Duas horas de concerto, duas horas de coros entoados com o público que no Estádio Cidade de Coimbra, esta quarta-feira, não se cansou de cantar, aplaudir e vibrar com os Coldplay. Canção após canção, 52 mil pessoas renderam-se à banda britânica que nos últimos anos tem fintado a crítica musical e marcado pontos atrás de pontos com os fãs em palco — o habitat que aprenderam a dominar.
Na primeira de quatro datas há muito lotadas em Coimbra, o grupo trouxe o arsenal esperado por quem acompanha os concertos (ou as imagens destes) por esse mundo fora: fogo de artifício, balões, jogos de luzes e um espetáculo visual sincronizado com pulseiras luminosas oferecidas ao público na digressão Music of the Spheres. O aparato visual e sensorial está lá, mas não chegará para justificar como é que até os que torcem o nariz a Coldplay sabem as canções de cor. A banda é polarizante, sabe disso, e até convida os críticos para os concertos. Afinal, o grupo tem uma canção designada “Us against the world” (Mylo Xyloto, 2011).
A pontualidade britânica faz com que a hora de início do concerto, apontado para as 21h15, não derrape além dos três minutos. Milhares de braços elevam-se para captar a chegada dos Coldplay, que não pisam um palco português desde 2012, quando atuaram no Estádio do Dragão, no Porto. Os ecrãs ligam-se e há um primeiro vislumbre do quarteto, que está a ser guiado em direto dos bastidores até ao palco. Um plano apertado no rosto de Chris Martin provoca uma reação sonora do público. Será este o efeito do cantor-compositor-feito-estrela-pop que faz check em todas as caixas para conquistar a simpatia da audiência que tem à sua frente? Isto é: sabe o nome da cidade que visita, esforça-se por conhecer a língua, manda beijinhos, cobre-se com a bandeira do país, carrega na energia, esbanja simpatia.
Em segundos, o estádio transforma-se num mar vermelho, com as pulseiras a vibrar e a exibir freneticamente essa cor. Eis “Higher Power”, tema de Music of the Spheres (2021), o álbum mais recente da banda que motiva esta digressão que, depois da América do Sul, arranca agora em Coimbra antes de rumar a Barcelona.
Num piscar de olhos, habemus fogo de artifício e, à segunda música, também balões, que saltitam pela zona do relvado. As cartas estão na mesa quanto à grandiosidade cénica. Escuta-se “Adventure of a Lifetime” (do álbum A Head Full of Dreams, de 2015), um título perfeitamente plausível para a odisseia de quem nos últimos meses tentou conseguir bilhete para um destes quatro concertos (17, 18, 20, 21 de maio), esgotadíssimos desde agosto, data em que foram anunciados pela promotora Everything is New. Pelo menos sete pessoas foram detidas por especulação de bilhetes para os espetáculos, avisou a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) durante esta última semana. Com sorte, quem chegou ao fim da aventura pode agora descansar no “Paradise”, onde um coro afinado encontra conforto no verso: “When she was just a girl, she expected the world”. Um Chris Martin de cócoras sussurra “This could be para-, para-, paradise“, impelindo-nos a fletir os joelhos e a partilhar com ele o segredo mais mal guardado da história.
“Nobody said it was easy”, ouvimos pouco depois, num dos mais melancólicos momentos, com Martin ao piano para recuperar “The Scientist” (A Rush of Blood to the Head, 2002). Casais abraçados embalam-se com a melodia e Chris retoma às palavras em português. “Obrigada pelo esforço de estarem aqui hoje”, diz, aludindo ao trânsito e a “outros problemas” — houve atrasos na entrada no recinto e problemas na verificação de bilhetes. O público repete em uníssono em jeito de resposta: “Nobody said it was easy”. De facto, não terá sido fácil passar longas horas nas filas, como relataram os jovens que ao longo desta quarta-feira foram surgindo em diversas reportagens televisivas, alguns deles a dormir ao relento. Mas a vida é para ser vivida, dirão, para logo depois cantarem alto e bom som outro hit: “Viva La Vida” (2008).
Mais do que ouvir canções novas, havia uma enorme vontade de revisitar as antigas que tornaram os Coldplay o que hoje são. A banda foi navegando por um alinhamento que agradasse a todos — e por certo os Coldplay saberão alguma coisa sobre fenómenos agregadores. Ainda assim, dois dos mais memoráveis momentos da noite prenderam-se com músicas de outros tempos. O concerto aproximava-se pela metade quando Chris Martin notou um jovem que assistia ao espetáculo hasteando um cartaz onde dizia que o seu “sonho de vida” era tocar ao piano a canção “The Hardest Part”, do álbum X&Y (2005). O tema não era cantado ao vivo desde 2016, mas o vocalista viu o cartaz e acedeu ao pedido.
The Hardest Part #ColdplayCoimbra pic.twitter.com/5C6I4tdE21
— Coldplay (@coldplay) May 17, 2023
E foi assim que Lourenço Lampreia, lisboeta de 20 anos, acabou a tocar, em palco, com o seu artista favorito. “Foi uma coisa surreal, ainda estou um bocadinho fora de mim”, comenta o jovem ao Observador, após o sucedido. “Fiz o cartaz, mas não tinha garantia nenhuma de que ia ter sucesso”, diz. “Escolhi uma música e treinei-a muitas vezes”. “Não é muito comum, mas já tinha visto a acontecer noutros países”, “é raro, mas há sempre essa possibilidade”. Ainda assim, “quando ele apontou para mim fiquei sem palavras”, confessa. O Chris Martin “é o meu maior ídolo, é a minha banda preferida”. “Não sei como é que vou dormir o resto da minha vida” (risos).
Os Coldplay ainda nos haviam de lembrar, como há duas décadas, que tudo é amarelo (“And it was all yellow”), e que as estrelas continuam a brilhar para nós (“Look how they shine for you”). O muito esperado tema do álbum Parachutes (2000) denunciou-se quando as pulseiras pintaram o recinto de “Yellow” ainda mesmo antes de qualquer nota. Espreitaram as lágrimas de quem, pese embora o sucesso desmedido dos Coldplay, continue a acreditar quando Chris Martin entoa: “I wrote a song for you”.
Outro momento digno de nota foi a passagem por “Sky Full of Stars” (Ghost Stories, 2014), que encaminhou as 52 mil pessoas presentes para um clímax interrompido mesmo antes de ser atingido. Esfumou-se o som. Chris Martin recuou. A banda soltou os braços dos instrumentos. “Falha técnica?”, perguntavam-se ao nosso lado. Não, Chris Martin tinha apenas um pedido a fazer. “Meus amigos”, começou por dizer, num português imperfeito que compensava com boa-vontade. “Vamos fazer outra vez, mas sem telemóveis, sem câmaras, sem eletrónicos.” Uma canção, uma das mais orelhudas da banda, apenas para quem ali estava. “Estamos tão felizes por estar aqui que gostávamos de ter uma música em que nos conectamos enquanto um só”, explicou-se. “Tudo o que precisam para esta música é o telefone no bolso e as duas mãos no céu.”
A banda, que confessou que a noite desta terça-feira em Coimbra constituiu a “melhor experiência em Portugal” (e com esta contam-se sete aparições em solo nacional), teve ainda tempo de endereçar uma mensagem de solidariedade para com a Ucrânia e a Rússia, piscar o olho à geração mais jovem, com a música com o grupo BTS, “My Universe”, habitar o ambiente mais soturno de “People of the Pride”, e brindar o público com as incontornáveis “Humankind” e “Fix You”.
E, já bem perto do fim, na ponta do estádio, num pequeno palco, Chris Martin acabou a protagonizar um outro momento de exceção para gravar na memória. Seguindo a linha do que fez nos concertos do Brasil, em que a banda incluiu no alinhamento alguns temas de músicos nacionais, como “Amiga da minha mulher”, de Seu Jorge, o vocalista dos Coldplay aproximou-se do microfone e soltou: “Coimbra tem mais encanto, na hora da despedida”. Martin, apenas com uma guitarra acústica, lançou-se na conhecida “Balada da Despedida (Coimbra Tem Mais Encanto)”, levando o estádio a um êxtase coletivo, sem hesitações, a trautear uma das mais populares canções de Coimbra, da autoria de Fernando Machado Soares e Francisco Bandeira Mateus.
Em Coimbra, está terminado o primeiro round — ou o primeiro adeus. Venham mais três.
Coimbra tem mais encanto com Coldplay! incrível! pic.twitter.com/TEoBBKF3rm
— fredericomoniz (@fredericomoniz2) May 17, 2023