumo de limão foi espremido para a melhor louça da casa, uma molheira em porcelana de Limoges, da marca J.L Coquet; e a água colocada à parte, num copo Riedel.
Na altura, dia 25 de julho passado, ninguém da equipa sabia que estava ali um inspector da Michelin. “Desconfiava, mas não disse a ninguém da equipa. Não queria que eles estivessem a sofrer por antecipação”, contou-me Ricardo Costa, no dia seguinte, quando o visitei.
No final do jantar, o chef confirmaria as suspeitas. “Antes dele se ir embora, pedi para falarmos cinco minutos, para saber se estava tudo bem. Como faço com outros.” As dúvidas desapareceram: era “o português da Michelin”, o único inspetor português a trabalhar para o guia dos pneus.
Para o chef do The Yeatman, o restaurante do hotel de cinco estrelas de Vila Nova de Gaia, com duas estrelas Michelin, a limonada fora uma rasteira. “É mesmo como vemos nos filmes. Podia ter sido outra coisa, como ele pôr uma colher no chão e ver o que acontecia”, explicou.
A prova terá sido superada com êxito — “correu muito bem” — mas, no final, o homem comunicaria a Ricardo Costa uns quantos problemas “menores”, identificados e tratados de imediato com rigor científico.
Menos de 24 horas depois, perante o olhar militar de Ricardo Costa, o chef de sala comunicava as mudanças à equipa. No habitual briefing sobre o serviço dessa noite, Pedro Marques fez notar que — “na sequência de dificuldades sentidas ontem” —, o leitão teria de ter mais flor de sal; que era preciso trocar o talher de peixe pela colher de sobremesa, no prato do pregado; e que se iria afinar a textura da quinoa.
O resto era mais ou menos o costume: “Para hoje, temos 31 reservas, dois vegetarianos, duas pessoas que não comem carne e um aniversário de uma senhora”, concluiu.
Ricardo Costa, fisionomia de culturista, voz de Comandos, com fama de ser duro com a disciplina, manteve-se calado durante praticamente toda a reunião. Mas, no final, deixou claro que não afrouxaria na atenção aos detalhes.
Virando-se para um dos empregados da sala, atirou: “O seu pin do Relais & Châteaux está posto no lado contrário”. Fez-se um silêncio pesado, o rapaz confuso sobre o raspanete, olhando para o emblema da famosa associação francesa de hotéis de luxo, de que o The Yeatman faz parte . “Os seus colegas têm o pin do outro lado”.
Será desta?
A coincidência da minha reportagem com a visita do inspetor Michelin ao The Yeatman foi isso mesmo, uma coincidência.
O pretexto era a possibilidade, aventada com crescente insistência nos mentideros da gastronomia, de o restaurante da Fladgate (dona da Taylor’s e e do projeto World of Wine) vir a ser o primeiro a ter três estrelas Michelin, em Portugal.
A questão colocava-se com particular relevância, este ano, visto o próximo guia de restaurantes com estrela Michelin ser o primeiro em que Portugal aparecerá separado de Espanha.
Esta mudança tem sido vista como uma vitória sobre o vizinho todo-poderoso, — a emancipação culinária, por fim. Os chefs portugueses acreditam que o modelo permitirá dar maior destaque aos restaurantes portugueses e, eventualmente, mais estrelas.
Até agora, as galas de apresentação do Guia Michelin Espanha & Portugal têm sido em Espanha, à exceção da de 2019, ocorrida em Lisboa.
De resto, nos últimos anos, as hostes nacionais melindraram-se quase sempre com a organização, a cargo de Espanha, fosse pela desigualdade de critérios na avaliação dos restaurantes, fosse por um certo desprezo cultural na comunicação dos eventos.
Exemplo disso foi o facto de as jalecas dos chefs portugueses estrelados, usadas na cerimónia — uma espécie de troféu profissional —, em 2017, terem a inscrição em língua espanhola, “La Guia”. O incidente motivou notícias na imprensa portuguesa e críticas públicas de chefs como Henrique Sá Pessoa, que obrigariam a Michelin a penitenciar-se.
A 24 de Fevereiro de 2024, todavia, a cerimónia será organizada em Albufeira, por portugueses. O livrinho que lista as estrelas da restauração passará a chamar-se apenas Guia Michelin Portugal. Para muitos será uma oportunidade de repor o orgulho nacional, mas também para satisfazer uma aspiração antiga: atribuir três estrelas a um restaurante português.
A pontuação máxima simbolizaria uma espécie de ascensão de Portugal à primeira divisão dos fine dining europeus — e há quem aposte nisso. Mas é preciso que nos recordemos do seguinte. Todos os anos se vaticina que agora é que é. E todos os anos não é.
Os candidatos às três estrelas têm sido o Belcanto, de José Avillez, e o Ocean, de Hans Neuner. Este ano, o The Yeatman passou a fazer parte desse grupo exclusivo, de acordo com gente do sector próxima das lides da Michelin.
Questionado sobre isso, o chef Ricardo Costa foi cauteloso. “Estamos mais próximos da terceira estrela. Agora, não sei o que nos espera. O nosso trabalho é fazer sempre mais”, comentou, numa entrevista a meio da tarde, na esplanada do hotel, com a Ponte D. Luís I aos pés e a cidade do Porto do outro lado do rio Douro.
Apesar de menos badalado do que os seus congéneres de Lisboa e do Algarve, o The Yeatman sempre teve um perfil clássico e rigoroso, muito do agrado da Michelin. Acresce que os inspetores gostam de outsiders sólidos com uma tradição hoteleira. E esse é, manifestamente, o caso do The Yeatman.
Os protocolos e a casquinha de santola
Foi precisamente isso que comecei por sentir, nas dez horas que passei nos bastidores do restaurante, este Verão. O The Yeatman é um restaurante de hotel. De hotel de luxo. De grande hotel.
Num périplo guiado por Ricardo Costa, começámos por ir ao piso da lavandaria e do gabinete de comunicação; depois saltámos para a cozinha de produção, que fornece toda a gastronomia do hotel, incluindo os seus dois outros restaurantes, o Orangerie e o Dick’’s Bar & Bistro.
É aí que estão as salas de frio, pequenos quartos, cada um com a sua regulação de temperatura e humidade. Ricardo Costa entra no frigorífico do frio e saca um robalo grande. Nas prateleiras, veem-se também moreias e lírios. Ao lado, está a câmara das carnes e, mais à frente, a dos legumes.
Esta arrumação é um privilégio raro. Alguns Michelin, dar-se-iam por contentes de ter só metade de um destes frigoríficos.
De resto, os protocolos estão todos bem definidos, sem espaço para improvisos ou falhas. Ou antes, as falhas existem mas estão previstas.
Um exemplo disso aconteceu na secção de peixes e mariscos, um outro alvéolo envidraçado, logo em frente aos frigoríficos. O sous-chef João Deus, tinha em mãos a dura tarefa de catar a carne dos caranguejos, fossem santolas ou caranguejo-real do Alaska. “Aproveitamos tudo. Estes bichos custam 160€/kg”.
Apesar do cuidado posto na tarefa, horas depois encontraria a soucier Cristina Ferreira em apuros. Com os olhos esbugalhados, sobre uma tina com recheio do crustáceo, a jovem cozinheira tinha em mãos um trabalho delicado, como se tivesse a tirar espinhos de ouriço do pé de um bebé.
A sua incumbência era tratar do prato Santola ao Natural, servido numa louça em forma de um caranguejo. Ora, eis senão quando, da sua pinça elevou-se, por entre fiapos da carne marisqueira, uma casquinha foragida, mínima mas suficiente para acabar com quaisquer aspirações estelares, às mãos de um inspector.
Joalharia ou fábrica?
É deste tipo de pormenores que se faz uma cozinha Michelin. A pressão está defendida por regras. Cada um tem a sua função e Ricardo Costa só quer que cada um cumpra a sua. Sem atrasos. Sem desvios. Sem lamentos.
“Pressão é quando se faz um programa de televisão e toda a gente nos conhece. Isso é que é pressão. Aqui é uma pressão boa”, desdramatiza, antes de entrarmos na sala principal do restaurante, pela hora do almoço.
Na sala, a meio da tarde, o ambiente era, de facto, tranquilo. Uma das empregadas de sala engomava os panos branquíssimos que daí a pouco mais de três horas seriam delicadamente colocados nas mesas. Os candeeiros de parede, por sua vez, eram realinhados por um colega, tal como os centros de mesa.
Lá dentro, na cozinha, o ambiente estava um pouco mais tenso, mas longe do que se vê em reality shows da TV e nas séries da Netflix. Não se ouvia um diálogo, um grito.
Numa banca de inox — tudo é em inox —, um cozinheiro dedicava-se a calibrar o tamanho das chalotas. Uns metros à frente, outro tratava de cortar alperces em gomos milimetricamente iguais, como numa linha de montagem.
“Faço isto há um ano e meio”, disse o jovem dos alperces. Minutos depois, voltaria a encontrá-lo de volta dos frutos, desta vez, laminando-os para depois os moldar em bolas perfeitas. Não é cansativo fazer sempre o mesmo?, perguntei. Ele encolheu os ombros.
Sucede que a repetição garante eficácia e consistência. “Isto é como no futebol, fazem sempre as mesmas funções”, admitiria o chef Ricardo Costa, que garante ter a mesma equipa junta há dois anos, privilégio raro.
Fora dessas contas estão dois estagiários. A presença de estagiários mal pagos ou trabalhando de forma gratuita tem gerado polémica nas cozinhas de fine dining de todo o mundo. Os dois restaurantes mais influentes das últimas três décadas, o El Bullì e o Noma assumiram ter usado centenas deles, à borla, mas a prática é habitual também em Portugal.
No The Yeatman, cada um recebe uma bolsa de 300€, com alojamento incluído. Não é pouco? Costa argumenta: “O estágio abre-lhes portas”.
Um leitão Michelin
Os pratos mais elaborados cabem aos elementos mais experientes. Um deles é o leitão, que Costa assume ser a estrela da carta. Há cinco anos no menu, a técnica usada na confecção é inspirada na de dois bastiões da Bairrada: o Mugasa, de Ricardo Nogueira, em Sangalhos, e o Vidal, em Aguada de Cima, Águeda.
Em vez de assarem e depois cozerem os bichos inteiros — como é de regra —, faz-se ao contrário: coze-se e depois é que se sobe a temperatura para tostar.
No The Yeatman, os leitões, traçados de bísaro, são cozinhados abertos, como no frango de churrasco e é usada tecnologia de ponta, nomeadamente na pré-cozedura a vapor. Três horas antes do primeiro serviço, eles ainda estavam a ser dispostos em tabuleiros, mas parecia tudo controlado.
Ao contrário do que sucede com muitos chefs Michelin, Ricardo Costa está presente no restaurante diariamente. Para além de assegurar que o leitão chega crocante à mesa, uma das suas competências culinárias mais notáveis é a prova de molhos e purés, que aconteceu já no final do dia.
Alinhados na bancada da cozinha, o chef pegou neles e despachou-os, levando cada um à boca, como numa bateria de provas, avaliando o sabor e a textura. “Estão bem”, concluiu.
Faltava ainda o briefing final, em que Pedro Marques, o chef de sala, sublinhou os últimos pormenores e definiu quem ia servir quem (“hoje temos entre nós um jornalista, o João fica com essa mesa”) e que vinhos fariam parte do menu.
No paring The Yeatman Selection (125€) entraram, nessa noite, garrafas como o Quinta do Monte D’Oiro Reserva Tinto 2019 ou o Quinta de Lemos Jaen Tinto 2008 ou o Porto Croft Vintage de 1991.
A segunda rasteira e a quinoa perfeita
Às 19h20, sentei-me a comer, por fim, e cumpri o mesmo ritual por que passara o inspetor da Michelin, na véspera. A refeição começou no bar, com os amuse bouches, uma vista privilegiada para o rio e um copo de espumante.
Ultrapassado o carabineiro com pele de frango e alga nori, passei então para a sala principal, ao lado.
O jantar seria servido a um ritmo perfeito, como se estivesse alguém na cozinha a cronometrar os tempos entre cada prato. Mas também eu tinha uma armadilha preparada. A dada altura, deixei cair na mesa uma gota do molho dashi que acompanhava a gamba.
A sommelier aproximou-se então para servir o próximo vinho. Explicou processos e fermentações, sempre sem se fixar na bola que manchava o tampo de carvalho. Fiquei com a ideia de que não tinha dado conta, mas mal deixou a mesa, peguei no telemóvel e comecei a cronometrar.
Em passo estugado, ela afastou-se perigosamente, encaminhando-se para a mesa de apoio, no extremo oposto. Nesta altura, pensei: “Prova falhada”. Daí, todavia, ela regressou com um pano, discretamente. Sem nunca dizer nada, chegou à mesa e passou-o sobre a mancha, qual mata borrão. Em 27 segundos, o problema estava resolvido.
Quanto aos reparos feitos pelo inspector Michelin aos pratos, um mantinha-se: o excesso de nitrogénio, uma técnica usada para gelar certos elementos do prato, que continuava abundante no menu.
Mas outra crítica havia dado excelentes resultados: a quinoa que acompanhava a gamba do Algarve, considerada rija pelo inspector, estava agora maravilhosa, leve e crocante, das melhores dentadas da noite.
Duas horas e dez minutos depois, acabava de beber o Porto Croft Vintage 1991, e dava a refeição por terminada. Se foi bom? Foi, sim. Se vale 375€? É uma discussão eterna. Se chega para receber a terceira estrela? Só o saberemos no dia 27 de fevereiro do ano que vem.