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Um negócio milionário montado para escapar aos impostos? A venda das barragens da EDP em 9 questões

Transação de 2,2 mil milhões de euros deve pagar impostos? E, se não paga, foi porque a EDP construiu um modelo para o evitar? E cumpriu a lei? As suspeitas e o que pede o Movimento Terras de Miranda.

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“Dessa riqueza muitos gánhan, mormente: 1. La ampresa cuncessionaira de la sploraçon de las barraiges, por las ganáncias que anho atrás d’anho produzen estes eiquipamentos i pul más balor que bai a recebir cun la benda de las cuncessones; 2. L Stado Pertués que bai a cobrar 5% daqueilhes 2210 melhones d’ouros, por bias de l Ampuosto de Selo, por la benda de las barraiges. Esse ampuosto fui siempre receita de la Cámara de Miranda i deixou de ser por decison de l poder central a partir de 2003”.
(Excerto do manifesto cultural das Terras de Miranda em mirandês)

A venda de seis barragens no Rio Douro pela EDP foi o maior negócio em Portugal nos últimos anos e a mais importante venda de ativos elétricos. Anunciado em dezembro de 2019, demorou cerca de um ano a concretizar-se, depois de muitas autorizações, mas também de operações jurídicas que estão no centro da mais recente polémica fiscal que envolve a maior empresa portuguesa.

Deveria a EDP pagar impostos na sequência desta transação de 2,2 mil milhões de euros? Se sim, que impostos? E, se não, isso deveu-se a um esquema montado propositadamente pela empresa para evitar pagar impostos — e que, sabe o Observador, era uma condição do caderno de encargos imposta pela EDP quando pôs as barragens à venda em 2019? O Governo sabia e podia ter impedido? E o que pode ainda ser feito se se verificar que houve planeamento fiscal abusivo?

Estas são algumas das questões a que o Observador procura responder com base na informação já pública e  respostas que têm sido dadas pelos protagonistas destas operações: da EDP ao ministro e Ministério do Ambiente, passando pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, e pelo movimento local que colocou o negócio na agenda. O tema para já é político, com o Bloco de Esquerda e o PSD a dar voz às suspeitas e a chamar ao Parlamento os ministros das Finanças e do Ambiente e o presidente executivo da EDP. O Movimento Terras de Miranda já foi recebido por Marcelo Rebelo de Sousa e aguarda agendamento de uma audiência pedida à Procuradoria Geral da República.

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De onde e quando surgiu a suspeita de que este negócio poderia fugir aos impostos?

A questão foi levantada desde pelo menos setembro do ano passado pelo Movimento Cultural Terras de Miranda, uma organização que defende a partilha de benefícios gerados pelas barragens com a região de Trás-os-Montes, onde se localizam três das centrais hidroelétricas vendidas pela EDP — Picote, Bemposta e Miranda.

Ministro do Ambiente recebeu em setembro documento com alertas sobre negócio

MÁRIO CRUZ/LUSA

Um documento que terá sido transmitido numa reunião realizada em setembro com o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, alerta de forma inequívoca para o risco de operações de planeamento fiscal agressivo. O documento defendia que a operação devia ser acompanhada no que respeita à matéria fiscal para que fossem “devidamente acautelados os interesses do Estado e dos Municípios”. E apontava três razões

  • É uma operação pouco habitual, pelo que, relativamente a ela, não existem decisões jurisprudenciais consolidadas nem doutrina fixa;
  •  Os valores envolvidos são muito elevados, pelo que os custos fiscais (ou as receitas fiscais) da operação também o podem ser, dependendo da configuração, em concreto, do negócio jurídico;
  •  As duas circunstâncias anteriores correspondem, em condições normais, a causas de contexto para a realização de operações de planeamento fiscal tendentes a evitar o pagamento dos impostos normalmente devidos. Em muitos destes casos, a administração tributária corrige, posteriormente, a evasão fiscal praticada, mas dificilmente se recupera a receita, dando antes origem a processos de contencioso que se eternizam nos tribunais.

Como o negócio depende da autorização do Estado — neste caso, de duas entidades do Ministério do Ambiente  — “o mais eficaz poderia ser fazer depender essa autorização do prévio pagamento dos impostos devidos sobre a transmissão, em especial o IMT e o Imposto do Selo, que devem ser pagos antes da formalização da operação”.

O movimento pedia ainda uma alteração da código fiscal do Imposto do Selo para permitir que esta receita fosse dos municípios como acontecia no passado, no tempo da Sisa.

O alerta indicava de que forma esta operação poderia ser feita para escapar aos impostos?

Não. O documento explicava, sim, de que forma esta operação iria, no entender dos responsáveis do Movimento (onde há quadros do Fisco), resultar no pagamento de impostos e que impostos.

Numa transmissão dos imóveis das barragens, em separado ou no trespasse universal da concessão, sobre o valor correspondente aos imóveis deve incidir o IMT à taxa de 6,5%, pago pelo adquirente antes do negócio feito. Este imposto é receita dos municípios onde estão as barragens. No caso de trespasse parcial, sem imóveis ou através de uma subconcessão, sobre o valor incide o Imposto do Selo à taxa de 5%, que deve ser pago pelo alienante, a EDP. A conta dá 110 milhões de euros para uma transação de 2,2 mil milhões de euros.

O Estado teria ainda direito às receitas do IRC sobre as mais valias que o vendedor obtenha — a EDP indicou um ganho contabilístico de 200 milhões de euros.

Como foi feito o negócio?

A operação incide sobre uma parte dos ativos da empresa EDP Produção detida pela EDP. Em vez de vender (neste caso, trespassar ou suboncessionar, por que se trata de bens abrangidos por uma concessão do Estado) a EDP Produção fez uma cisão desse ativos — seis barragens no rio Douro — para uma nova empresa controlada pela própria EDP Produção, transmitindo os direitos de exploração das hidroelétricas.

O projeto de cisão foi apresentado em agosto, mas a nova sociedade só viria a ser designada por Camirengia em dezembro. Esta transação foi feita no quadro legal das reestruturações empresariais (que permite às empresa reorganizar os seus ativos e participações), ficando isenta do pagamento de impostos. E deu origem a adendas a cada um dos seis contratos de concessão que foram autorizadas pela Agência Portuguesa do Ambiente.

A 19 de dezembro realiza-se a transação propriamente dita, com a venda das ações da Camirengia à empresa Águas Profundas, criada pela Engie logo em dezembro de 2019 após o anúncio de venda. O Observador sabe que o modelo jurídico adotado na operação era uma condição de partida da EDP para a venda das barragens que estava no caderno de encargos difundido em 2019 pelos concorrentes aos ativos. Quem comprasse teria de cumprir esta condição prévia.

Quando realiza a aquisição, a Águas Profundas tem já um capital próprio de mais de 1,2 mil milhões de euros que resulta dos recursos financeiros colocados pelos seus acionistas e no seu balanço consta uma participação financeira do mesmo valor que corresponde à compra da Camirengia.  A Águas Profundas passa a chamar-se Mohvera I e já em janeiro é feito o registo do pedido de fusão por integração da Camirengia na Mohvera I. É através desta operação, anunciada em janeiro de 2021, que a Mohvera I passou a deter as barragens da EDP, bem como os direitos de exploração. Desta operação resultará a dissolução da sociedade criada pela elétrica nacional e vendida à sociedade designada Águas Profundas pelo comprador.

O que fez o Ministério do Ambiente depois do alerta recebido sobre o risco fiscal?

O documento de setembro foi deixado no gabinete de João Pedro Matos Fernandes, que terá indicado aos representantes do Movimento Terras de Miranda a intenção de o abordar com o Ministério das Finanças. O Movimento ficou na expetativa de ser chamado para nova reunião, mas isso não aconteceu — e em novembro o Ministério do Ambiente anuncia a autorização para a realização do negócio pela APA (Agência Portuguesa do Ambiente).

Luz verde à venda das barragens no Douro da EDP. Engie mantém empresas gestoras em Portugal

Pela informação recolhida pelo Observador, o Ministério do Ambiente não terá suscitado qualquer reunião com as Finanças para debater este tema. Questionado pelo Observador sobre esse contacto ou envio do documento com as preocupações fiscais para o Ministério das Finanças, o gabinete de Matos Fernandes não respondeu, remetendo para as explicações já dadas sobre esta operação e que são desenvolvidas noutra questão.

Os documentos enviados ao Parlamento pelo Governo, a pedido do Bloco de Esquerda, revelam que as operações societárias que materializaram a transação foram comunicadas à Agência Portuguesa do Ambiente, a entidade do Estado a quem cabe autorizar a transferência de propriedade dos ativos concessionados pelo Estado.

Esta autorização foi dada a 13 de novembro, tendo a Agência Portuguesa do Ambiente dado luz verde a duas transmissões dos aproveitamentos hidroelétricos, depois de verificados os requisitos previstos no quadro legal: cumprimento das obrigações do contrato de concessão, a descrição dos procedimentos envolvidos, a demonstração que o potencial adquirente tinha habilitações financeiras e técnicas. Pelo que foi enviado, não terá sido feita qualquer análise às implicações fiscais desta transação, alimentando a suspeita de que os alertas do Movimento Terras de Miranda foram ignorados ou não considerados sustentados.

Vista da Barragem do Picote no Douro, perto da fronteira com Espanha

Na sequência da autorização dada pela Agência Portuguesa do Ambiente, a Direção-Geral de Energia e Geologia, também tutelada pelo Ministério do Ambiente, emitiu parecer favorável à transmissão das licenças de produção de cada um dos centros eletroprodutores. A REN (Redes Energéticas Nacionais), que é a concessionária dos terrenos que foram expropriados para o domínio público para a construção das barragens, não se opõe à operação.

A 14 de dezembro a Agência Portuguesa do Ambiente, em nome do Estado, a REN e a Águas Profundas (detida pelo comprador) celebram uma adenda ao contrato de concessão onde é descrita a estrutura de transmissão dos ativos da concessão, primeiro da EDP para a Nova Sociedade (então ainda não constituída) e depois desta para a Águas Profundas, que entretanto mudou de nome para Movhera I e se encontra em processo de fusão com a Camirengia. Após a transferência de todos os ativos desta sociedade para Movhera I, a Camirengia (empresa para a qual a EDP transferiu as concessões vendendo depois à Engie) será extinta.

Esta operação, notificada a 25 de janeiro, é justificada com a simplificação de uma organização societária redundante, bem como um reforço do controlo dos acionistas sobre a gestão da atividade operacional, uma vez que as participações passaram a ser detidas pela sociedade que ficará com a atividade operacional. O anúncio da fusão invoca a necessidade racionalizar e simplificar custos administrativos de forma a potenciar a rentabilidade das sociedades e maximizar o lucro. É nesta fase da operação que é consumado o negócio da venda dos direitos de exploração das barragens da EDP para o consórcio liderado pela Engie que é o dono da Movhera I.

Que suspeitas foram levantadas sobre o negócio?

Com base na análise da documentação recebida pelo Parlamento a 12 de fevereiro, foram suscitadas várias dúvidas e suspeitas. A montagem jurídica da operação é descrita como desnecessária e sem racionalidade económica, o que parece indiciar uma construção deliberada para evitar encargos fiscais. A criação de sociedades para servirem de veículos de transmissão, sem atividade económica, para depois serem dissolvidas, é um dos argumentos para sustentar a tese de construção artificial e aparente. “Há um negócio real e há um negócio aparente”, diz  Óscar Afonso, professor da Faculdade de Economia do Porto que questiona a racionalidade económica de criação de empresas com morte anunciada.

Na prática, sustentam não haver uma reestruturação empresarial, mas sim uma venda de ativos, e o objetivo seria o de enquadrar o negócio nos artigos do estatuto dos benefícios fiscais e do Código do IRC e não para fugir ao pagamento de impostos. A reestruturação de empresas, como é uma cisão ou fusão, está isenta de imposto de selo e de IRC quando é feita em nome da simplificação e racionalização económica dentro de um grupo.

A criação de sociedades para servirem de veículos de transmissão, sem atividade económica, para depois serem dissolvidas, é um dos argumentos para sustentar a tese de construção artificial e aparente. "Há um negócio real e há um negócio aparente", diz Óscar Afonso que questiona a racionalidade económica de criação de empresas com a morte anunciada.

São ainda suscitadas questões relativas ao IMI e ao IMT. Os bens de domínio público estão isentos do pagamento destes impostos e as barragens envolvem a concessão de domínio público hídrico. No entanto, há quem contrarie esta leitura com o argumento de que as construções — o paredão — e equipamentos colocados pela EDP são do domínio privado e até estão no balanço da empresa até a concessão reverter para o Estado, devendo por isso pagar IMI e IMT no caso de transmissão.

Outra dúvida aponta para o facto de o Estado ter autorizado a EDP a transmitir a concessão das barragens a uma empresa que ainda não existia (criada pela própria EDP), quando a lei estabelece que o adquirente deve ter habilitações técnicas e financeiras para efetuar a exploração.

Por outro lado, o Estado não exerceu o direito de preferência — nem há indicação de que tenha sequer avaliado os benefícios dessa opção —  que tinha sobre os ativos concessionados, o que lhe permitiria colocar as barragens em leilão e potencialmente obter um ganho adicional face aos 2,2 mil milhões de euros que a Engie ofereceu à EDP e, que neste cenário, teriam de ser sempre entregues à EDP.

Quais são os argumentos da EDP?

A elétrica tem procurado desvalorizar a polémica, mas no dia da apresentação do novo plano estratégico, o presidente executivo não teve como evitar o tema. Defendeu que a operação é standard e normal neste tipo de transação e já foi feita pela empresa em outros negócios, em Portugal e fora. E, para Miguel Stilwell de Andrade, não haveria outra forma de a fazer. Destaca a complexidade da operação, a qual envolve a transmissão de cerca de mil vínculos, entre contratos de trabalho, fornecedores, garantias bancárias. A cisão de todos os ativos e passivos que lhe estão associados seria a única forma de garantir “a transmissão e continuidade da operação”, evitando disrupções. “É a única forma correta tecnicamente de fazer estas transações” e está dentro do quadro previsto na lei, afirmou.

EDP não revela se e quanto pagou de impostos na venda de barragens. Fisco “terá a oportunidade de analisar operação”

O gestor recusou responder se houve lugar a pagamento de impostos e que impostos, tendo apenas sublinhado que a EDP sempre pagou todos os impostos devidos — mesmo quando os contestava judicialmente, como foi o caso da CESE (contribuição extraordinária sobre o setor energético). E mostrou-se confiante na segurança jurídica e fiscal da operação. A EDP não fez um pedido de informação vinculativa à Autoridade Tributária e Aduaneira, mas o Fisco terá a “oportunidade de analisar a transação nos termos da lei e no tempo apropriado”.

O gestor destaca a complexidade da operação a qual envolve a transmissão de cerca de mil vínculos, entre contratos de trabalho, fornecedores, garantias bancárias. A cisão de todos os ativos e passivos que lhe estão associados é "único que garante a transmissão e continuidade da operação", evitando disrupções. "É a única forma correta tecnicamente de fazer estas transações."
Explicações de Miguel Stilwell de Andrade sobre a estrutura do negócio

Stilwell revelou ainda que a EDP encaixou uma mais-valia contabilítistica de 200 milhões de euros com a venda das seis barragens, o que poder ser suscetível de pagamento de IRC.

Uma consulta pelo setor empresarial confirma que esta estrutura de venda de ativos é relativamente comum em várias transações. Por exemplo, quando um imóvel é vendido muitas vezes é criada uma empresa para o deter e a alienação é concretizada através das mudança de propriedade das ações da sociedade de controlo.

O que diz o Governo?

No final de dezembro e a partir de Miranda do Douro, após reunir com o grupo de trabalho criado com as autarquias, o ministro Matos Fernandes arrefeceu as expetativas quando à receita fiscal ao dizer que, sendo um negócio societário, não haveria lugar ao pagamento de vários impostos. E apontou o dedo aos que criaram expetativas erradas. “Ou estavam enganados ou de facto tentaram enganar alguém”.

Venda das barragens é negócio “societário” através de concessão que é do Estado, diz ministro do Ambiente

Mas remeteu uma eventual cobrança de imposto de selo para janeiro, já que o prazo para declarar e liquidar este imposto vai até ao dia 20 de cada mês.

Em janeiro, e ainda sem os documentos que mostram os contornos do negócio, o ministro do Ambiente e o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais foram chamados ao Parlamento. Matos Fernandes afirmou que estava em causa a transmissão de títulos de aproveitamentos hidroelétricos, ou seja, de utilização de bens do domínio público, e das licenças de produção de energia. Competia à Agência Portuguesa do Ambiente, à Direção-Geral de Energia e Geologia e às REN – Redes Elétricas Nacionais avaliarem a operação. Sublinhou que todas as entidades deram o seu parecer favorável. Já no final da audição, o ministro reconheceu que não conhecia os contratos. “Não conheço contrato nenhum, não vi contrato nenhum”, disse, remetendo o processo de autorização para os serviços administrativos.

Numa das respostas enviadas às redações sobre o tema, o Ministério do Ambiente detalha os requisitos que foram avaliados pelos serviços sob sua tutela e realça: “A Agência Portuguesa do Ambiente pronunciou-se sobre os aspetos técnicos a que estava obrigada no que respeita à transmissão dos títulos de utilização de recursos hídricos. Não está – nem pode estar – aquela agência obrigada a outras considerações sobre um negócio que envolve privados, nem compete àquela agência pronunciar-se sobre a sua natureza fiscal.”

Eventual imposto pela venda de barragens da EDP irá “com certeza” para municípios

Ainda assim, deixou a nota de que se houver imposto ele será transferido para os municípios, como determina a alteração orçamental aprovada pela oposição.

António Mendonça Mendes admite inspeção do Fisco à operação

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais explicou que o imposto de Selo é auto-liquidado pelos contribuintes. Ou seja, só depois do negócio concretizado e do imposto pago (ou não) é que a Autoridade Tributária se poderá pronunciar sobre a adequação fiscal da opção. E, se entender avançar com uma inspeção, neste caso estará em causa a unidade dos grandes contribuintes. Sem o chegar a afirmar — porque essa é uma competência do Fisco e não do Ministério das Finanças — António Mendonça Mendes tornou evidente que é certa a realização de uma inspeção a esta operação. E aí a EDP terá de demonstrar que a forma como montou a operação tem racionalidade económica, para além do mero ganho fiscal.

Desta inspeção — que só irá iniciar-se depois de a administração fiscal ter na sua posse todos os elementos (incluindo a liquidação fiscal do ano de 2020), provavelmente a meio do ano  — pode resultar a aplicação da cláusula de abuso fiscal e a reclamação e liquidação a posteriori do imposto devido, mas isso já implica entrar em contencioso. Mais um a juntar aos conflitos milionários que opõem a EDP ao Estado.

O que respondem os que atacam o negócio?

Quer António Mendonça Mendes, quer o ministro do Ambiente afastaram o entendimento de que o negócio devia também pagar IMI ou IMT, com o argumento de que as barragens, devido ao estatuto de utilidade pública, são, em termos tributários, equiparadas a património do Estado. Esta certeza é contrariada por mais um antigo dirigente do fisco, Manuel Cecílio num artigo de opinião publicado no Eco.

Mariana Mortágua tem sido a principal voz das suspeitas sobre fuga aos impostos nesta operação

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

A redução da intervenção do Estado na aprovação do negócio à análise por parte dos serviços, sem intervenção política, é contestada pela deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua.  Se cabe aos serviços administrativos do Estado — neste caso, a Agência Portuguesa do Ambiente e a DGEG — analisar os requisitos técnicos e de ordem financeira e ambiental exigidos numa concessão, isso são apenas as condições mínimas, afirmou na quarta-feira da semana passada. O Estado pode e deve ir mais longe na sua análise. Ou seja, a decisão não é apenas administrativa e tem também um enquadramento político, em nome da salvaguarda do interesse público e estando em causa bens de domínio público. E neste caso deveria ter envolvido as Finanças, até por causa do direito de preferência que o Estado tinha nesta venda.

A história deste negócio dá alguma força a esta argumentação. Quando foi anunciado o acordo para a venda das barragens em dezembro de 2019, uma fonte do Governo citada pelo jornal Público dizia que umas das condições para autorizar o negócio era a de que as novas gestoras tivessem sede em Portugal e pagassem cá os impostos. O que foi garantido. A Engie vai transferir para Miranda do Douro a sede da empresa que irá explorar os ativos, devolvendo à região a receita dos impostos municipais que estavam em Lisboa. Ou seja, esta terá sido uma exigência prévia para a autorização que foi incorporada no negócio e que ultrapassa os tais requisitos mínimos que os serviços administrativos devem verificar.

Bloco quer saber se Governo alterou lei fiscal à medida da EDP e chama Leão ao Parlamento

Outro tema suscitado pelo Bloco de Esquerda prende-se com uma alteração introduzida no Orçamento do Estado de 2020 ao Código dos Benefícios Fiscais que, segundo o partido, poderá beneficiar a pretensão da EDP de isenção do pagamento do Imposto de Selo, levantando suspeitas de leis à medida dos interesses da empresa. O Ministério das Finanças já desmentiu qualquer ligação, mas o Bloco quer chamar o ministro João Leão e Matos Fernandes (outra vez) ao Parlamento.

Quem apoia e o que pede o Movimento Cultural Terras de Miranda?

O Movimento Cultural Terras de Miranda apresentou-se em julho do ano passado com um manifesto onde reivindica justiça social e fiscal, sublinhando que a riqueza económica e financeira gerada pelas barragens era toda apropriada por terceiros, desde a EDP até ao Estado central, que fica com todas receitas fiscais cobradas. Até as  receitas com os impostos municipais cobrados durante anos sobre as barragens do Douro ficavam em Lisboa porque era lá a sede da EDP Produção.

Este movimento tem várias personalidades públicas ligadas à região e com qualificações elevadas, entre as quais um antigos dirigente da Autoridade Tributária e Aduaneira — José Maria Pereira foi subdiretor geral para a Justiça Tributária e demitiu-se em 2015 na sequência do caso da lista VIP de contribuintes — Aníbal Fernandes, engenheiro e que foi presidente do consórcio Eneop de energia eólica, e Óscar Afonso, professor da Faculdade de Economia do Porto e presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude.

Em Novembro, e durante a negociação do Orçamento do Estado para 2021, é aprovada uma proposta do PSD, com votos contra apenas do PS e do PAN, para a criação de um fundo com as receitas fiscais que resultarem da negociação das concessões da exploração das barragens para ser gerido em benefício dos municípios de Alijó, Alfândega da Fé, Carrazeda de Ansiães, Macedo de Cavaleiros, Miranda do Douro, Mirandela, Mogadouro, Murça, Torre de Moncorvo e Vila Flor.

Havia a expetativa de uma receita de 110 milhões de euros em Imposto de Selo, para além de eventuais cobranças de IMI, IMT e IRC que poderiam, de acordo com algumas estimativas feitas, chegar a um total de 300 milhões de euros, indicou ao Observador Óscar Afonso. O economista partilhou com o Observador outras contas: Tendo em conta o período de concessão das barragens e o produto da venda de energia produzida a EDP já retirou benefícios de mais de sete mil milhões de euros. Se essa riqueza fosse dividida pela população, Miranda do Douro teria o 5.º PIB por habitante mais alto do país.

A riqueza criada pelo rio Douro que não fica no Douro

É o grande desequilíbrio entre a riqueza gerada localmente — e por vezes em prejuízo dos locais, como a produção de vinho, que diz ter ficado mais cara —  e o que fica — as barragens praticamente não criam emprego  —  ou o que volta — os impostos municipais devidos ficavam em Lisboa  —  que dá força às reivindicações. A população deve ser compensada, insiste Óscar Afonso. E existem exemplos recentes de como isso foi feito nas barragens construídas já este século e que também fazem parte do negócio: Foz Tua, Baixo Sabor e Feiticeiro.

Os apoiantes deste movimento têm em comum a origem no território de influência das barragens e partilham testemunhos de abandono e desertificação vividos nas últimas décadas. Desde o fecho de equipamentos públicos, perda de empregos e fuga dos jovens para cidades, que conduzem a uma queda acentuada da população, num ciclo vicioso quase impossível de quebrar.

Um dos mirandeses recorda que quando as três barragens foram construídas — Picote, Bemposta e Miranda — nos anos 50, durante o Estado Novo, a região teve direito a compensações que passaram pela construção de um hospital e uma escola em Miranda do Douro. Com a passagem da hidrolétrica para o Estado e para a EDP pública essas compensações desapareceram e já com Manuel Pinho, em 2007, a concessão da EDP foi prolongada, em troca de um valor muito inferior aos mais de 2 mil milhões de euros que agora a empresa vai encaixar.

Entre os subscritores originais do manifesto, que está também disponível em mirandês, estão várias associações locais: ALCM – Associação da Língua e Cultura Mirandesas Associação Cultural e Recreativa de Ifanes Associação Cultural e Recreativa de Malhadas – TODAS Frauga – Associação para o Desenvolvimento Integrado de Picote Galandum Galundaina – Associação Cultural La Çaramontaina – Associação Cultural Lérias Associação Cultural MasChocalheiro – Associação de Bemposta Pauliteiros de Fonte de Aldeia.

O Movimento foi recebido pelo Governo e pelo Presidente da República e tem tido contactos com os grupos parlamentares. O Bloco de Esquerda e o PSD são os partidos que até agora mais eco têm dado às suspeitas e preocupações suscitadas pelo Movimento relativamente aos contornos fiscais do negócio e ao envolvimento e/ou conhecimento prévio que o Executivo teria do “esquema” que o concretizou o os efeitos que teria na (não) cobrança de impostos. O Movimento entregou também uma carta aberta à Procuradoria Geral da República a pedir uma audiência para explicar o processo e aguarda o seu agendamento.

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