Discurso do Papa na íntegra
Queridos jovens, boa tarde! Bem-vindos e obrigado por estardes aqui. Fico feliz por vos ver e por escutar o simpático barulho que fazeis, contagiando-me com a vossa alegria. É bom estarmos juntos em Lisboa: para aqui fostes chamados por mim, pelo Patriarca, a quem agradeço as suas palavras, pelos vossos bispos, sacerdotes, catequistas e animadores. Vamos agradecer a todos, os que vos chamaram e todos os que trabalharam para possibilitar esta reunião, e fazemo-los com uma grande salva de palmas! Mas foi sobretudo Jesus quem vos chamou: agradeçamos-Lhe, a Jesus, com o nosso forte aplauso!
Sabia-se que seria o primeiro grande banho de multidão do Papa Francisco. Cerca de 500 mil pessoas reuniram-se no Parque Eduardo VII para participar na cerimónia de abertura da JMJ de Lisboa e para ouvir o primeiro grande discurso do Papa Francisco perante uma multidão na capital portuguesa. Depois de uma cerimónia com música e dança, o Papa Francisco aproveitou a multidão de jovens animados e arrancou-lhes logo vários aplausos: a quem organizou a JMJ e, sobretudo, a Jesus. Foi sempre correspondido no apelo e deixou de imediato o tom para o discurso: esta não seria uma homilia densa e críptica (como aquelas que o próprio critica duramente na exortação apostólica Evangelii Gaudium), mas uma grande interpelação aos jovens de hoje com uma mensagem em continuidade com os outros discursos do Papa à juventude, não só nesta JMJ, mas noutras ocasiões: façam barulho, desinstalem-se e sejam os protagonistas; não sejam personagens secundárias que se limitam a assistir a uma Igreja centrada no clero.
Vós não estais aqui por acaso. O Senhor chamou-vos, não só nestes dias, mas desde o início das vossas vidas. Chamou-nos a todos desde o início das nossas vidas. Ele chamou-vos pelo nome. Escutamos na Palavra de Deus, chamados pelo nome: tentai imaginar estas palavras escritas em letras grandes e, em seguida, pensai que estão escritas dentro de cada um de vós, nos vossos corações, como que formando o título da vossa vida, o sentido do que sois: foste chamado pelo teu nome — tu, tu, tu, nós, todos nós —, todos fomos chamados pelo nome, não fomos chamados automaticamente, fomos chamado pelo nome. Pensemos nisto: Jesus chamou-me pelo meu nome. São palavras escritas no coração. E depois pensemos que estão escritas dentro de cada um de nós, nos nossos corações, e formam uma espécie de título da tua vida, o sentido do que somos. Foste chamado pelo teu nome.
O discurso de Francisco foi profundamente marcado pelas muitas repetições de palavras-chave. O Papa centrou-se numa ideia vital para a Igreja: a de que cada pessoa é única e insubstituível e que ninguém se deve deixar engolir por designações coletivas. Nem mesmo a “juventude” — não existe uma “juventude”, diz o Papa, mas cada um dos jovens. A partir desta ideia central — Deus chamou cada um pelo seu respetivo nome —, o Papa densificou a ideia de protagonismo que cada um é chamado a ter na sua vida. Cada pessoa é chamada por Deus a uma missão e é chamada a ser protagonista da sua vida — e não um figurante ou uma personagem secundária sem nome. Repetindo várias vezes “tu, tu, tu” e apontando para a multidão, o Papa reiterou uma mensagem vital do cristianismo — que, mais do uma ideia coletiva ou de um grupo de crentes, se centra numa relação pessoal de cada um com Jesus Cristo. A partir deste momento, talvez por perceber a adesão dos jovens a esta ideia, por falta de tempo ou por mera vontade de improviso, o Papa Francisco começou a fugir do texto preparado e a insistir na ideia de que cada um tem valor supremo perante Deus.
Nenhum de nós é cristão por acaso. Todos fomos chamados pelo nosso nome. Ao princípio da teia da vida, ainda antes dos talentos que possuímos, das sombras e feridas que carregamos dentro de nós, recebemos um chamamento. Chamados, porque amados. Fomos chamados porque somos amados. Aos olhos de Deus somos filhos preciosos, que Ele cada dia chama para abraçar e encorajar; para fazer de cada um de nós uma obra-prima única e original — cada um de nós é único e original, e a beleza não a conseguimos vislumbrar.
Numa mensagem em linha com o que têm sido os discursos e textos do Papa sobre a juventude, o Papa Francisco insistiu que cada jovem é “único e original”, chamado à sua missão desde ainda antes de nascer. Na mensagem deixada aos jovens em Lisboa, ecoavam palavras de uma exortação apostólica de 2018, em que o Papa já tinha procurado “animar cada um a dar o melhor de si mesmo para crescer rumo àquele projeto, único e irrepetível, que Deus quis, desde toda a eternidade, para ele”. Perante uma geração a que o Papa tem vindo a diagnosticar o risco da perda da esperança num futuro melhor para o mundo, desalentada pela aparente inevitabilidade do caminho rumo ao abismo marcada pela incerteza e pela pergunta fatal — que diferença fará o meu contributo? —, Francisco quis reanimar a esperança dos jovens, não enquanto grupo coletivo, mas a partir de cada um deles: cada pessoa, única, original e irrepetível, tem o potencial de ser protagonista da sua vida e do mundo em mudança.
Queridos jovens, nesta Jornada Mundial da Juventude, ajudemo-nos uns aos outros a reconhecer esta realidade: sejam estes dias ecos vibrantes dessa chamada amorosa de Deus, porque somos preciosos a seus olhos, apesar do que às vezes os nossos olhos veem, enevoados pela negatividade e ofuscados por tantas distrações. Sejam dias em que o meu nome, o teu nome, através de irmãos e irmãs de muitas línguas e nações — vemos tantas bandeiras — que o pronunciam com amizade, ressoe como uma notícia única na história, porque único é o pulsar do coração de Deus por ti. Sejam dias para fixar no coração que somos amados tal como somos. Não como queríamos ser, como somos agora. Este é o ponto de partida da JMJ, mas sobretudo da vida. Rapazes e raparigas, somos amados como somos! Sem maquilhagem. Entendem isto?
Na prática, este foi o discurso inaugural da JMJ por parte de Francisco — e o Papa não deixou de fora uma interpelação a que os jovens aproveitem esta semana em Lisboa. A Jornada Mundial da Juventude não acontece apenas no Parque Eduardo VII ou no Parque Tejo-Trancão, mas também — e talvez especialmente — em cada grupo de jovens, em cada encontro, em cada almoço e jantar, em cada experiência, em cada conversa, em cada nova amizade criada. Todo esse programa, defende o Papa, deve contribuir para que os jovens sintam que não são apenas mais um num grande grupo, mas são únicos e originais — e têm lugar na Igreja como são, sem terem de se mascarar do que não são para terem um lugar na Igreja.
E somos chamados pelo nome de cada um de nós: não é um simples modo de dizer, é Palavra de Deus. Amigo, amiga, se Deus te chama pelo teu nome significa que, para Deus, nenhum de nós é um número; é um rosto, é uma cara, é um coração. Quero que cada um veja uma coisa: muitos, hoje, sabem o teu nome, mas não te chamam pelo nome. Com efeito, o teu nome é conhecido, aparece nas redes sociais, é processado por algoritmos que lhe associam gostos e preferências. Mas tudo isso não interpela a tua singularidade, mas a tua utilidade para pesquisas de mercado. Quantos lobos se escondem por trás de sorrisos de falsa bondade, dizendo que conhecem quem és, mas sem te querer bem, insinuando que creem em ti e prometendo que serás alguém, para depois te deixarem sozinho, quando já não lhes fores útil. São as ilusões do mundo virtual e devemos estar atentos para não nos deixarmos enganar, porque muitas realidades que nos atraem e prometem felicidade mostram-se depois pelo que são: coisas vãs, supérfluas, substitutos que deixam o vazio interior. Digo-vos isto: Jesus não é assim! Ele tem confiança em ti, em cada um de nós, porque para Jesus, cada um de nós conta. Esse é Jesus.
Os alertas para os perigos do mundo virtual têm sido tema frequente nas intervenções desta JMJ. Manuel Clemente falou deles na missa inaugural e o próprio Papa Francisco já tinha pedido, na manhã desta quinta-feira, na Universidade Católica, uma atenção redobrada àquilo a que chamamos “progresso”. Desta vez, o Papa alertou para as ilusões que decorrem da falsa ideia de que, no mundo virtual, todos se conhecem bem — e que acarretam o risco de afastar os jovens das relações interpessoais. A mensagem terá passado bem para os jovens presentes no Parque Eduardo VII, como foi possível perceber, durante a emissão da Rádio Observador, a partir do testemunho de um grupo de jovens de 15 anos que, com arrojo hermenêutico, ilustraram o discurso do Papa salientando que Jesus não é como as “influencers do Instagram”, que falam “para cada uma de vocês” fingindo que conhecem os seus seguidores. Não é isso o “chamar pelo nome” que a Igreja Católica propõe, sustenta o Papa Francisco; antes, uma relação pessoal sincera que valoriza o potencial de cada um.
Por isso, nós, a sua Igreja, somos a comunidade dos chamados. Não somos a comunidade dos melhores – somos todos pecadores. Mas somos chamados como somos. Pensemos um pouco nisto nos nossos corações. Somos chamados como somos. Com os problemas que temos, com as limitações que temos, com a nossa alegria transbordante, com vontade de ser melhores, com vontade de triunfar. Somos chamados como somos. Pensem nisto: Jesus chama-me como sou, não como queria ser. Somos a comunidade dos irmãos e irmãs de Jesus. Filhos e filhas do mesmo Pai.
Trata-se de uma mensagem fundamental, a que o Papa Francisco tem dado especial atenção: os cristãos não são um grupo de gente perfeita que obtém, pela fé, o direito a julgar os outros. “Não somos a comunidade dos melhores”, garante, sublinhando que não depende de cada um ter fé — a própria fé em Deus é dada por Deus. “Somos chamados como somos”, sintetiza. Noutros momentos do seu pontificado, de modo notável na exortação Christus Vivit, Francisco já tinha pedido aos jovens católicos que não se agrupassem em minorias seletas fechadas ao mundo. Agora, garante a todos: ninguém é perfeito e não há ninguém que não tenha lugar na Igreja.
Amigos, quero ser claro convosco, que sois alérgicos às falsidades e a palavras vazias: na Igreja há espaço para todos. Para todos. Na Igreja, ninguém fica de fora, ninguém está a mais. Há espaço para todos. Assim como somos. Todos. Isto di-lo Jesus claramente quando manda os apóstolos a chamar para o banquete do senhor que o tinha preparado — vão e tragam todos. Jovens e velhos, saudáveis e doentes, justos e pecadores. Todos, todos, todos. Na Igreja há lugar para todos. Mas padre, sou um desgraçado, uma desgraçada, há lugar para mim? Há lugar para todos. Todos juntos, cada um na sua língua, repitam comigo: todos, todos, todos. Não se ouve! Outra vez. Todos, todos, todos. Esta é a Igreja. A mãe de todos. Há lugar para todos.
As “falsidades e palavras vazias” a que o Papa se refere são as dos padres, bispos e outros elementos da Igreja que perpetuam a ideia de uma instituição de perfeitos a que só os perfeitos podem aderir. E é com essa referência que o Papa abre o parágrafo fundamental do seu discurso: a ideia de que a Igreja tem lugar para todos. Francisco não admite exceções. Antes, vinca várias vezes: “Todos, todos, todos.” E pede aos jovens que repitam com ele. O Papa Francisco não ignora que na Igreja Católica ainda subsistem grupos ultraconservadores que advogam o oposto: que a Igreja não tem lugar para quem é diferente. Nesta mesma JMJ, alguns episódios mostram-no, como o de um conjunto de peregrinos que confrontaram uma jovem que ergueu a bandeira trans ou o grupo fanático que invadiu uma igreja onde decorria um evento de uma associação de católicos LGBT. Fugindo ao texto preparado, o Papa citou o episódio do evangelho de São Lucas em que um senhor pede ao servo que chame todos para o seu banquete. O recado será para quem, na Igreja, quiser ouvir o Papa: na Igreja que Francisco está a construir, as portas estão abertas a todos.
O Senhor não aponta o dedo, mas alarga os braços. É curioso. O Senhor não sabe fazer isto. Abraça-nos todos. Assim no-Lo mostra Jesus na cruz, que tanto abriu os seus braços para ser crucificado e morrer por nós. Não fecha a porta, mas convida a entrar. Jesus recebe, Jesus acolhe. Nestes dias transmitamos a sua mensagem de amor: Deus ama-te, Deus chama-te. Que lindo é isto. Deus ama-me, chama-me. Tens de te aproximar dele.
O Papa volta, na fase final do discurso, ao tema da abertura: o chamamento de cada um pelo seu nome. E diz ainda que Jesus nunca aponta o dedo a ninguém, apenas abraça — deixando implícito que, quando a Igreja aponta o dedo a alguém, não o faz em nome de Jesus.
Nesta tarde, vós também me fizestes perguntas, muitas perguntas. Nunca se cansem de perguntar. Não se cansem de perguntar. E perguntar é bom; aliás, muitas vezes é melhor que dar respostas, pois quem pergunta permanece ‘inquieto’ e a inquietude é o melhor remédio contra a habituação, aquela normalidade que anestesia a alma. Cada um de nós tem as suas interrogações dentro. Vemos essas interrogações connosco, no diálogo comum entre nós outros. Sabemo-lo quando rezamos perante Deus. Essas perguntas que, com a vida, vão tendo resposta. Somente temos de as esperar.
Referindo-se à sessão de perguntas e respostas que teve esta quinta-feira em Cascais, o Papa Francisco elogiou a inquietação dos jovens que os leva a querer fazer perguntas e a exigir respostas. O Papa sublinha a importância da própria vontade de querer fazer perguntas, que vale, muitas vezes, mais do que as respostas.
Deus ama por surpresa. Não está programado. O amor de Deus é surpresa. Surpreende sempre. Mantém-nos alerta e surpreende-nos. Queridos rapazes e raparigas, convido-vos a pensar isto, tão belo. Deus ama-nos como somos, não como a sociedade gostaria que fôssemos. Como somos. Ama-nos com os nossos defeitos, com as limitações que temos e com a vontade que temos de seguir em frente na vida. Deus chama-nos assim. Confiem, porque Deus é pai, que nos ama. Isto não é muito fácil e, para isso, temos a grande ajuda da mãe do Senhor. Ela é nossa mãe. Era isto que vos queria dizer: não tenham medo, tenham coragem. Sigam em frente, sabemos que estamos seguros pelo amor que Deus nos tem. Deus ama-nos. Digamo-lo juntos, todos. Deus ama-nos! Mais forte, que não ouço. Obrigado, adeus!
Novamente apelando aos jovens que repetissem as suas palavras, o Papa Francisco terminou como começou: com um pedido para que cada um se sentisse chamado pelo seu nome, sem medo de ser afastado pelos defeitos e problemas. E também uma mensagem de ânimo: Deus — e, por isso, também a Igreja — ama cada um como ele é, e não como a sociedade gostaria que fosse, mesmo que a sociedade fale, aparentemente, mais alto.