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O mar de gente desagua no Hotel Goris, o primeiro hotel para quem chega àquela cidade arménia vindo de Stepanakert, pela única estrada que liga o enclave de Nagorno-Karabakh, no Azerbaijão, à Arménia.
Vão chegando às dezenas, em números que atingem os milhares. Esta terça-feira, o correspondente do Politico no local descrevia assim a situação dentro daquele hotel: “No átrio de entrada, crianças agarram sacos de plástico cheios de snacks, enquanto os mais velhos rodeiam um homem que retira caixas de medicamentos, uma a uma, de uma caixa, chamando pessoas pelos nomes e distribuindo os comprimidos. Numa sofá a um canto, um casal idoso de surdos fazem sinais um ao outro, enquanto lá fora meia dezena de camionetas de caixa aberta vão roncando, com os passageiros na parte de trás a abrigarem-se da chuva debaixo de uma lona de plástico.”
Eram os primeiros exilados que chegavam de Nagorno-Karabakh, depois de um cessar-fogo e princípio de acordo político entre Arménia e Azerbaijão que pôs fim a um conflito de décadas e dá aos azeris controlo total sobre a região. Mas muitos mais chegariam nos dias seguintes. Na manhã desta quinta-feira, mais de 66 mil já tinham chegado à Arménia, segundo as autoridades do país. O que significa que mais de metade dos habitantes de origem arménia de Nagorno-Karabakh (cerca de 120 mil) decidiram pegar nos seus pertences, deixar as suas casas e partir.
Para os que ainda lá ficaram, a situação é dramática. “Não há ovos, não há açúcar, não há doces, o pão está a ser racionado. Levantei-me às 4h da manhã no outro dia para ir para uma fila”, relata uma mãe ao filho Hayk, de 18 anos, num telefonema testemunhado pela BBC em Goris.
O êxodo de uma população em pânico que não quer viver no Azerbaijão
Os que partem fogem por causa da fome, mas não só. “O nosso povo não quer viver no Azerbaijão”, avisava no domingo passado David Babayan, conselheiro do presidente do governo de influência arménia na região, à agência Reuters. “99,9% preferem abandonar as terras que são historicamente nossas.”
Mathieu Droin, especialista na Eurásia do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS) diz que não é um exagero: “A Artsakh, como a Arménia chama à região de Nagorno-Karabakh, tem um valor simbólico muito grande para os habitantes etnicamente arménios. Todos os testemunhos que oiço é de que nenhum arménio consegue imaginar viver debaixo do jugo do Azerbaijão”, afirma ao Observador.
A auto-estrada que liga Stepanakert a Goris está, neste momento, entupida. Carrinhas de caixa aberta, camionetas e carros cheios de famílias acumulam-se nas bombas de combustível e tentam atravessar a fronteira.
“Estamos a assistir a um êxodo de milhares de pessoas a abandonarem as suas casas e as suas vidas”, relata ao Observador Zara Amatuni, responsável da Cruz Vermelha Internacional que está no local a coordenar a resposta humanitária. “Aqueles que ficam estão a necessitar de mantimentos básicos como comida, medicamentos e outro tipo de bens essenciais. Há falta de apoio médico, os hospitais estão cheios e o pessoal médico está assoberbado. As comunicações falham e as pessoas não conseguem contactar os familiares.”
A Cruz Vermelha está em contacto com as autoridades do Azerbaijão para fazer chegar ajuda à população que ainda está em Nagorno-Karabakh, mas numa situação politicamente tão fluida — os governos de Yerevan e Baku ainda estão a negociar o futuro da região — ainda não há forma de assegurar o necessário para todos. “No último sábado conseguimos fazer chegar lá 70 toneladas de farinha e óleo, só para que seja possível fazer pão”, resume Zara.
A situação agravou-se ainda mais com a explosão de um depósito de combustível no enclave esta segunda-feira, que matou pelo menos 20 pessoas e feriu mais de 300. Os primeiros sinais são de que tudo não terá passado de um acidente “provocado por negligência”, segundo as autoridades arménias da região, mas é mais uma desgraça a somar-se à tragédia geral. Com os hospitais assoberbados, sobrou apenas a ajuda da Cruz Vermelha, que retirou 120 feridos graves de Nagorno-Karabakh num só dia. “A grande maioria tinha queimaduras”, aponta Zara Amatuni.
A falta de condições e o sentimento nacionalista são alguns dos fatores que provocam esta vaga de refugiados, mas não são os únicos: muitos dos que fogem têm medo de possíveis represálias por parte das autoridades azeris se ficarem no enclave, agora que este é controlado pelo Azerbaijão. O historial de violência do conflito, os ódios antigos e o espectro do genocídio arménio de 1915 fazem muitos temer uma limpeza étnica.
Baku garante que não há razões para os arménios de Nagorno-Karabakh terem medo e também assegura que não está a forçar a população a sair: “Este é um movimento livre da população, eles têm escolha”, assegurou Hikmet Hajiyev, conselheiro do Presidente azeri Ilham Aliyev, ao Politico.
Mas a situação é imprevisível, admite ao Observador Zaur Shiriyev, especialista azeri do Crisis Group. “Baku insiste que estes movimentos são voluntários e não são forçados. Contudo, a realidade é que muitos estão a sair devido ao pânico, sentimento de insegurança, efeitos da última guerra e uma situação humanitária que já era terrível”, diz, a partir do Azerbaijão.
Uma operação-relâmpago depois da fome, a “arma invisível de um genocídio”
Toda a situação se precipitou na passada semana. O exército do Azerbaijão já tinha vindo a posicionar-se nas fronteiras de Nagorno-Karabakh, com vários tanques e veículos militares que indiciavam que poderia estar para breve uma nova guerra na região. No dia 19 de setembro, os indícios confirmaram-se, com os azeris a levarem a cabo uma operação “anti-terrorista” com o objetivo de neutralizar “grupos arménios ilegais” e de dissolver “o regime ilegal”.
Não foram precisas 24 horas para a Arménia anunciar que não iria resistir e entrar em negociações com o Azerbaijão. Agora, uma semana depois, é anunciado que a república de Artsakh se irá dissolver até ao final do ano e a região passará toda a integrar o Azerbaijão.
Formalmente, chega assim ao fim um conflito que durava desde o colapso da União Soviética. Numa região mista, onde em 1970 a população era 80% de origem étnica arménia e 18% azeri, as repúblicas pós-soviéticas da Arménia e do Azerbaijão foram disputando o controlo por Nagorno-Karabakh ao longo do tempo, com dois momentos de guerra aberta.
Em 1994, os arménios venceram o primeiro conflito e passaram a controlar praticamente toda a região, levando à fuga de milhares de azeris. Em 2020, a guerra estalou novamente e milhares morreram nos combates que duraram seis semanas e que, desta vez, só terminaram com um cessar-fogo patrocinado pela Rússia.
“Nste confronto [de 2020], o Azerbaijão recuperou a maioria dos territórios que tinha perdido na década de 1990, com exceção de Karabakh, ocupada por arménios”, explica Zaur Shiriyev. “Este território manteve-se sob supervisão das autoridades de facto e patrulhado pelas forças de manutenção de paz russas. Mas, desde então, a ambição do Azerbaijão de controlar inteiramente a região foi-se tornando mais evidente.”
Nos dois anos seguintes, o regime azeri do autocrata Aliyev apertou a malha sobre a população de origem arménia de Nagorno-Karabakh. Em dezembro de 2022, as autoridades do Azerbaijão começaram a bloquear o corredor de Lachin, a única estrada pela montanha que liga a Arménia à república de Artsakh (a única zona de Nagorno-Karabakh que ainda mantinha autonomia face ao Azerbaijão). Em abril, estabeleceram mesmo um posto de controlo, que passou a impedir a passagem. Na prática, isto implicou que as entregas de comida, medicamentos e combustível que habitualmente iam de Yerevan para o enclave foram interrompidas — até mesmo aquelas que eram feitas pela Cruz Vermelha Internacional.
O impacto fez-se sentir de imediato, com a fome a grassar. Em agosto, Nina, de 23 anos, contava ao The Telegraph como “nos dias bons” a sua família comia pão e pepino ao pequeno-almoço, vegetais ao almoço e batatas ao jantar. Nos “dias maus”, não conseguia manter sequer essa dieta. “Se isto continua, as pessoas vão morrer”, avisava a jovem de origem arménia.
A comunidade internacional alertou para a gravidade da situação, mas não houve consequências. As Nações Unidas falavam numa “grave crise humanitária” e instavam o Azerbaijão a permitir a passagem de bens para o enclave. Outros, como o antigo procurador do Tribunal Penal Internacional Luis Moreno Ocampo, iam mais longe e acusavam o regime de azeri de estar a tentar levar a cabo um genocídio contra a minoria arménia: “Não há crematórios nem ataques com catanas. A fome é a arma invisível do genocídio”, escreveu num relatório publicado em agosto deste ano.
Os outros atores: a Rússia distraída pela Ucrânia e a Turquia atenta
Depois de meses de bloqueio do corredor de Lachin, as tropas azeris atuaram numa guerra-relâmpago a 19 de setembro. Um timing que, para os especialistas, não foi escolhido por acaso.
“Eles esperaram pelo momento certo, quando [as forças de manutenção de paz] russas não estivessem capazes de prevenir um ataque”, afirma Mathieu Dorin. “O bloqueio do corredor de Lachin já não tinha tido reação por parte da Rússia, que está completamente absorvida pela guerra da Ucrânia. E eles sentiram que tinham uma janela de tempo para completar a sua vitória e por um fim à situação em Nagorno-Karabakh.”
A inação russa foi chave em todo o processo. É explicada em parte pelo foco russo na Ucrânia, mas não só. Historicamente aliadas, a Arménia e a Rússia têm vindo a afastar-se cada vez mais ao longo dos últimos anos, em particular desde a eleição em 2018 do primeiro-ministro arménio Nikol Pashinyan.
Ao perceber o desinvestimento russo na sua região, Pashinyan começou a distanciar-se de Moscovo. Em junho passado, o líder arménio disse publicamente não apoiar a invasão russa da Ucrânia, enviou ajuda humanitária para Kiev e convidou os norte-americanos para realizar exercícios militares conjuntos. No início deste mês, deu uma entrevista ao La Reppublica onde destacou que “a arquitetura de segurança da Arménia está 99,999% ligada à Rússia” e que, hoje em dia, isso é um erro. “A própria Rússia precisava de armamento e de munição”.
“Moscovo criticou Yerevan por se estar a aproximar do Ocidente e, em resposta, Yerevan criticou a Rússia pela sua inação e falta de proteção à Arménia”, nota Zaur Shiriyev, do Crisis Group. “Isto foi agravado pela guerra na Ucrânia, que não só enfraqueceu a Rússia, como abriu caminho para o Ocidente se posicionar como mediador entre Baku e Yerevan” — um lugar até aí ocupado tradicionalmente por Moscovo.
Enquanto a Arménia foi perdendo o apoio do seu tradicional aliado, o Azerbaijão continuou a ter a Turquia firmemente a seu lado. Após a conquista total de Nagorno-Karabakh, o Presidente turco Recep Tayyip Erdoğan deslocou-se de imediato ao Cáucaso, onde apareceu ao lado do azeri Ilham Aliyev, no enclave de Nakhchivan. Foi um sinal de que Baku mantém ambições na região que vão para lá de Nagorno-Karabakh e conta com o apoio de Istambul. É que Nakhchivan é uma região azeri entalada entre a Arménia, a Turquia e o Irão e desde o cessar-fogo de 2020 que Aliyev reclama que o corredor Zangezur, que liga o enclave ao Azerbaijão, deve passar a ser controlado pelos azeris.
“Este é um assunto explosivo”, alerta Mathieu Dorin, “porque tem uma dimensão regional ao estar também ligado ao Irão, que até agora tem estado afastado deste conflito [entre Arménia e Azerbaijão].” Por essa razão, diz o especialista, o risco de novas tensões na região fervilharem existem.
Os sinais “perturbadores” de limpeza étnica e as garantias internacionais necessárias
É também por isso que se mantêm os receios da população de origem arménia que ainda resta em Nagorno-Karabakh. A disputa entre Arménia e Azerbaijão permanece em aberto, com os acordos futuros ainda a serem negociados e as fronteiras ainda a serem gizadas.
Pelo meio, há uma população civil que está em risco e nenhum ator independente como as Nações Unidas com presença na região, para garantir que os antigos ódios não resvalam para novas situações de violência. “Precisamos de nos focar no Direito Internacional e garantir formas de proteção a estas pessoas”, avisa Zara Amatuni, da Cruz Vermelha. A representante, que frisa o caráter neutral da sua organização, recusa comentar se há um risco de limpeza étnica, mas afirma que é necessário “que haja considerações específicas pelos civis” nesta situação.
Mathieu Dorin também pede cuidado nas palavras e alerta que a expressão “limpeza étnica” tem um caráter jurídico que tem de ser comprovado. Mas admite que, “obviamente”, se tem assistido a “tentativas de minar a segurança da minoria arménia, tanto em termos de segurança física como alimentar”. “Há um ataque deliberado a esta minoria, portanto há sinais que podem apontar para uma limpeza étnica, numa região que já viu muitas situações deste tipo.” E esses sinais, diz, são “perturbadores”.
Baku garante que não há razões para a população de origem arménia ter medo. Ilham Aliyev afirmou em público esta quarta-feira que os arménios que permanecerem em Nagorno-Karabakh serão tratados como “cidadãos” do Azerbaijão e que os únicos que enfrentarão problemas são os “criminosos” separatistas. “Se abandonarem as armas são livres. Se são militares das Forças Armadas da Arménia, devem regressar à Arménia. Se são residentes locais, podem ficar ou partir, consoante a sua decisão pessoal”, clarificou o conselheiro presidencial Hikmet Hajiyev ao El País.
Organizações como a Human Rights Watch, porém, alertam para o risco de que quaisquer homens adultos de origem arménia possam ser classificados como “combatentes” por Baku e sujeitos a retaliações. O até agora líder do governo separatista da república de Artsakh, Ruben Vardanyan, foi detido esta quinta-feira quando tentava sair do enclave, acusado de financiamento de terrorismo, criação de formações armadas ilegais e de ter atravessado ilegalmente uma fronteira.
Outros sinais apontam para o risco de que o regime de Aliyev — que dentro de portas mantém um sistema autoritário que “reprime as liberdades civis”, de acordo com a Freedom House — persiga a minoria arménia. Ainda no passado mês de maio, em Lachin, o Presidente azeri fez um discurso onde afirmou que os arménios de Nagorno-Karabakh deveriam ser “cidadãos leais e normais do Azerbaijão”. A definição de “leal” e “normal” pode ter entendimentos diferentes para minorias que são étnica e religiosamente diferentes, já que os arménios são cristãos e os azeris muçulmanos.
A tudo isto junta-se o facto de, nas negociações dos últimos dias, Aliyev ter recusado a proposta do primeiro-ministro arménio de que os direitos da minoria sejam assegurados por mecanismos internacionais. Segundo o Council for Foreign Relations, o Presidente azeri terá dito que a Constituição do país deve ser garantia de segurança suficiente para qualquer minoria.
Os especialistas consultados pelo Observador consideram que todos estes receios e inseguranças podem vir a ser dissipados se forem envolvidas autoridades externas como as Nações Unidas, particularmente para lidar com os direitos dos refugiados arménios e para dar garantias aos que permanecem sob domínio do Azerbaijão. “É preciso apoio da comunidade internacional para garantir que este processo cumpre os padrões internacionais e para dar esperança aos arménios locais que, neste momento, não confiam em Baku”, avisa Zaur Shiriyev. “Garantias internacionais poderiam promover essa confiança”.
E as negociações entre Arménia e Azerbaijão devem continuar, defende o analista do Crisis Group: “É certo que este pode ser o fim de quase 35 anos de hostilidades em Karabakh, mas não são uma resolução total do conflito. É preciso progredir para um acordo de paz formal. Sem isso, não podemos almejar a uma paz duradoura para os cidadãos dos dois países.”
Enquanto tal não acontecer, a minoria arménia continuará a desconfiar do Azerbaijão, tal como no passado os azeris desconfiaram dos arménios e fugiram de Nagorno-Karabakh. O fantasma da limpeza étnica sempre pairou sobre este enclave, que assistiu a massacres e violência de ambos os lados.
Para os que partem temendo uma repetição desse padrão que bem conhecem, sobra a mágoa de deixar para trás a única terra que conheceram. “Na prática, não vejo forma de num futuro próximo os arménios voltarem a controlar a região”, declara Mathieu Droin. “A nostalgia, a saudade, vai lá estar”, diz, invocando a palavra portuguesa. “Mas a possibilidade de regresso não é uma perspetiva realista.”
No Hotel Goris, onde se acumula a maioria dos refugiados que chegam do outro lado da fronteira, há quem esteja consciente disso. Como Anna Hakobyan, septuagenária que o The Guardian encontrou no átrio do hotel, sentada numa cadeira de rodas. Anna lamenta nunca mais poder vir a ver a campa do filho, em Nagorno-Karabakh, mas não tem dúvidas da decisão que tomou. “Já vivi três guerras. Nunca mais vou regressar. Para mim, chega.”