Começou a 22 de janeiro e foram cinco meses certos de um julgamento que arrancou com quatro arguidos, mas só avançou com três: o procurador Orlando Figueira, o advogado Paulo Blanco e o empresário Armindo Pires. De fora ficou o ex-vice-Presidente angolano, Manuel Vicente, que chegou a ser acusado de corrupção ativa, mas cujo processo foi separado para outro inquérito que acabou entregue às autoridades angolanas.

O julgamento que feriu as relações diplomáticas entre Portugal e Angola chegou ao fim e a decisão será conhecida a 8 de outubro. Muitos episódios rocambolescos marcaram as 50 sessões em que Figueira, Blanco e Pires eram acusados dos crimes de corrupção, branqueamento, violação do segredo de justiça e falsificação de documentos.

Uma sala cheia

Logo no primeiro dia da sessão de julgamento, a sala do terceiro piso do edifício A do Campus de Justiça mostrou-se pequena para tantas pessoas. Entre jornalistas portugueses e angolanos, assessores, advogados e curiosos, houve quem ficasse à porta. O coletivo de juízes, presidido por Alfredo Costa, acabou por determinar que quem não tinha lugar se sentasse na segunda fila destinada aos arguidos nos processos maiores.

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À medida que as sessões foram avançando, sempre com medidas de segurança excecionais, foram perdendo audiência. Mas não totalmente. O assessor de uma agência de comunicação foi presença assídua, assim como um advogado português, um jornalista e jurista angolano e alguns jornalistas portugueses. Nalgumas sessões específicas apareciam pessoas novas, como no caso do depoimento do banqueiro Carlos Silva — que levou uma verdadeira comitiva de familiares e funcionários. Por vezes apareciam advogados curiosos ou mesmo magistrados que ali trabalham para perceberem como o julgamento estava a correr. Na última sessão, os jornalistas agradeceram mesmo ao juiz presidente, Alfredo Costa, por ter sempre garantido que todos tinham lugar na audiência e não lhes ter feito qualquer advertência. O juiz respondeu que era o que podia oferecer, lamentando que tivessem de escrever com os computadores sobre as pernas.

O juiz Carlos Alexandre é amigo de Orlando Figueira há mais de 20 anos

O juiz que aparecia de vez quando

O agora juiz desembargador do Tribunal da Relação de Guimarães, Pedro Cunha Lopes, apareceu nalgumas sessões de julgamento. Mas foi na primeira vez, logo na segunda sessão, que a sua presença causou algum desconforto a arguidos e advogados. Como a sala estava cheia, o juiz presidente terá feito sinal ao colega para entrar e sentar-se no banco dos advogados. “Quem é o cavalheiro que acabou de se sentar?”, perguntou o então advogado de Paulo Blanco, João Correia, enquanto o arguido Orlando Figueira prestava declarações. Antes que o presidente do coletivo falasse, Pedro Cunha Lopes respondeu-lhe: “Olhe, eu conheço-o muito bem”, e fixou o olhar no advogado. O juiz presidente respondeu: “Este senhor é magistrado e, como não tinha lugar na sala para se sentar, sentou-se aqui”, disse. “Mas há ali cadeiras”, ouviu-se de um dos advogados. O juiz desembargador no Tribunal da Relação de Guimarães, que teve em mãos o caso Homeland que envolveu Duarte Lima, manteve-se alguns minutos na sala, mas acabou por sair pouco depois. Ao sair ainda olhou para o advogado e ex-autarca Fernando Seara — que se encontrava na plateia. Das outras vezes que Pedro Cunha Lopes apareceu no julgamento, já não houve problemas: sentou-se sempre entre a audiência.

Uma ameaça de morte

Foi logo no início de março e o arguido Orlando Figueira comunicou-o de imediato ao coletivo de juízes durante a sessão de julgamento. Tinha sido ameaçado de morte por um dos presentes na sala em audiências anteriores. Segundo a sua advogada, Carla Marinho, os dois tinham já sido ameaçados no edifício do tribunal e as ameaças alargaram-se à irmã de Figueira no Hotel Ibis. Quem ameaçou disse “estar a mando de uma pessoa muito mencionada neste processo”. A defesa do arguido pediu acesso às imagens de videovigilância do tribunal (da receção e da zona perto da sala de audiência). Orlando Figueira pediu ainda que se juntassem aos autos imagens da receção do Hotel Ibis. O coletivo de juízes comunicou o caso à Instância Criminal de Lisboa e aceitou o requerido. Pediu também à PSP uma avaliação do risco. O suspeito acabaria por se apresentar no processo como um “jornalista e blogger angolano”, recusando ter feito tais ameaças e até expressando admiração por Figueira. Houve mais intervenientes no processo a dizerem ter sido ameaçados, mas não o comunicaram formalmente ao juiz.

Orlando Figueira diz que foi ameaçado no tribunal

Um (outro) juiz que chorou

Num julgamento que sentou no banco dos réus um magistrado e um advogado e que acusou um governante angolano, não podiam faltar juízes no rol de testemunhas. O chamado superjuiz Carlos Alexandre foi um deles. Normalmente, Carlos Alexandre é notícia por ter em mãos casos sonantes, como o de José Sócrates (Operação Marquês), mas desta vez a sua passagem pelo tribunal foi como testemunha amiga do arguido Orlando Figueira há mais de 20 anos. O juiz foi ouvido ao longo de um dia inteiro, mostrando como conheceu o colega acusado de corrupção e descrevendo como era um homem “ingénuo” que facilmente se deixaria enganar. Contou como ele estava entusiasmado com a ideia de deixar a magistratura e ir ganhar um vencimento superior para o privado, e de como o alertou para o facto de ir trabalhar para angolanos — e isso poder colidir diretamente com os processos que tinha em mãos no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). A certa altura, o juiz começou a descrever um empréstimo que o magistrado lhe concedeu, quando tinha a casa em obras e o filho hospitalizado. “Quando o meu filho adoeceu não quis saber mais de Orlando Figueira”, confessou, visivelmente emocionado e com lágrimas nos olhos.

Os emails que estavam no processo e que só foram vistos em julgamento

Ao longo do julgamento as defesas dos três arguidos foram apresentando várias provas, mas o Ministério Público, pelas mãos da procuradora de julgamento, Leonor Machado, também teve um papel ativo. E quando descobriu que havia um conjunto de emails, entre eles alguns que Paulo Blanco tinha trocado com o banqueiro angolano, Carlos Silva, que não tinham sido vistos à lupa em fase de inquérito, pediu para serem analisados. Porque poderiam provar o que Figueira sempre disse: que assinou um contrato com Carlos Silva e não com Manuel Vicente e que, por isso, abandonou a magistratura, e que nunca foi corrompido.

Em tribunal, a PJ explicou porque isto acontecia. O suporte informático era demasiado vasto para ser todo passado a pente fino. Havia vários emails para analisar (emails pessoais e profissionais do arguido e do Banco Privado Atlântico) pelo que a pesquisa era feita por palavras-chave definidas pela procuradora do Ministério Público titular do processo. E que palavras foram essas que orientaram a investigação? Estas: Orlando, Primagest, Sonangol, EstorilSol Residence, Fund Box, Fundor, Banco lnvest, Vicente,  Álvaro Sobrinho, Morais Júnior, Leopoldino, Giotetty, Kopelipa, Rabelais, Sergeenkov, Blanco, Angélica, Nazaki, Portmill, Damer, Delta Imobiliária, Aquatro e os números de cinco processos investigados por Orlando Figueira.

O advogado Rui Patrício (à esquerda), que representa Armindo Pires (ao centro), diz que lhe chamaram “porco”

O “seu porco” vindo da assistência para o advogado de Manuel Vicente

Além das ameaças da morte, houve também registo de insultos nalgumas sessões. Um desses insultos foi mesmo recordado pelo advogado Rui Patrício (que representa Manuel Vicente e Armindo Pires) nas alegações finais, já no último dia de julgamento. Partiu da audiência no dia em que o banqueiro Carlos Silva estava a prestar declarações em tribunal e terá sido proferido pela própria filha do empresário. “Seu porco”, atirou, levando Rui Patrício a uma pausa de alguns segundos, antes de prosseguir. Patrício confrontava nesse momento Carlos Silva com um email enviado por Paulo Blanco ao então procurador-geral angolano. Referia que lhe tinham solicitado um orçamento para resolução de assuntos “relativos a dois amigos (GK+GD)”. O advogado queria que Carlos Silva identificasse aquelas siglas. E a filha não terá gostado do confronto. “Eu gosto deste email. É o mundo. Fornece o mundo de imaginação possível, fez com que alguém nesta sala se virasse para mim e me chamasse porco”, disse Rui Patrício nas alegações finais.

A empresa central no processo cujos donos desapareceram na hora de testemunhar

Chama-se Primagest, é uma empresa angolana e terá sido com ela que Orlando Figueira assinou o contrato de trabalho que o levou a pedir uma licença sem vencimento ao Conselho Superior de Magistratura. É também a empresa central neste processo. É que se, por um lado, o Ministério Público faz uma acusação por corrupção por considerar que esta empresa está ligada a Manuel Vicente e que foi ele que pagou a Figueira por troca dos arquivamentos de processos, por outro a defesa alega que a Primagest é, afinal, do banqueiro Carlos Silva e que este nada tem a ver com o ex-vice-presidente angolano.

Os nomes que aparecem à frente da Primagest são, no entanto, o do advogado angolano Manuel António Costa, administrador de várias empresas, e o de Agostinho Afonso como beneficiário final. Estes dois empresários prestaram declarações durante o inquérito que foram fundamentais para o julgamento, ao qual contudo não chegaram a comparecer. Manuel António Costa foi notificado para prestar declarações a partir do consulado português em Luanda, mas um dia antes da inquirição, quando o escrivão tentou testar o Skype, percebeu na resposta que não o tinham conseguido contactar. Mesmo sendo um advogado inscrito na Ordem dos Advogados angolana.

Um dia antes da audição de Carlos Silva, a própria Primagest, através do seu advogado, chegou a enviar um documento que Figueira teria assinado para o processo. Aproveitando essa brecha, os advogados do arguido Armindo Pires pediram ao tribunal que notificasse então esse advogado, para que chegasse à fala com Afonso Agostinho e este prestasse esclarecimentos ao tribunal. Mas a resposta foi igual: não conseguiam contactá-lo.

Tanto Agostinho Afonso, o beneficiário final da empresa, como Manuel António Costa, seu administrador, prestaram declarações na fase de inquérito e garantiram ter celebrado contrato com o procurador. Mas seriam fundamentais em tribunal para se perceber se a Primagest estava ligada à Sonangol de Manuel Vicente ou a Carlos Silva, como diziam cada um dos arguidos.

As testemunhas que foram perder tempo

Foi a 11 de abril que o procurador Ricardo Matos, que herdou o processo de Orlando Figueira sobre fraude fiscal na venda de apartamentos no Estoril Sol — do qual o arguido retirou o ex-vice-Presidente Manuel Vicente — foi depor a tribunal. Também ele admitiu ter arquivado o mesmo processo relativamente aos restantes suspeitos investigados com fundamentos semelhantes aos de Figueira: alguns provaram a origem dos seus rendimentos e não tinham antecedentes criminais, outros nem responderam. No entanto, a testemunha referiu nunca ter “mandado destruir” qualquer documento de prova num processo. O seu depoimento viria mais tarde a ser desconsiderado quando o coletivo de juízes decidiu recusar ouvir o procurador Rosário Teixeira como testemunha, por ter participado numa busca ao escritório de Paulo Blanco onde Ricardo Matos também tinha tido participação. O argumento foi, depois, usado por dois advogados do Banco Privado Atlântico, Fernando Aguilar de Carvalho e Daniel Bento Alves, que ainda se deslocaram ao Campus de Justiça no dia em que era suposto serem ouvidos. Acabaram dispensados pelo juiz por terem tido participação no processo quando foram feitas buscas às instalações do Banco Privado Atlântico Europa, em Lisboa.

A funcionária que viu na televisão como destruir as provas

A funcionária judicial que auxiliava Orlando Figueira — e que até foi alvo de críticas do arguido durante o julgamento por ter um horário “das 11h às 15h, com duas horas de almoço” — admitiu em tribunal que destruiu os 22 documentos justificativos dos rendimentos de Manuel Vicente, juntos ao processo pelo advogado Paulo Blanco, reproduzindo o que aprendeu na televisão. Isabel Martins vacilou quando viu o despacho de Orlando Figueira a ordenar que apagasse o nome de Manuel Vicente do processo, em que era investigada a compra de vários apartamentos no Estoril Sol e do processo daí extraído relativamente a ele. “Fiquei a pensar como havia de cumprir”, disse. Ainda perguntou a um colega mais antigo no DCIAP como o faria e experimentou várias formas. “A única hipótese era mesmo com um x-acto. Cortar”, esclareceu.

Uma das juízas insistiu, perguntado quem lhe dera essa ideia, e a funcionária acabou por admitir que tinha visto na televisão. “Olhe, sr.ª doutora, para dizer a verdade foi numa altura em que se falou disso. Mostrou até na televisão uns recortes que houve nas escutas de um processo de Aveiro ou de Leiria que tinham também umas interceções e que mostrou um processo que tinha uns recortezinhos”. Isabel Martins referia-se às escutas em que aparecia José Sócrates, no processo Face Oculta. No entanto, as notícias da destruição das escutas do processo Face Oculta são de 2014, já Orlando Figueira não estava no DCIAP.

Um Ministério Público dividido

Durante o julgamento foi percetível uma divisão de posições entre o que consideraram as procuradoras em fase de inquérito e com o que se deparou a procuradora de julgamento — que solicitou e valorizou vários documentos que pareciam não ter sido valorizados durante a investigação. Essa divisão ficou bem patente quando o Ministério Público arrolou já em julgamento o procurador Rosário Teixeira como testemunha, o que não tinha sido feito até então. O magistrado tinha sido arrolado pelo arguido Paulo Blanco, que acabou por prescindir dele.

O coletivo de juízes, no entanto, acabaria por recusar mesmo ouvir Rosário Teixeira argumentando que teve uma participação no processo, mais concretamente na busca feita ao escritório de Blanco. Logo, não poderia ser testemunha. Leonor Machado conformou-se em julgamento e seguiu em frente, mas a procuradora do inquérito — que chegou a comparecer num par de sessões de julgamento, o que não é comum — acabou a recorrer desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa. Inês Bonina considerou no recurso que Rosário Teixeira seria testemunha fundamental para explicar os procedimentos no DCIAP, embora não o tenha arrolado antes. Mais: o procurador foi referido pelos arguidos e pela testemunha Carlos Silva ao longo do julgamento, pelo que devia ser ouvido.

A procuradora argumentou que uma das juízas que participou em buscas no processo julgou o próprio processo. “Se a Mma. Juiz pode fazer parte do Tribunal Coletivo que se encontra a julgar o presente processo, apesar de ter participado numa busca em fase de inquérito, pela mesma ordem de razões, não se vê como obstar à inquirição de um magistrado do MP, que também só participou numa única busca e que, desde então, não teve nenhuma outra intervenção profissional neste processo”, justificou Inês Bonina.

O arguido e advogado Paulo Blanco

Os assistentes mistério e a advogada oficiosa

Chama-se José Francisco Cavaleiro Machado e constituiu-se assistente no processo em março de 2017. Logo no início do julgamento, o também advogado chegou acompanhado de um representante legal e de um fotógrafo que fazia questão de fotografá-los à entrada e à saída do tribunal. Aos jornalistas disse estar ali apenas como um cidadão preocupado. Mas, ao longo de todo o julgamento, levantaram-se sempre questões se ele e o seu advogado, que se fizeram sempre representar em todas as sessões de julgamento, estariam a mando de alguém. Chegou a especular-se nos corredores, a avançar com nomes de acordo com as perguntas que os assistentes iam fazendo. Mas nunca se chegou a uma conclusão. O advogado do assistente que mais acompanhou o processo, Luís Rolo, pediu a absolvição de todos os arguidos sob o argumento de que, durante o julgamento, subsistiram várias dúvidas quanto à acusação. E, na dúvida, absolve-se.

Luís Rolo sentou-se sempre do lado oposto e de frente para os restantes advogados. Desse lado houve algumas curiosidades. Inicialmente sentavam-se ali o advogado João Correia e a advogada Rita Relógio em representação de Paulo Blanco, mas ao fim de poucas sessões João Correia deixou de aparecer sendo substituído pelo sócio Fernando Seara, que até então estava na assistência. Ao lado estava a advogada de Figueira, Carla Marinho — a quem o juiz presidente nunca tratou pelo nome, nem por “advogada”, mas por “senhora oficiosa”.

Carla Marinho, que no final agradeceu tudo o que aprendeu no julgamento, foi nomeada cerca de dois meses antes do início do julgamento, após Figueira ter prescindido dos serviços de Paulo Sá e Cunha, por este não concordar com o facto de ter denunciado o banqueiro Carlos Silva e o advogado Daniel Proença de Carvalho, numa exposição que entregou ao tribunal em novembro (trazendo novos argumentos à sua defesa). Depois sentavam-se os advogados de Manuel Vicente e Armindo Pires, que chegaram a ser três em tribunal: Rui Patrício, João Lima Cluny e Filipa Marques Júnior.