Um terço dos ventiladores mecânicos invasivos que a Administração Central do Sistema de Saúde comprou entre março de 2020 e o mesmo mês de 2021 para reforçar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) na resposta à pandemia de Covid-19 nunca chegaram aos hospitais. Esta é uma das conclusões da auditoria do Tribunal de Contas ao processo de reforço nas unidades de cuidados intensivos (UCI) dos hospitais públicos, cujo relatório foi publicado esta sexta-feira.
Quatro dos 12 contratos de compra adjudicados nesse período de tempo, equivalentes a 245 ventiladores, foram resolvidos por incumprimento de prazos de entrega. Outros 145 ventiladores foram recebidos, mas nunca chegaram a ser utilizados nos hospitais por “motivos técnicos”.
Assim, dos 1.211 ventiladores que a administração encomendou no período mais crítico da pandemia para os hospitais portugueses, só 824 das encomendas da ACSS vieram efetivamente a reforçar o SNS — 32% do número inicialmente previsto. A ele juntam-se os 345 ventiladores comprados por 7,5 milhões de euros diretamente pelos hospitais, elevando o número a 1.169.
Dos ventiladores adquiridos pelas unidades hospitalares, apenas 148 deles foram adquiridos ao abrigo do programa vertical de financiamento centralizado, que no total financiou com 35,7 milhões de euros (contando já com despesas relativas a contratos resolvido e perdas cambiais) a compra de 1.114 ventiladores.
À conta disso, 30% do valor total adjudicado pela ACSS (34,9 milhões de euros) ficou perdido. Mais de 5,3 milhões de euros referentes a contratos em que houve lugar a pagamentos antecipados ainda não foram repostos. Outros 5,2 milhões de euros foram perdidos à conta de problemas técnicos sem solução identificados em equipamentos adquiridos. Posto isto, aos quase 141 mil euros de perdas incorridas, juntam-se perto de 10,5 milhões de euros de perdas potenciais.
As aquisições efetivas representaram um encargo total de 26,8 milhões de euros, coberto pelo Programa de Financiamento Centralizado, a que se somam 3,2 milhões de euros de despesas de transporte, logísticas e com despachantes.
No fim de contas, o preço médio de cada um dos ventiladores recebidos pela ACSS — 966, contando com os que tinham defeitos técnicos e não foram utilizados —, era de 27.739,94 euros. Mas considerando apenas os ventiladores encomendadas pela administração que vieram efetivamente a reforçar o SNS, e o bolo de pagamentos e perdas económicas, esse valor aumentou para 43.059,20 por cada aparelho.
Este valor representa uma subida de 55%, mas o Tribunal de Contas concluiu que compensou. A 31 de janeiro de 2021, a meio do período mais crítico da batalha nos hospitais contra a Covid-19, a ocupação nos cuidados intensivos era quase o dobro da estimada pela ACSS em março de 2020. Mas, graças ao reforço concretizado no SNS, ficava “significativamente abaixo” da capacidade disponível de equipamentos de ventilação mecânica invasiva. O relatório estabelece assim que houve “eficácia” processo desenvolvido pela ACSS e pelas unidades hospitalares, com o apoio da Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva para a Covid-19 (CARNMI).
Mas há um problema. O Tribunal de Contas detetou uma sobrevalorização de 11,5 milhões de euros dos rendimentos reconhecidos pelas unidades hospitalares do SNS relativas ao financiamento dos ventiladores mecânicos invasivos adquiridos no âmbito do Programa Vertical. Esses rendimentos foram recebidos como tendo sido obtidos por prestação de serviços, em vez de terem sido integrados no património líquido, a título de transferências e subsídios para a aquisição de ativos depreciáveis.
15% dos ventiladores que reforçaram SNS vieram de doações
No total, entre compras, doações, empréstimos e recuperações — umas motivadas pela ACSS, outras pelos hospitais —, houve um reforço final de 1.525 ventiladores invasivos nos hospitais do SNS entre março de 2020 e março de 2021. É um acréscimo de 133,5% face à capacidade instalada que a ACSS calculou existir no início da pandemia em Portugal, com base em dados disponíveis centralmente e dos hospitais públicos. E ultrapassou o objetivo de duplicar a resposta inicial.
O maior reforço, em números absolutos, verificou-se no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, onde a capacidade instalada subiu de 145 ventiladores desde 16 de março de 2020 para 248 a 31 de março de 2021 (mais 141%). Mas, em percentagem, o maior aumento é o do Hospital do Espírito Santo de Évora, que, no mesmo intervalo de tempo, viu a capacidade de resposta subir 456%, de apenas nove ventiladores para 50 — ou seja, mais 41 equipamentos.
Mas só quase 77% (1.169) dos ventiladores que reforçaram os hospitais foram comprados. Uma parte, cerca de 12,6% dos 1.525 ventiladores invasivos (192), foi doada; perto de 9,8% (149) resultou da recuperação de equipamentos; e 15 dos equipamentos (menos de 1%) são empréstimos. O reforço iniciado em março de 2020 acabou, um ano mais tarde, por superar o o objetivo que o Governo tinha estabelecido nesta matéria: duplicar a capacidade de resposta com ventiladores.
Mas “é de salientar o papel relevante das doações no reforço concretizado“, escreveu o Tribunal de Contas no relatório da auditoria. É que, além dos ventiladores mecânicos invasivos diretamente oferecidos, as autoridades de saúde receberam 705.431,30 euros de doações em numerário, que acabaram por financiar a aquisição de mais 41 destes equipamentos. Juntos 15% dos ventiladores colocados à disposição das UCI para enfrentar a crise pandémica foram obtidos por meio de doações.
O hospital que mais doações de ventiladores recebeu no período de tempo analisado foi o Centro Hospitalar Universitário de São João — 50 equipamentos, quase metade dos 107 que reforçaram a capacidade de resposta do hospital. Essa capacidade aumentou assim para 180 ventiladores no último dia em análise, significando um aumento de 147% em relação aos 73 ventiladores que havia a 16 de março. Mas o maior número de ventiladores comprados (105), recebidos por empréstimo (quatro) e recuperados (31) verificou-se precisamente em Coimbra.
Os meses de junho de 2020, julho do mesmo ano e janeiro de 2021 foram aqueles em que mais ventiladores entraram no SNS — 314 no primeiro período, 307 no segundo e 221 no terceiro. A maioria dos equipamentos que chegaram aos hospitais nesses meses vinha das compras das autoridades de saúde e dos hospitais: 290 em junho de 2020, 288 em julho de 2020 e 219 em janeiro de 2021.
Não foi sempre assim: em março, logo no início da pandemia, a maioria dos ventiladores que reforçaram as UCI dos hospitais eram equipamentos recuperados. Eram 60, aos quais se juntavam 12 doações, 11 compras e dois empréstimo — totalizando 85. No mês seguinte, em abril, o número total de reforços foi de 186, mas a maioria (77) foram doações. Houve ainda 63 recuperações, 35 compras e 11 empréstimos.
Como recorda o Tribunal de Contas, em março de 2020 o Ministério da Saúde “não dispunha de informação clara e sistematizada sobre a capacidade instalada de ventiladores invasivos no SNS ou no sistema de saúde”. O levantamento veio a confirmar que os hospitais do SNS dispunham inicialmente de 1.142 ventiladores mecânicos invasivos passíveis de serem utilizados na resposta à pandemia Destes, 528 constituíam a capacidade base em UCI, enquanto os restantes 614 seriam utilizados em situações de pico pandémico — 480 relativos a capacidade existente em blocos operatório e 134 resultantes da capacidade de incremento de camas nos cuidados intensivos de adultos.
Tribunal critica qualidade dos dados em portais do Governo e deixa 7 recomendações
A informação sobre os ventiladores mecânicos invasivos adquiridos para reforçar o SNS que consta Portal BASE — que centraliza a informação sobre os contratos públicos — e no Portal de Dados Abertos da Administração Pública (dados.gov.pt) “não é completa, não se encontra uniformizada quanto aos códigos CPV utilizados para classificar os bens e não evidencia situações de resolução de contratos ou modificações contratuais”, consta no mesmo relatório. Falhas que colocam em causa os princípios da publicidade e transparência da contratação, defende o TdC.
Estes problemas motivaram uma recomendação do Tribunal de Contas ao conselho diretivo do Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), atualmente presidido por Fernando Batista, que entrou em funções em maio do ano passado: deve “promover a completude, correção e coerência da informação” naqueles portais, “por forma a não colocar em causa os princípios da publicidade e transparência da contratação pública“. Todos os procedimentos seguidos à luz do regime excecional de ajuste direto simplificado no âmbito da pandemia deve ficar “visível para a generalidade dos utilizadores”.
Outro seis conselhos foram deixados ao conselho diretivo da ACSS:
- A informação relativa à capacidade instalada de ventiladores invasivos no SNS — e no sistema de saúde como um todo — deve estar sempre “sistematizada e atualidade”.
- Os grupos de trabalho constituídos para gerir situações de contingência devem manter um registo das suas atividades e documentar todos os processos de decisão relativos “à definição de objetivos e à gestão da alocação dos bens adquiridos. Assim garante-se “a transparência e rastreabilidade do processo”.
- Deve ser criado um cadastro centralizado de todos os reforços realizados, sempre que a resposta do SNS tenha de ser adaptada a uma situação de emergência.
- É necessário insistir para repor os pagamentos de contratos que não foram cumpridos.
- Deve também continuar-se o esforço para recuperar o dinheiro investido dos 142 ventiladores que não puderam ser utilizados por motivos técnicos — ou então, insistir na reparação dessas situações.
- A contabilidade de todas as entidades do Ministério da Saúde devem obedecer às normas de contabilidade pública, tal como constam no Sistema de Normalização Contabilística para as Administrações Públicas.