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Enviada especial ao Reino Unido
John-Paul Ennis estava nos estúdios da BBC a acompanhar a noite eleitoral do referendo pela saída da União Europeia (UE). À altura com apenas 19 anos, o jovem do bairro londrino multicultural de Brixton tinha sido selecionado para o projeto BBC Generation, da cadeia de televisão pública, que escolheu jovens britânicos para falarem sobre o referendo. À medida que a noite avançava e os resultados se iam tornando mais claros, John não queria acreditar: “Não conseguia conceber que o Leave pudesse ganhar. Comecei a ter uma sensação horrível, a imaginar o que poderia acontecer daí para a frente. Todos os cenários eram negros.”
Agora, mais de dois anos depois do referendo, John diz ao Observador ter compreendido que “vivia numa bolha de Londres e numa bolha nas redes sociais”. O país que conhecia, entende agora, não era igual ao resto do Reino Unido. Mas levado a recordar-se sobre aquela noite, John não consegue deixar de fechar os olhos e admitir: “Foi muito, muito negro.”
A reação não surpreende, de todo, a psicóloga Susie Orbach. “O que é que significa perceber que o nosso país não é o que achávamos que era?” A interrogação é lançada pela própria ao Observador, quando questionada sobre o impacto psicológico que o Brexit está a ter nos seus pacientes. Clínica com mais de 40 anos de experiência, em janeiro escreveu para o jornal Guardian, onde é colunista, sobre os efeitos que o Brexit estava a ter na saúde mental dos britânicos que auxilia. “Ao início era um tema muito presente nas consultas. Depois passou a ser uma coisa mais circunstancial. No início de uma sessão comentavam ‘já viu a última que eles fizeram?’”, conta ao Observador.
O impacto psicológico do referendo: Remoaners ou legitimamente afetados?
A psicóloga não tem dúvidas de que para os seus pacientes, habitantes de Londres que votaram sobretudo Remain, o resultado do referendo teve um efeito semelhante ao de um trauma. “A resposta foi igual. Quando há um trauma, entra-se num padrão de repetição. E aqui foi igual: ‘Como é que eles foram capazes? Por que é que temos de sair?’, perguntavam-se as pessoas. Tinham aquele sentimento semelhante ao de estarem num pesadelo e quererem que acabe depressa. Tudo isso é consiste com um comportamento traumático.”
O impacto do Brexit na saúde mental dos britânicos já motivou vários artigos de jornal e levou instituições como a própria Confederação do NHS, que reúne vários organismos do Serviço Nacional de Saúde britânico, a discutir a questão. “Embora seja impossível concluir neste momento se o Brexit terá um impacto na procura dos serviços de saúde mental entre parte da população, é preciso entender que essa preocupação existe”, declarou a Confederação. “Um editorial de 2016 do British Journal of Psychiatry destacou que o debate público a propósito do referendo sobre a UE revelou elementos de intolerância e relembrou aos leitores que está provado que as experiências de discriminação no Reino Unido estão muitas vezes associadas a problemas mentais.”
Para a psicóloga Susie, não há dúvida de que o clima social está afetado pelo impacto do referendo: “Há raiva, há combatividade, há desespero. E há muita indignação, as pessoas sentem-se zangadas. É uma atmosfera muito tensa”, afirma a clínica. “Costumávamos ter uma sociedade civil e agora temos uma sociedade incivilizada”, diz, destacando como há famílias até que evitam tocar no assunto por terem pontos de vista diferentes.
Não é o caso de John. Nascido e criado em Brixton como a sua mãe, a sua família é londrina de gema. O avô, contudo, votou Leave, o que não impediu que os dois debatessem o assunto. “Ele é daquela geração da II Guerra Mundial que ainda vê a Grã-Bretanha como grandiosa. Enquanto que nós, jovens, vemo-la apenas como um país que tem uma grande economia e História, mas que é um país como os outros e que precisa de estar ligada aos outros.”
John, contudo, não é um Remainer típico. Na sequência do referendo, ajudou a fundar o grupo Undivided, que tenta garantir que seja conseguido um acordo para o Brexit que tenha em conta as preocupações dos mais jovens. “Não quero ser um Remoaner, como eles nos chamam”, diz, referindo-se ao termo utilizado por alguns Leavers para classificar os Remainers descontentes com o resultado — “ to moan” é um verbo que significa “lamentar”. “Percebi que havia toda esta separação entre Londres e o resto do país e que estávamos completamente desligados dele”, afirma o jovem de 22 anos. “Quando falo com outros jovens que vivem no resto do país, para eles era óbvio que o Leave ia ganhar. As pessoas sentiam que não eram ouvidas pelos políticos e o voto serviu como chamada de atenção.”
Longe de Londres, ainda é possível passar ao lado do Brexit. Nigel e Marta que o digam
Se muitos Remainers se sentem profundamente afetados pelo resultado do referendo, do lado dos Leavers há quem esteja simplesmente feliz e relaxado com o que aconteceu. É o caso de Nigel Stephenson e da sua mulher portuguesa, Marta César. “Não há qualquer impacto do Brexit nas nossas vidas”, começam por assegurar ao Observador, depois de abrirem as portas de sua casa em Cheltenham, cidade vizinha de Gloucester onde vive parte de uma classe média alta que trabalha em Londres, mas procura o descanso e a paz do campo a hora e meia da grande cidade.
Cheltenham é uma vila pacata, onde há pouco trânsito, mas onde há também laivos de modernidade, como um restaurante que chegou a ter duas estrelas Michelin. “Somos uns privilegiados”, reconhece Marta, sobre a comunidade onde moram. Esta portuguesa sente-se muito grata ao país onde chegou há 21 anos, para trabalhar numa fábrica de cogumelos, e onde hoje tem uma vida confortável. “À custa de muito esforço, é claro”, acrescenta. Marta estudou e trabalhou ao mesmo tempo durante vários anos, acumulando poupanças e tirando uma licenciatura e depois um mestrado. Hoje trabalha como especialista em lei alimentar em Londres e vive com Nigel e a filha de dois anos em Cheltenham. “Não sei nada de política, mas sei isto: a Grã-Bretanha sempre foi um grande país e vai continuar a ser”, sentencia.
Por ter apenas nacionalidade portuguesa, Marta não votou no referendo. Já o marido, Nigel, não hesitou e escolheu Leave. O seu perfil, contudo, está longe de ser o da caricatura típica do eleitor que optou pela saída. As suas motivações também: “Votei Sair porque esta não é uma questão política, é sociológica”, diz ao Observador, sentado na mesa da sala da sua casa, perante duas chávenas de café forte e scones com doce que Marta coloca na mesa. “A UE enfraqueceu a voz das pessoas e isso criou muita tensão”, resume. A burocracia de Bruxelas, o desfasamento entre Norte e Sul, a ideia de uma “Europa a duas velocidades”, tudo isso incomoda profundamente Nigel, que não consegue rever-se na Europa atual. “Se não houvesse problemas sociais na UE, não teríamos os coletes amarelos em França nem milhões de desempregados jovens na Grécia”, afirma, para justificar a sua decisão.
Enquanto muitos eleitores que votaram Leave se dizem zangados por o Brexit não ter acontecido a 29 de março, Nigel garante “não sentir qualquer ira” neste momento. “Se demorar cinco ou sete anos a termos o Brexit, que seja. O que é preciso é que o processo seja bem feito”, diz. Mas Nigel, leitor ávido de jornais de todo o tipo e britânico fascinado com livros de História, não é um Leaver comum. Perante os avanços e recuos no Parlamento, está longe de se sentir indignado ou revoltado como todos os outros britânicos que o Observador ouviu nos últimos dias: “É fantástico, é uma democracia madura a funciona”, declara, fascinado com “o processo mais interessante da política britânica desde o século XIX”. “Para aqueles, como eu, que se focam mais no processo do que nos sentimentos, aquilo é uma coisa boa. Agora, claro que não é simples. Mas isto não é um desenho animado, não pode ser simples.”
“Mas tu não és como a maioria das pessoas, Nigel”, diz a mulher Marta, do outro lado da mesa, sorrindo, enquanto barra mais doce num scone.
O silêncio como solução: “Acho que até é uma coisa madura, evitar este confronto”
“Acho que o Nigel às vezes não tem noção de que não é o eleitor típico”, diria mais tarde a portuguesa ao Observador, no caminho de regresso à estação ferroviária, quando o marido já partiu para um treino de rugby. “As pessoas estão muito fartas, muito cansadas. Brexit, Brexit, Brexit a toda a hora, na televisão, nos jornais… Só querem que isto acabe”, diz, dando como exemplo os donos das pequenas e médias empresas alimentares com quem trabalha diariamente. “O que vier depois, logo lidaremos com isso. O Reino Unido é um grande país, vai adaptar-se. Pode ser difícil, mas será só um período. Se este fosse um país como a Grécia ou Portugal, eu preocupar-me-ia. Mas não é.”
Embora não se sinta afetado no seu dia-a-dia pelo Brexit, Nigel reconhece, contudo, que há um efeito visível em Cheltenham e nas restantes vilas das Cotswolds, a região de grande beleza natural que se define como “tipicamente inglesa”: “Os pubs estão vazios”, diz. “Sabe como é, o álcool leva a mais conversa e as pessoas não querem falar sobre o assunto, evitam-no.” Também no seu local de trabalho, uma grande empresa norte-americana de eletrónica, não se pode discutir política devido às regras internas da empresa. “Mas eu acho que até é uma coisa madura, evitar este confronto. Porque pode ter impacto, até nas nossas amizades tem”, confessa. “Tu foste um dos poucos no nosso grupo de amigos que votou Leave…”, acrescenta a mulher Marta. “Não sei se fui dos poucos que votou Leave”, responde-lhe o marido. “Fui um dos poucos que admitiu que votou Leave, isso sim.”
A generalização de que todos os Leavers são anti-imigração e até racistas não se aplica a Nigel e à mulher, ela própria uma imigrante, explicam. “Eu não votei para Sair por ser contra a imigração ou a livre circulação de pessoas. Sempre defendi a livre circulação para questões de trabalho, por exemplo, e não só na UE, no mundo todo”, assegura. Em causa, explica, está apenas a exigência de alguns limites. E o tal sentimento “sociológico e não político” de descrença na UE: “O meu avô trabalhava numa mina de carvão. A minha família entende o que é viver fora das bolhas de Londres, Edinburgh, Glasgow”, diz Nigel. “Vejo como as vozes das pessoas foram sendo enfraquecidas ao longo do tempo.”
Questionado sobre se sente incomodado quando ouve alguém afirmar que os Leavers são todos racistas, Nigel pára um pouco para pensar. Por fim, responde: “Em todos os sistemas políticos vai sempre haver gente mais informada do que outra, isso é inevitável”, concede. “Mas para mim esses insultos são só palavras. A longo-prazo, vão ser esquecidos.” Em Cheltenham, na casa de Stephenson e César, o otimismo prevalece. A vida vai decorrendo como é habitual, longe dos insultos dos Remainers e dos gritos dos Leavers zangados. E a filha do casal, de apenas dois anos, vai continuar a cantar distraidamente no carro “Mary had a little lamb, little lamb, little lamb”, enquanto vê as ovelhas do lado de fora da janela. Ainda não faz ideia do que o palavrão Brexit significa.
Britânicos presos num limbo não conseguem ultrapassar o “trauma”. Mas a recuperação é possível
Se Nigel é uma exceção por ser um Leaver tão moderado, John também o é. “Ao início, sempre que conhecia alguém que votou Leave pensava ‘És um idiota ou quê? Votaste isso porquê?’”, confessa, as bochechas sardentas ligeiramente coradas de vergonha. “Mas já não. Agora tento entender porque é que o fizeram. Agora compreendo que muito disto depende do sítio onde se cresceu e daquilo que se ouve. No Facebook só vemos no nosso feed aquilo em que fizemos ‘Gosto’, não é?”
Philip Corr, professor de psicologia na Universidade de Londres, explicou ao Politico como o referendo criou uma lógica entre muitos Remainers de amor pelos que votaram Ficar e ódio pelos que votaram Sair: “A dissonância cognitiva levou a que tentassem resolver isto assumindo que todos no campo do Leave são estúpidos, mal informados e têm más intenções. Há uma noção subjacente de que deviam ter ouvido ‘os melhores’, como se fossem crianças de escola mal comportadas que deviam ter ‘prestado mais atenção nas aulas’.”
A saída deste entricheiramento, acredita outro clínico, Jay Watts, passa por oferecer uma alternativa ao campo do Leave, mas sem paternalismo: “É preciso criar uma alternativa aos fragmentos daquilo que achamos que perdemos”, afirmou ao Independent. “Mas fazer isto sem ter atenção àquilo que o outro lado também perdeu e às ansiedades que também sentem, seria um exemplo de repetição em vez de renovação.”
O jovem John acredita que está a fazê-lo: “Não posso odiar as pessoas por terem votado Leave”, sentencia. “E acho mesmo que agora devíamos sair. Caso contrário vai haver tanta gente desiludida, tanta gente que ainda vai sentir mais que não foi ouvida… Pode levar a instabilidade social, a um crescimento tremendo da extrema-direita ou até a que as pessoas deixem de votar.” E a maior parte dos amigos de John concorda com isso? “Não, eles percebem o meu ponto de vista, mas não concordam. Querem um segundo referendo, até porque muitos deles ainda não tinham 18 anos quando aconteceu o outro e não puderam votar.”
Tanto Nigel como John são informados, têm opiniões sobre os atores políticos conhecidos (e até os mais desconhecidos do grande público) e conseguem aproximar-se do centro. Mas são exceções à regra. E, enquanto Nigel vive longe das tensões subjacentes ao Brexit, John vive mergulhado nelas. “Tenho-me tentado afastar, porque acabo por ter conversas que andam sempre em círculos e não vão dar a nada. É frustrante”, confessa, explicando que às vezes opta por simplesmente ler um livro ou jogar Playstation. “Mas é difícil desligar totalmente. Por exemplo, vou ao Instagram para ver um vídeo com piada e… É sobre a Theresa May”, conta, entre risos. “Até ao andar na rua, em Brixton há sempre um cartaz em qualquer lado a pedir um segundo referendo. Não há escapatória possível.”
A normalidade que tinha lentamente regressado foi de novo interrompida com a aproximação do dia 29 de março e o recente adiamento. A marcha pelo Remain, a petição a pedir um novo referendo e as manifestações do Leave Means Leave voltaram a acicatar os ânimos dos britânicos e a remover a crosta que se tinha começado a formar. “As pessoas dizem que estão zangadas porque ainda só passaram alguns dias do 29 de março e nós agora vivemos num mundo de 50 caracteres, um mundo das redes sociais, que é ótimo, mas que quer tudo imediatamente e isso às vezes não é bom”, afirma Nigel sobre a impaciência de alguns.
A perspetiva de mais tensão e agressividade é, no entanto, real — sobretudo à medida que se aproxima o dia da saída, mas não se concretiza. Os avanços e recuos em Westminster provocam confusão, caos e angústia para muitos, dos dois lados da barricada. Mas há quem, como Nigel, acredite que, aconteça o que acontecer, será passageiro: “Este país no tempo da Thatcher teve motins, carros a arder, polícia atacada. E na altura nem havia redes sociais para acicatar as coisas e elas aconteceram à mesma. E o que é se passou depois? A sociedade recuperou. Passámos por cima disso.”
A muitos quilómetros de distância, no centro do multicultural bairro de Brixton, John também não tem dúvidas de que será possível o Reino Unido ultrapassar o Brexit. “Nós jovens é que vamos ter de lidar mais com as consequências disto, mas adaptamo-nos bem à mudança. Queremos é poder começar a fazê-lo e com todo este atraso… Não nos deixam.” “É como uma ferida, está a ver?”, diz, os olhos iluminando-se como quem pensou numa boa imagem. “Não conseguimos sarar se continuamos ali a remexer nela.”
A psicóloga Susie Orbach concorda. “É óbvio que as pessoas vão arranjar forma de aprender a viver com isto.” Afinal, a resiliência também é característica humana e ao humanos não falta capacidade de superação e adaptação. O problema é que, até lá, os britânicos estão presos num limbo onde são forçados a olhar-se ao espelho e a concentrar-se apenas naquilo que os divide. “Tenho a certeza que, quando isto chegar ao fim, vai libertar-se uma grande energia. Mas é como em qualquer processo psicológico: só podemos começar a reparar-nos quando tudo acaba. E ainda não estamos aí.”