Aumentar a literacia em saúde mental, combater preconceitos, fornecer mais informação e conhecimento sobre as doenças mentais, detetar sintomas e perceber como ajudar. São estas as bases do projeto Porta Aberta à Saúde Mental da Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade Local de Saúde de São João, no Porto. O projeto abrange as zonas do Porto, Maia e Valongo e, a cada ano letivo, uma equipa de três terapeutas ocupacionais e uma psicóloga anda pelas escolas destes concelhos com uma história, uma caixa azul, números e cartazes, temas e atividades. E um pássaro diferente de todos os outros para abordar um assunto sério em contexto escolar.
O projeto, que tem dois programas distintos para turmas do quarto e do nono ano, surgiu em 2011 e já chegou a 2402 estudantes de trinta escolas dos três municípios. Inicialmente focou-se apenas no nono ano, mas em 2019 passou também a abranger o quarto ano de escolaridade no concelho da Maia. Neste ano letivo, envolverá 334 alunos dos dois ciclos de 12 escolas da Maia e Valongo.
O programa do quarto ano compreende dois momentos em dois dias, não necessariamente consecutivos. No primeiro é feita a leitura encenada da história Edmar, o Passarinho Albino, de Manuela Mota Ribeiro, que reflete sobre questões de liderança, estigma, fatores protetores de doença mental, empatia e atenção. O livro fala da importância de perceber o outro e aceitar a diferença. Depois do conto, cada aluno faz um desenho inspirado na história. No segundo momento, são feitas dinâmicas de grupo com recursos a esses desenhos e a conteúdos explorados na narrativa.
É precisamente o que acontece numa turma do quarto ano da EB1 do Paço, na Maia. Os alunos têm os desenhos prontos depois de terem escutado a história do pássaro albino. É a primeira hora da manhã, a equipa do projeto chega com alguns materiais nas mãos e com o Edmar que ganha vida num peluche, de penas brancas, patas e bico amarelos, óculos escuros. “O Edmar está muito curioso para saber o que fizeram”, diz João Viana à turma. E, logo a seguir, o terapeuta ocupacional pergunta: “Como se sentem hoje?” As respostas são dadas de 1 a 10, como se no chão da sala estivesse uma régua gigante com todos os números, com um terapeuta numa extremidade a representar o zero e outro na oposta a representar o dez.
Os alunos colocam-se onde se sentem melhor. Luana, de oito anos, fica ali num três, acordou às seis da manhã com dores de barriga, não dormiu mais. “O que podemos fazer?”, pergunta a terapeuta Marta Monteiro. Dizer uma piada, responde alguém. Pode ser, boa ideia. Contam-se algumas graças, os alunos riem-se, juntam-se à volta de Luana para um abraço em conjunto. Luana começa a sentir-se melhor e sobe uns números na escala até ao nove.
É hora de mostrar os desenhos num desfile dançante com música. Como cada um quiser. Depois sentam-se todos em roda no chão da sala. João Viana quer saber o que o Edmar lhes ensinou. A ouvir, a suportar comentários ofensivos, a dançar, a voar, a olhar nos olhos quando se está a falar, vão dizendo os alunos. Agora é tempo de elogiar os colegas, de abrir uma caixa azul, tirar um número que corresponde a cada aluno e dizer coisas bonitas olhos nos olhos. Da inteligência à amizade, da simpatia à beleza. Há um pouco de tudo. Por último, os elogios à professora Cristina Gonçalves: “a melhor professora do mundo”, “simpática”, “muito fixe”, “muito bonita e boa a ensinar”, “inteligente”. A seguir é a vez de a professora elogiar os seus alunos, um por um. No fim, abraço de grupo.
Ser feliz, não desistir, aceitar a diferença
Desenhos nas mãos, mais um momento. “De acordo com os desenhos e o que pensaram sobre a história, vão escolher um dos cartazes”, indica Daniela Santos, psicóloga da equipa. Há quatro cartazes nas mãos da equipa com quatro frases: “Não desistir”, “Ajudar os outros”, “Ser feliz” “Aceitar a diferença.” Cada aluno vai para junto de um cartaz e explica a decisão aos outros.
Bernardo, de nove anos, é o porta-voz escolhido pela turma para apresentar as razões da opção. “Estive indeciso entre ajudar e ser feliz, mas se ajudarmos uma pessoa ela fica feliz e nós também. As diferenças são iguais, todo o mundo é igual.” A atividade termina com um “grito de guerra” todos juntos, em uníssono, a dizer bem alto o que está escrito nos quatro cartazes.
Luana já se sente melhor e mostra o desenho que fez. É o Edmar com a sua namorada, não sabe o nome dela. Gostou da atividade. Bernardo admite que aprendeu várias coisas com a história do pássaro albino. “Aprendi que mesmo sendo diferente, pode ser feliz, que podemos fazer os outros ficarem felizes.” Há dias, ajudou um amigo, lembra-se. “Tinham gritado com o miúdo no futebol, ele ficou triste, fui falar com ele.” Aconteceu no recreio da escola. E sabes o que é saúde mental? “Saúde mental é a saúde do cérebro”, responde.
Para a professora da turma, Cristina Gonçalves, o programa é oportuno por várias razões. Mas, acima de tudo, para que a doença mental deixe de ser um assunto tabu, para que se fale de aceitação e não de discriminação. “É extremamente importante este projeto, eles estão envolvidos, não é maçador, é apelativo, uma maneira mais fácil de passar a mensagem. Nestas idades, é fundamental perceber a diferença e aceitar, desde muito novos, esta realidade. E perceberem como se sentem, como estão hoje, para poderem usar pequenas estratégias para se autorregularem. Com coisas tão simples como respirar.”
Noutra escola do concelho da Maia, a EB1 de Parada, há mais uma turma à espera. Esta junta alunos do terceiro e do quarto ano. Não há problema, adapta-se a estratégia. Pedro dá um cromo de um jogador de futebol ao colega Heitor que está a colocar gelo no braço depois de um contratempo no recreio. Aplica-se o que foi feito antes na escola do Paço, com ligeiros ajustes.
O terapeuta João Viana pergunta quais as pessoas que ajudavam o Edmar e ouvem-se respostas como os pais, os amigos, os professores, os auxiliares. Os alunos desfilam para mostrar os desenhos, segue-se a roda de elogios, a escolha por um dos cartazes, os gritos de guerra. Soraia Bessa, de nove anos, desenhou o Edmar. “O Edmar é albino, à beira dele é possível dizer o que se pensa, coisas como a amizade”, diz. Escolheu o cartaz “Aceitar a diferença”. Paloma também e explica aos colegas a razão da sua escolha. “Não é por ter uma diferença que vai ser mais fraco.”
“Já chamaste maluco a alguém?”
O programa dirigido aos estudantes do nono ano compreende três momentos. No primeiro, é apresentado o projeto e lançado um concurso de histórias, em que cada turma deve criar uma narrativa ficcional sobre a doença mental, saúde mental ou estigma. A candidatura pode ser individual ou coletiva. As histórias são entregues a um júri, composto por profissionais e utentes do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de São João, que elege a vencedora.
No segundo momento é apresentado um vídeo e são feitos alguns jogos sobre os conteúdos desse filme, ou seja, mitos e factos sobre a doença mental, dados epidemiológicos, profissionais que trabalham nessa área, personalidades com experiência de doença mental, casos de sucesso, entre outros conteúdos. “Já chamaste maluco a alguém?” ou #Sabes o que faz um psiquiatra?” são algumas das perguntas lançadas a partir das quais se pensa, se debate e se partilham opiniões.
No terceiro momento, a turma vencedora do concurso de histórias visita o serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do São João, contacta com profissionais de saúde e doentes mentais, para esclarecer dúvidas e conhecer melhor a dinâmica de uma estrutura deste género de um hospital central. Há uns anos, a história vencedora ganhava corpo pelo Grupo de Teatro do Serviço de Psiquiatria do São João, que encenava o texto e ia à escola da turma apresentar o resultado. Nas últimas edições, é o grupo de rádio do mesmo serviço que faz um podcast com a história, entrevista os alunos autores, conversam sobre doença mental, contam-se experiências. Voltar à representação teatral é uma possibilidade.
“O principal foco do projeto é a redução do estigma em relação à doença mental”, diz o terapeuta ocupacional João Viana. No quarto ano, a abordagem é mais leve, passa por dar ferramentas para lidar com a diferença, absorver estratégias para que se sintam bem. A escolha do nono ano, na transição para o secundário, não é por acaso. “Centramo-nos nesta faixa etária por vários motivos: é altura do aparecimento de algumas doenças, de consumos, da formação da personalidade, de experiência com doenças mentais. Têm essas noções mais desenvolvidas e estão a criar a sua visão global sobre estas questões.” Neste ano de escolaridade, o programa tem “uma componente mais educativa, mais centrada em certas experiências e doenças como a esquizofrenia, demências, depressões”.
Há perguntas que são feitas e aspetos a esclarecer. Sentir stress é normal? Há questões colocadas pelos estudantes. “Explicamos que há sintomas que não são propriamente a doença, também é normal ter experiências menos positivas e sentimentos mais negativos”, diz João Viana. Daniela Santos, psicóloga, também acompanha de perto o que acontece nas salas de aulas durante o programa. “Identificamos aspetos da saúde mental, coisas que são úteis para as suas vidas, que estar triste não significa que se esteja deprimido, que também é importante ouvir as histórias das outras pessoas.”
O impacto do projeto não é propriamente direto, mas há situações em que se percebe o que fica, o que faz pensar, os pensamentos que surgem de si e dos outros, a importância de estar bem, a noção dos protetores de saúde mental, como a amizade, a atenção ao outro, a não discriminação das diferenças, o estar bem. “Por vezes há casos em que os alunos se baseiam nas suas próprias histórias”, diz João Viana. “Temos, muitas vezes, professores e alunos que nos perguntam como podem ajudar ou pedir uma consulta para pessoas que conhecem.”
Replicar o projeto é simples, os programas estão desenhados, os materiais estão feitos, sabe-se como a equipa deve ser constituída. Tudo preparado para que seja aplicado noutras zonas do país, noutros contextos escolares, com outras equipas. João Viana lembra, a propósito, que essa questão já foi colocada em congressos de serviços de psiquiatria. Inicialmente, quando o projeto arrancou, os contactos eram feitos diretamente com as escolas, agora são as câmaras municipais, em articulação com os programas e equipas de Saúde Escolar, que agilizam todo o processo, como acontece na Maia, onde o projeto faz parte do Programa de Saúde Escolar e está bastante difundido.
No ano letivo passado, o texto vencedor no concurso de histórias foi o do 9.º I da Escola Secundária de Águas Santas, na Maia. Os alunos escreveram um poema sobre saúde mental.
A posse de um sorriso é um cobertor para o que sinto
Que, por entre a multidão, me faz passar despercebido
Um cobertor às vezes tão comprido
Que até de mim permanece escondido.
Não consigo respirar
Algo me está a pisar
O meu peito quase a rebentar
Mas porquê?
É impossível decifrar.
A ansiedade é como certas doenças
Que infeta as pessoas por crenças
Esta cria muita inquietação
Fazendo pensar que tudo é em vão
Ansiosamente anseio pelo fim
Pelo fim da ansiedade anseio
Pois a ansiedade para mim
É uma parede que impede feito.
Até ao fim do ano letivo Haverá mais histórias e partilhas, sempre com o mesmo intuito: derrubar preconceitos ainda amarrados à doença mental.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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