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ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Uma Nêspera no Cu: "Isto é a ourivesaria da javardice"

Foi um dos podcasts mais populares em Portugal, agora vai ser um musical nos coliseus. Perguntámos a Filipe Melo, Bruno Nogueira e Nuno Markl o que vai acontecer, mas nem eles sabem muito bem.

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Filipe Melo, Bruno Nogueira e Nuno Markl entram numa sala, sentam-se e dão uma entrevista. Errado. Primeiro, porque Nuno Markl chega atrasado. Segundo, porque conversar com estes três não é bem uma entrevista. Cumprem-se alguns requisitos do género: há perguntas, há respostas e há um gravador. Mas qualquer guião previamente definido perde todo o sentido logo após a primeira pergunta, talvez a segunda, no máximo.

O que acontece neste encontro vem do mesmo sítio que criou Uma Nêspera no Cu, o podcast, que em tempos teve apresentações ao vivo e que agora regressa para um musical, em Lisboa e no Porto. Vem tudo da espontaneidade destes humoristas, artistas e o que mais lhes quiserem chamar. O podcast começou porque a brincadeira do “preferias isto ou aquilo” tinha piada na carrinha das digressões do projeto Deixem o Pimba em Paz. Com toda a javardice, escatologia e escape vocabular que se possa imaginar de um grupo de garotos feitos homens que se apanham fora de casa. Se era divertido para eles, porque é que não seria divertido para muitos outros? A diversão tinha por base a naturalidade das conversas, que é a mesma que sustenta o pergunta-resposta que se segue.

O objetivo da entrevista era claro: saber mais sobre este “musical”. Como é que se transforma um podcast como Uma Nêspera no Cu num musical? Vão cantar? Terão uma banda em palco? Quem dança? Eles não responderam. Disseram que ainda não sabiam, que estava tudo ainda a ser preparado. Pode ter sido charme de humorista ou a maior das verdades. Seja como for, para os fãs, os indecisos em comprar bilhete e para os que já o têm, serve como motivador de curiosidades.

A tripla Melo/Nogueira/Markl não revelou muito sobre os espetáculos (que passam pelo Coliseu dos Recreios a 5, 6, 8 e 9 de fevereiro e pelo Coliseu do Porto a 15, 16 e 17 do mesmo mês) mas a conversa fez-se sem constrangimentos, sem pausas e a passar por mais tópicos: o humor em Portugal, os desafios pessoais de cada um, o bullying de Bruno Nogueira, o golden retriever que é Nuno Markl ou o génio de Filipe Melo. O podcast acabou (o especial de Natal feito no final de 2018 foi uma exceção), o musical vem aí e tudo isto segue a filosofia do costume: um enorme e saudável “logo se vê”.

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[o especial de Natal de Uma Nêspera no Cu:]

Como é que isto foi acontecer?
Nuno Markl (NM) – Inicialmente, só o título já nos estava a soar bem. “Uma Nêspera no Cu: o Musical”. Só depois pensámos que possivelmente estávamo-nos a meter num sarilho.

Ainda não está tudo pronto?
Bruno Nogueira (BN)
 – Não, claro que não.
Filipe Melo (FM) – A coisa partiu do título, soa bem, soa a algo que nós gostaríamos de ver. Mesmo em termos de palavras.
NM – E também pelo facto de que quando nós decidimos acabar com a Nêspera, e bem, para voltar deveria ser com um refresh qualquer, algo de novo.

Algum de vocês foi o iluminado e teve a ideia primeiro?
FM
– Não porque nós pensamos em uníssono. Acordamos à mesma hora a meio da noite, por exemplo. Perguntamos uns aos outros “sonhaste com aquilo também?”. E eles confirmam.

Já agora, porque é que acabaram “e ainda bem”? “Ainda bem” porquê?
NM
– Estava a ser muito difícil fazer novos dilemas [que são a base do jogo da Nêspera, algo como “preferias isto ou aquilo”, sendo que “isto” ou “aquilo” nunca são coisas bonitas, higiénicas ou educadas]. Senti que já estava tudo mais ou menos terminado. Foi melhor terminar enquanto estava tudo em alta.
BN – É a diferença que faz perceber quando alguma coisa atinge o pico. E que a partir de certo momento iríamos apenas estar a cumprir. Para um projeto como a Nêspera, em que recebemos cerca de zero euros por podcast, a ideia é manter enquanto nos dá prazer.
NM – E ainda andámos a debater a ideia de fazer uma coisa diferente, durante uns tempos, antes de voltarmos a cair nisto. Nós os três a fazer outra coisa. Mas acabámos por ser puxados para isto outra vez, como se fosse um buraco negro.

A ideia de fazer um musical a partir da ideia do podcast, foi bem recebida? Ou foi preciso arte para vender o conceito?
FM
– Falámos sobre isso e quando reparámos já estava tudo marcado.
NM – E com muitas datas, na realidade.
BN – Falámos primeiro os três, discutimos se a ideia poderia andar para a frente…
FM – Mas isto tem a ver também com os vários estágios do luto. Porque há vários estágios para lidar com isto também. Primeiro foi o entusiasmo, por causa do título. Depois a completa apatia, porque vimos o tempos a passar sem fazer nada. Depois veio o medo. Seguiu-se o terror absoluto. E agora talvez a indiferença. Eu diria que em breve, talvez esta semana, apareça algum entusiasmo. Estou a começar a ficar contente com isto.

"Este é o nosso espectáculo mais próximo de um filme do M. Night Shyamalan. Dos bons, porque o Filipe foi ver agora o 'Glass' e não gostou. Eu faço esta comparação porque com a Nêspera no Cu é difícil revelar o que vai acontecer. Mas podemos assegurar que vai ser espectacular. Eu estou convencido que vai ser assim."
Nuno Markl

Coisas práticas: vocês vão cantar?
BN
– Sabemos lá… portanto, tu querias saber coisas concretas?

Sim.
BN
– Pois…
NM – A realidade é que este é o nosso espetáculo mais próximo de um filme do M. Night Shyamalan. Dos bons, porque o Filipe foi ver agora o “Glass” e não gostou. Eu faço esta comparação porque com a Nêspera no Cu é difícil revelar o que vai acontecer. Mas podemos assegurar que vai ser espetacular. Estou convencido que vai ser assim.

Qual de vocês é que canta pior?
NM
– Sou eu, acho que sou eu. Ainda que à força dos espetáculos da Comercial tenho conseguido afinar, de forma surpreendente. Não quer dizer que cante como um cantor, mas já não canto como uma pessoa horrível no banho.
FM – O Markl tem uma noção de canção muito apurada e o Bruno tem uma capacidade rítmica muito boa, é surpreendente, apercebi-me disso no Deixem o Pimba em Paz. A facilidade rítmica dele está bastante acima do normal.
NM – O Filipe, enfim, é um  génio da música.
FM – Bom, não propriamente… Mas o que é certo é que eu nunca cantei. Já fiz backing vocals mas aí é a gravar, não é no palco.

https://observador.pt/videos/atualidade/quim-barreiros-versao-orquestra-eles-nao-deixam-o-pimba-em-paz/

Mas para quem não sabe muito bem o que vai acontecer vocês estão muito tranquilos.
NM
– Não, não. Por dentro estamos em ebulição.
FM – Há muito trabalho pela frente porque nós somos procrastinadores. Mas há uma coisa que nós sabemos, nós temos uma obrigação para com as pessoas que pagaram bilhete.
BN – Bom, quer dizer… será que temos? Achas que as pessoas estão mesmo à espera de uma coisa espetacular?
NM – A natureza da Nêspera tem um bocado a ver com aquele fenómeno de ter pessoas a olhar para acidentes. As pessoas vão ver o nosso sofrimento a fazer dilemas, a fazer chamadas para pessoas a horas impróprias.
FM – Uma coisa importante de referir é que cada espetáculo é diferente. Um dia pode ser espetacular, outro dia pode ser um fracasso absoluto.

Portanto, os espetáculos não são iguais.
FM
– Não.

Então as pessoas deveriam comprar bilhetes para todos.
FM
– Ora já estás a ver onde é que a gente quer chegar.
NM – Não é essa a questão. É que temos de ser sempre surpreendidos pelos dilemas uns dos outros, nunca podem ser os mesmos. Temos que escrever muitos. Eu ainda tenho uns quantos para escrever.

“As pessoas gostam disto pelo fator risco”

Quanto tempo é preciso para escrever um bom dilema?
BN – As pessoas não vão ter compaixão por nós porque acham que é uma coisa muito primária e infantil, mas a verdade é que isto dá muito trabalho.
NM – Porque quando as pessoas dizem “é só uma javardice”… É claro que há um elemento de javardice, mas isto é a ourivesaria da javardice.

É a filigrana.
NM
– É. Porque nós despendemos mesmo bastante tempo a tentar perceber todos os mecanismos de cada dilema.
BN – E se te deixa a pensar…
FM – Exige criatividade. Não há um tempo definido para fazer um dilema.

Da esquerda para a direita: Nuno Markl, Bruno Nogueira e Filipe Melo. Da direita para a esquerda é ler do último para o primeiro nome

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Testam os dilemas?
BN
– Às vezes sim, com um amigo meu. Pergunto-lhe o que é que ele acha.
NM – Há uns dias estava tão aflito com os dilemas que desabafei com a minha irmã e ela mandou-me um, que eu vou usar. E vou assumir que é dela. É muito interessante, repleto de imagens riquíssimas para o João Pombeiro animar.
FM – Se isto fosse os Beatles, o Pombeiro era o Ringo.

Mas o Ringo era subestimado…
FM
– Claro. Claro que sim. Mas pronto, depois fisicamente… Não é?
NM – Mas o Ringo devia faturar muito, mesmo assim…
BN – Porque era a espiral. Era inevitável. Às tantas, o mais perto que conseguias chegar do McCartney e do Lennon era o Ringo.
NM – O mais bonito era o George Harrison. Era um gatão.

O sucesso, do podcast e da bilheteira de espetáculos como este, surge por causa do conceito ou é por vossa causa?
FM
– Epá, eu não queria dizer isto, mas acho que é por minha causa.
BN – Acho que cerca de 80% do público vai pelo Filipe. Diria que 7% por minha causa e mais 13% pelo Markl.

Mas o Nuno e o Bruno serão os mais famosos…
BN
– Mas o Filipe tem uma coisa que nós não temos, que é uma alma muito bonita.
FM – Há uma coisa que é verdade e vou ter aqui um momento de seriedade. Não vou tentar ter graça ao pé deles. Porque se eu tentar ter é a mesma coisa que eu ser um pianista e de repente estar com o Oscar Peterson e com o Keith Jarret. E basta-me estar ali e contribuir da melhor maneira que puder.
NM – As nossas características enquanto personagens são muito giras nos dilemas. Por exemplo, o Filipe, como não tem tanta pressão de figura pública, às vezes é muito mais livre em certos momentos.
FM – O Bruno é o anjo destruidor dos dilemas. Constrói imagens que não nos deixam dormir à noite.
NM – O Bruno vai buscar familiares próximos. No especial de Natal fez uma coisa com mães. É terror puro.
FM – Sim. O Markl é um narrador, um contador de histórias.
BN – Porque ele está habituado a ganhar à palavra.
NM – Eu crio dilemas com narrativas complexas e muitas vezes é muito giro ver o Bruno com ar de desesperado a gritar “já se percebeu, anda lá com isso”. Gosto que as pessoas imaginem o que está a acontecer e o Bruno agoniza com isso. Temos personagens muito vincadas, cada um de nós, e isso é muito giro.
BN – Eu acho que as pessoas gostam disto pelo fator risco. Eles sabem que se eu fizer um dilema os outros dois não o conhecem. O público está na mesma posição deles. Também sabem que há ali uma grande dose de improviso. E sabem acima de tudo que, ao contrário de outro espetáculo qualquer, ali estabeleces logo que aquelas coisas da linguagem e da liberdade de expressão… cagámos nisso tudo, metemos em sacos e deixámos à porta do Coliseu. Ali vale tudo. Quem compra o bilhete está disponível para isso, sabe ao que vai.
FM – Os espetáculos estimulam um bocado a própria criatividade das pessoas que veem. A grande maioria das pessoas que me fala da Nêspera diz que aquilo, de alguma maneira, desperta um lado animal, que os leva a desenvolver os seus próprios dilemas. Tenho visto algumas pessoas seríssimas a fazerem isto.

"Não era previsível que fizéssemos sete coliseus, Não pensei que chegasse aí. Agora, acho que o princípio certo para as coisas é o de fazer algo que diverte, que dá prazer. Acho que às vezes o que se faz é o contrário, é tentar fazer algo 'que as pessoas querem', mas isso não existe. O que as pessoas querem é o que toda a gente está a tentar fazer."
Bruno Nogueira

Se estivéssemos nos EUA, hoje, talvez fosse impossível fazer isto.
NM
– Acho que nos EUA está tudo muito controlado, apesar de já haver vozes que se levantam contra certas coisas. Mesmo assim acho que temos uma liberdade incrível para fazer coisas. Somos um país de brandos costumes, pode haver pessoas que se irritam, um bocadinho, mas as coisas seguem o seu caminho.
FM – Bom, mas houve pessoas que se irritaram contigo porque puseste um macaco a ser escovado com uma escova de dentes.

O Nuno, de vez em quando, irrita muita gente.
NM
– Sim, eu sou o tipo de pessoa que irrita pessoas. Porque sou uma espécie de golden retriever.
BN – Porque as pessoas já sabem que tu dás resposta e eu já te falei sobre isso.
NM – Mas agora dou muito menos resposta, tanto assim é que saí do Facebook.
BN – Há pessoas que pensam assim: “Mas eu posso ter a atenção daquele? Então deixa-me cá dizer que ele é um palerma”. E ele responde: “Não sou nada um palerma”. E eles: “Ah, está feito”.

Nuno Markl. “O Soares e o Freitas eram os Beatles e os Stones”

Mas isso acontece com todos vocês, não? Bom, talvez menos com o Filipe…
BN
– Claro.

E depois?
BN
– Depois nada. Não faço nada. Estas reações funcionam se as alimentarmos. Estes malucos que perdem tempo com coisas que não interessam para nada, como um macaco a ser escovado por uma escova de dentes, se alimentarmos isso esses gajos passam a ser alguém. Se não alimentarmos, não.

É um pouco como o lado negro da Força.
NM
– É, sem dúvida. Mas com a idade, a minha tolerância à estupidez está cada vez mais reduzida. E estou a responder menos. No Instagram é tudo mais pacato, na realidade, não estimula tanto o ódio como o Facebook.

Palavra de Filipe Melo: "Há muito trabalho pela frente porque nós somos procrastinadores. Mas há uma coisa que nós sabemos, nós temos uma obrigação para com as pessoas que pagaram bilhete"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Numa entrevista que o Bruno deu ao Observador há pouco tempo, ele dizia que alguns julgam saber o que os outros gostam. Era previsível para vocês que isto fosse um sucesso? Sendo que isto começou um pouco como uma brincadeira…
BN
– Para mim não era previsível que fizéssemos sete coliseus, não pensei que chegasse aí. Agora, acho que o princípio certo para as coisas é o de fazer algo que diverte, que dá prazer. Acho que às vezes o que se faz é o contrário, é tentar fazer algo “que as pessoas querem”, mas isso não existe. O que as pessoas querem é o que toda a gente está a tentar fazer, que é um puré de várias coisas, com um bocadinho de humor, de coisas para chorar… Fazendo essa mistura pela receita, não se mostra nada de novo.

Bruno Nogueira: “A primeira coisa que me dizem sempre é ‘epá, não há muito dinheiro’”

NM – Cheguei a receber mensagens de pessoas que diziam “OK, eu gosto muito de ti no Homem que Mordeu o Cão, mas aqui se calhar não te vou ouvir”. Pronto.

“Já nos amparámos uns aos outros em momentos complicados das nossas vidas”

Vocês já estiveram no Coliseu, mas sem ser em formato “musical”. O facto de ser ao vivo, de estarem à frente de tanta gente, deixa-vos com algum constrangimento?
FM
– Não, pelo contrário. Dá-nos mais vontade.
NM – O mais estranho é que fazer a Nêspera é das coisas que me deixam mais confortável. Apesar de todo o desconforto disto… Há um espírito qualquer. Para já, eu gosto muito deles.
BN – Adorávamos poder dizer o mesmo…
NM – É por estas e por outras que o as pessoas me dizem “epá, o Bruno trata-se abaixo de cão”.

A verdade é que as pessoas normais têm conversas da treta, dizem asneiras e tudo isso.
BN
– Claro. E nós damo-nos muito bem. Ninguém aqui quer brilhar mais e ninguém se atropela. Não há a energia de alguém que está sempre a tentar impor-se. É tudo bastante dividido. Cada um tem o seu espaço. E são conversas que não nos exigem um esforço assim tão grande e, por isso mesmo, não é o facto de estarmos perante tantas pessoas que muda alguma coisa. Estando pessoas a ver, na verdade, ganhamos uma energia ainda mais especial.
FM – Uma coisa engraçada que aconteceu enquanto estávamos a construir tudo isto. Estávamos em casa do Bruno, onde o Markl estava constantemente a ser violado pelo cão do Bruno…

"As pessoas às vezes perguntam-me o que é que vai acontecer e eu não consigo explicar muito bem. Mas neste momento posso dizer que estou com algum entusiasmo."

Como é que se chama o cão?
BN
– Chama-se Freud.

Muito bem…
FM
– E bom, o que é certo é que nos divertimos todos muito com isto. Tivemos ali momentos de grande entusiasmo. Então, vai haver um momento em que vamos partilhar o que andámos a fazer e pode funcionar. Pode… As pessoas às vezes perguntam-me o que é que vai acontecer e eu não consigo explicar muito bem. Mas neste momento posso dizer que estou com algum entusiasmo.
BN – Isto é espetacular, uma entrevista de promoção e ninguém sabe dizer o que vai ser o espetáculo.
NM – O que me inquieta são os dilemas, os que ainda me faltam fazer. Só vou estar descansado quando os tiver todos feitos. Só aí é que vou estar mentalmente disponível.
FM – Nós não sabemos se vai haver música ou não.

É uma boa frase para o título desta entrevista. E estão todos em sintonia. Vocês são amigos?
BN
– Hmmm…

Calma. Por exemplo, vocês têm um grupo de whatsapp no qual não falam de trabalho?
NM
– Temos um grupo de iMessage. Falamos de tudo. Eles os dois devem ser das pessoas com quem falo mais todos os dias.
BN – Qualquer coisa que um de nós queira partilhar. “Olha agora furei um pneu”; ou então “agora matei uma pessoa”, como o Markl disse no outro dia…
NM – Sim, mas foi acidental. E o incrível nesta relação de iMessage é que na verdade já nos amparámos uns aos outros em momentos complicados das nossas vidas.

Portanto, se tiverem um problema vocês ajudam-se, é isso?
NM
– Sim, sim.
BN – Falamos todos os dias seguramente. E depois volta e meia temos de apagar o grupo, como o Filipe faz, e bem, porque se alguém vê aquilo, pode ser comprometedor. Epá, acaba o país. O país, enquanto conceito, acaba.

O stand up, trabalhar sozinho e a vida no geral, por Bruno Nogueira: "Isto do medo, ou de o deixar, é como um músculo, é uma questão de exercício"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

E de musicais, vocês gostam?
FM
– Adoramos. Aliás, juntamo-nos várias vezes para ver musicais.

Não acredito.
FM
– É verdade. Vimos o “Cats” no último fim de semana.
NM – Mas por acaso podíamos ver.
FM – Muito fixe. Temos visto os musicais da velha guarda, também. O “Showboat”, “Meet Me in St. Louis”, adoramos esse.
BN – Agora há uma reinvenção do musical clássico, não é? Identifico-me mais com isso, como é o caso do “Hamilton” e essas coisas. Ou do “Spamalot”.
FM – Nós temos um desejo secreto de traduzir o “Book of Mormon”. E uma coisa é verdade: eu cresci a ver musicais da velha guarda. Depois parei ali com os musicais do Andrew Lloyd Weber, perderam-me aí, mas gosto dos velhos. Dos irmãos Marx, Fred Astaire e Ginger Rogers.
NM – E no meio deste processo todo surgiram algumas referências diferentes, como o South Park, o filme. O que é maravilhoso no South Park é que aquilo é tudo muito subversivo mas ao mesmo tempo a música é muito boa.
FM – Será que vamos ter boas canções? Será que sim? Será que não?
BN – Será que há canções?

Não sei até que ponto as pessoas não esperam que, por exemplo, isto tenha um argumento e que cada um  de vocês desempenhe um papel com um figurino bonito, com convidados…
FM
– Será que, por exemplo, haverá atores a fazer de nós?
NM – Será que vamos estar no público?
FM – Será que vamos ter uma banda? Será que vamos ter mais que uma banda?
NM – Uma coisa que posso dizer: vai haver convidados especiais.

Finalmente, uma confirmação.
NM
– E acho que vamos ter de fazer o Azar do Caralho, não é? [Azar do Caralho é uma espécie de castigo em que alguém de tem de telefonar para uma quarta pessoa com uma mensagem no mínimo surpreendente ou pouco agradável]
FM – Ah, acabei de ter uma boa ideia.
NM – Então?
FM – E se o Azar do Caralho for um momento musical e tiveres de ligar a alguém a cantar? Tudo o que dizes tem de ser a cantar?
NM – isso é sinistro.

"Eu diria que cada um nós ter a profissão que tem já é uma grande sorte. O Filipe poder viver da música, eu da comédia, o Markl daquilo que ele faz..."

Portanto, estou aqui a testemunhar o vosso processo criativo, é isso?
BN
– Sim. Depois as coisas aparecem. E há algumas em que pegamos, outras nem por isso. Uma coisa boa também é o facto de estarmos bem com isso, com a naturalidade de algumas coisas avançarem e outras não.

O espetáculo vai durar quanto tempo, têm ideia?
BN
– 15 horas.
NM – Deve ser aí uma hora e meia. Mas devo dizer, ainda sobre o processo criativo, que às vezes surgem ideias no próprio dia, quando estamos nos ensaios. Houve uma que surgiu, que foi o Filipe que teve, estávamos resistentes. Colocar o António Zambujo e o Miguel Araújo a cantar canções diferentes ao mesmo tempo. Rimo-nos tanto. No fim abraçámo-nos todos.
FM – Foi o chamado “mind fuck”. Durante os espetáculos anteriores no Coliseu tivemos momentos musicais extremamente curtos, tivemos esse em simultâneo e agora vamos ter de inventar outra coisa qualquer. Ou então não e repetimos tudo.

Acredito que com tudo o que estão a revelar aqui vão vender muitos bilhetes.
NM
– Talvez.
BN – Hmmmm….
FM – A sério que estávamos a fazer isto só para curtir, a sério. Para quê pensar nesse lado material dos bilhetes?

“Uma vez o Camané disse-me que só cinco por cento das pessoas é que fazem o que gostam”

Vocês têm alguma sorte em poder estar a fazer este tipo de coisa e terem gente que vos quer ver e ouvir. Já pensaram nisso?
BN
– Essa pergunta da sorte é mais para eles os dois, não é? Claro que sim… Eu diria que cada um nós ter a profissão que tem já é uma grande sorte. O Filipe poder viver da música, eu da comédia, o Markl daquilo que ele faz…
NM – Eu sabia…

O Bruno é o bully aqui, não é?
NM
– Ele é o bully. O nosso bully. Implica muito connosco mas vem tudo de um sítio bom.
BN – É para animar.

Nuno Markl e as surpresas: "Devo dizer, ainda sobre o processo criativo, que às vezes surgem ideias no próprio dia, quando estamos nos ensaios"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Mas falávamos…
BN
– Sim. Só por viver daquilo que gosto de fazer, uma coisa que parece muito normal mas não é…
FM – Uma vez o Camané disse-me que só cinco por cento das pessoas é que fazem o que gostam. E isso é triste.
BN – E agora os três juntos podemos fazer uma coisa com liberdade total e ganhar dinheiro com isso, é um bónus acrescido.

Migas forever.
BN
– Migas forever.
NM – E quando, a dada altura, nós considerámos a hipótese de fazer Uma Nêspera no Cu — O Filme? Chegámos a falar sobre isso, mas depois largámos a ideia.
BN – Percebemos que íamos ter cerca de zero patrocinadores.
NM – Sobre patrocinadores há aquela história do início que é sempre boa de contar.
FM – A história tem a ver com a nossa produtora e espécie de mãezinha, que é a Sandra Faria.
NM – No início de tudo esboçou-se a possibilidade de termos um patrocinador.
FM – Lembro-me de ela dizer que com vocês os dois envolvidos toda a gente iria patrocinar.
NM – Estávamos então numa reunião com uma marca grande, a falar do conceito da coisa e dos dilemas e eles estavam super entusiasmados. A Sandra depois pergunta se já dissemos o nome do podcast e diz “é Uma Nêspera no Cu”. E eles tipo “bom, vamos ver, vamos pensar”. E nunca mais disseram nada.
FM – Como é que explicas isto, Bruno?
BN – Explico pelo medo, as pessoas têm medo, muito medo. O nome… é a tal coisa, isto podia ser só “Uma Nêspera”. E podíamos ter patrocinadores, se calhar. Mas se não mostramos logo ao que vamos…

Um convidado de sonho para o podcast?
NM
– Chegámos a falar do Marcelo Rebelo de Sousa, não foi?
BN – Isso era espetacular. Mas ele seria destruído.
NM – Epá, sim, no dia a seguir era destruído, o Presidente a participar numa coisa chamada Uma Nêspera no Cu.

Vamos tentar terminar, até porque provavelmente têm mais coisas para fazer.
BN
– Temos que preparar este espetáculo.

"Há dias em que a melhor coisa que me podem dizer é "olha, isto foi cancelado". E eu reajo como quando era miúdo e dava o segundo toque e o professor não estava na sala."

Algumas vez pensaram em fazer menos coisas e passar mais tempo em casa, por exemplo? Ou a fazer qualquer outra coisa?
NM
– Penso nisso todos os dias.

E porque é que não o fazem? Porque experimentam isso durante uma semana e depois já não querem mais?
BN
– Eu por acaso tenho uma grande vantagem. A minha prioridade não é mesmo o trabalho. Eu não paro um mês ou dois e começo a flipar. Nada. Antes de fazer o stand up estive para aí seis meses parado. E no próximo ano queria parar outra vez assim uma temporada longa. Portanto, eu faço isso muito regularmente. O Markl pode fazer menos porque está todas as manhãs na rádio.
NM – Há dias em que a melhor coisa que me podem dizer é “olha, isto foi cancelado”. Reajo como quando era miúdo e dava o segundo toque e o professor não estava na sala. Uma das razões pelas quais eu sou fã do Bruno, além do seu talento, é a maneira como ele gere a carreira, que eu acho que é exemplar. Ele é a bandeira suprema de uma carreira bem gerida. Nunca te disse isto, estou a dizer-te agora. Esta maneira como ele desaparece, reaparece. O tempo que ele tem para pensar nas coisas. porque quando se tem uma trabalho diário de humor… sinto falta disso, sinto falta de parar e de só aparecer quando tiver uma coisa realmente boa. Adoro fazer rádio e fazer o Homem que Mordeu o Cão, gosto daquilo, de contar histórias em rádio, mas ao mesmo tempo já não tenho 20 anos. Comecei a fazer isto com 26 anos e agora tenho 47. Começo a pensar que se calhar devia arranjar uma outra maneira de fazer as coisas. Acho que não vou conseguir estar até aos 80 a fazer isto. Até porque vou morrer antes.
BN – Sim, eu dou-lhe mais três anos.

Filipe?
FM
– Tenho de reforçar o que o Markl disse, porque é verdade. Eu venho de um meio em que tenho de estar sempre a trabalhar. O Bruno é capaz de ser da primeira geração que fez da comédia uma profissão. Depois do Herman, talvez. Mas ele mete-se em projetos de qualidade, ele assegura qualidade. Tem a ver com bom gosto e inteligência. O Markl tem outra característica. Desde que me lembro que ele me despertou a curiosidade para uma série de coisas e tem tido um papel importante na cultura do nosso país. E está sempre a mandar-se para baixo, a dizer “eu sei lá, eu gostava de escrever mais”… Isso faz algum sentido, devias largar tudo e escrever. As pessoas conhecem esta pessoa porque ele fala na rádio mas a verdade é que ele escreve mesmo bem. Num país normal ele estaria a fazer guiões para filmes e esses filmes fariam público, ganhariam dinheiro e ele não teria de fazer mais nada.
NM – Entretanto eu e o Bruno insistimos muito com o Filipe para ele fazer um disco dele, porque ele trabalha em discos de outras pessoas.
BN – E quando uma pessoa tem as armas todas não dá valor às armas… Às vezes acontece isso. Com o stand up foi isso, estive dez anos sem fazer e toda a gente me dizia aquilo que eu estou a dizer ao Filipe. Mas depois entras numa espécie de negação e de medo. Acho que o Filipe é isso, mas acho que vai mudar, tem de mudar.

Os três em cima já vocês sabem quem são. Em baixo, o Fred, que não vai estar nos coliseus

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

O stand up corre bem?
BN
– Corre bem e as pessoas riem-se. E vou a sítios pouco visitados pela comédia, como Seia ou Mangualde. Porque não sei que tipo de público é que vai a um espetáculo de comédia. Durante muito tempo tive medo de voltar a escrever sozinho, mas quando finalmente tens aquilo pronto e quando apresentas a primeira, segunda, terceira vez e corre bem, passas a ter um prazer enorme em fazer aquilo. É combustível para a tua autoestima, mas de facto levei este período todo até me convencer. Porque isto do medo, ou de o deixar, é como um músculo, é uma questão de exercício.
NM – O processo dele é muito giro porque lembra o dos serial killers, em casa ele tinha papelinhos com ideias espalhados pelo chão. Quase pisei as ideias. Ele gritou “cuidado”.
FM – E tinha também lá uma cabeça de cabra decepada.

Há quem se queixe que a Nêspera tem muitas asneiras. Vocês diziam muitas asneiras quando eram pequenos?
NM
– Não.
BN – O meu pai punha-me a dizer asneiras de pé em cima de uma mesa. Lembro-me de ter uns cinco anos, num restaurante de amigos, e de o meu pai me dizer “agora vais gritar ‘eu quero é que vocês vão todos para o caralho'”.
NM – E tu disseste?
BN – Disse, mas disse “caiaio”.

Fotos de André Dias Nobre

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